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Medicina FAG

Metabolismo de Lipídios e Corpos Cetônicos

Formação e Metabolismo dos Corpos Cetônicos

Definição e Composição dos Corpos Cetônicos

Os corpos cetônicos são um grupo de três compostos solúveis em água produzidos exclusivamente no fígado a partir do acetil-CoA. Estes compostos são a acetona, o acetoacetato e o beta-hidroxibutirato (também conhecido como 3-hidroxibutirato). É fundamental notar que tanto o acetoacetato quanto o beta-hidroxibutirato são ácidos carboxílicos, o que lhes confere um caráter ácido. A produção e o acúmulo excessivo desses compostos podem, portanto, levar a uma diminuição do pH sanguíneo, uma condição conhecida como cetoacidose.

Condições Fisiológicas e Patológicas para a Cetogênese

A síntese de corpos cetônicos, ou cetogênese, é ativada em três situações principais que envolvem a baixa disponibilidade de carboidratos para o metabolismo energético. A primeira é o jejum prolongado; mesmo períodos de 4 a 6 horas iniciam uma produção basal, que se intensifica significativamente após 24 horas de jejum. A segunda condição são as dietas com restrição severa de carboidratos e ricas em gorduras e proteínas, como a dieta cetogênica. A terceira, e clinicamente mais perigosa, é o diabetes mellitus não controlado. Em um paciente diabético com tratamento inadequado ou ausente, a incapacidade das células de captar glicose do sangue desencadeia uma resposta metabólica semelhante à do jejum, resultando em uma produção massiva de corpos cetônicos. Esta superprodução pode levar a uma grave cetoacidose diabética, uma emergência médica que requer hospitalização e cuidados intensivos para estabilização do paciente.

Mecanismo Bioquímico da Formação de Corpos Cetônicos

A cetogênese ocorre nas mitocôndrias dos hepatócitos. O processo é iniciado por uma lipólise intensa no tecido adiposo, que libera ácidos graxos na circulação. Esses ácidos graxos são captados pelo fígado e submetidos à beta-oxidação, gerando uma grande quantidade de acetil-CoA. Em condições normais, o acetil-CoA entraria no ciclo de Krebs para a produção de ATP. No entanto, durante o jejum ou no diabetes não controlado, o fígado está ativamente realizando a gliconeogênese para manter a glicemia. Este processo consome o oxaloacetato, o intermediário do ciclo de Krebs que se condensa com o acetil-CoA na primeira reação do ciclo. Com a depleção do oxaloacetato, o ciclo de Krebs torna-se inoperante. O acetil-CoA acumulado é então desviado para a via da cetogênese. Um aspecto importante deste desvio é a liberação de coenzima A (CoA) livre a partir das moléculas de acetil-CoA, o que permite que a beta-oxidação dos ácidos graxos continue, evitando o sequestro de toda a CoA celular.

Destino Metabólico e Utilização dos Corpos Cetônicos

Os três corpos cetônicos formados têm destinos distintos. A acetona, sendo volátil e tóxica, não é utilizada metabolicamente e é eliminada principalmente pela respiração, o que confere ao paciente o característico hálito cetônico. Por outro lado, o acetoacetato e o beta-hidroxibutirato são transportados pelo sangue para tecidos extra-hepáticos, como o músculo cardíaco, músculo esquelético e rins, onde são convertidos novamente em acetil-CoA e utilizados como fonte de energia no ciclo de Krebs local. Notavelmente, durante o jejum prolongado, o cérebro, que normalmente depende exclusivamente de glicose, adapta-se para utilizar corpos cetônicos como sua principal fonte de energia. O fígado, apesar de ser o local de síntese, não consegue utilizar os corpos cetônicos, pois não possui as enzimas necessárias para a sua oxidação (cetólise).

Fisiopatologia da Cetoacidose

A formação de corpos cetônicos é um mecanismo fisiológico de adaptação. O problema clínico surge quando a taxa de produção excede a capacidade de utilização pelos tecidos periféricos. Esse excesso de corpos cetônicos, que são ácidos, acumula-se no sangue, levando a uma diminuição do pH e resultando em uma acidose metabólica, denominada cetoacidose. No diabetes mellitus não controlado, a produção é tão exacerbada que a cetoacidose se torna uma complicação grave e potencialmente fatal. A hiperglicemia concomitante ocorre porque, na ausência de insulina, a glicose não entra nas células insulinodependentes (como as do fígado e músculo), fazendo com que o fígado se comporte como se estivesse em jejum, realizando gliconeogênese e liberando ainda mais glicose no sangue.

Regulação Metabólica e Reações Anapleróticas

A ausência de reposição do oxaloacetato é central para a cetogênese. Em condições normais, as reações anapleróticas repõem os intermediários do ciclo de Krebs. A principal reação que forma oxaloacetato é a carboxilação do piruvato, catalisada pela piruvato carboxilase. No entanto, o piruvato é um produto da glicólise. Em estados de jejum ou no diabetes descompensado, a glicólise hepática está diminuída ou ausente devido à falta de entrada de glicose na célula, impedindo a formação de piruvato e, consequentemente, a reposição do oxaloacetato. A administração de insulina em um paciente com cetoacidose diabética permite a entrada de glicose nas células, reativando a glicólise, a formação de piruvato e a subsequente síntese de oxaloacetato, o que interrompe a cetogênese ao reativar o ciclo de Krebs.

Síntese de Ácidos Graxos

Visão Geral e Requisitos da Lipogênese

A síntese de ácidos graxos, ou lipogênese, ocorre predominantemente no citosol das células do fígado e do tecido adiposo, e também em glândulas mamárias durante a lactação. Este processo anabólico é ativado em um estado bem alimentado, especialmente após uma refeição rica em carboidratos. Os principais requisitos para a síntese são: acetil-CoA como precursor de carbono, NADPH como agente redutor, ATP como fonte de energia, a coenzima biotina e bicarbonato. Os ácidos graxos sintetizados podem ser utilizados para formar triacilgliceróis, lipídios de membrana e colesterol. O corpo humano é capaz de sintetizar a maioria dos ácidos graxos de que necessita, com exceção dos ácidos graxos essenciais, como o ômega-3 e o ômega-6, que devem ser obtidos pela dieta.

O Transporte de Acetil-CoA da Mitocôndria para o Citosol

O acetil-CoA, precursor da síntese de ácidos graxos, é gerado dentro da mitocôndria (a partir do piruvato ou da beta-oxidação). No entanto, a síntese de ácidos graxos ocorre no citosol, e a membrana mitocondrial interna é impermeável ao acetil-CoA. Para transpor essa barreira, o acetil-CoA condensa-se com o oxaloacetato para formar citrato, a primeira reação do ciclo de Krebs. O citrato é então transportado para o citosol por um transportador específico. No citosol, a enzima ATP-citrato liase cliva o citrato, regenerando o acetil-CoA e o oxaloacetato, disponibilizando assim o acetil-CoA para a lipogênese. Este mecanismo é conhecido como lançadeira do citrato.

Etapa de Carboxilação do Acetil-CoA: Formação do Malonil-CoA

A primeira etapa comprometida e regulada da síntese de ácidos graxos é a carboxilação do acetil-CoA para formar malonil-CoA. Esta reação é catalisada pela enzima acetil-CoA carboxilase (ACC), que utiliza bicarbonato como fonte de carbono, ATP para energia e a coenzima biotina. O malonil-CoA, uma molécula de três carbonos, serve como o doador de unidades de dois carbonos para o alongamento da cadeia do ácido graxo. Além disso, o malonil-CoA atua como um importante regulador metabólico, inibindo a enzima carnitina palmitoiltransferase I (CPT1), o que impede que os ácidos graxos recém-sintetizados no citosol entrem na mitocôndria para serem oxidados.

O Complexo da Ácido Graxo Sintase e a Elongação da Cadeia

O alongamento da cadeia de ácido graxo é realizado pelo complexo da ácido graxo sintase, uma enzima multifuncional. O processo inicia-se com uma molécula de acetil-CoA, que serve como "primer". Subsequentemente, unidades de dois carbonos são adicionadas de forma sequencial a partir de moléculas de malonil-CoA. Cada ciclo de adição envolve reações de condensação, redução (utilizando NADPH), desidratação e uma segunda redução (novamente com NADPH). Este processo repete-se, adicionando dois carbonos por ciclo, até que um ácido graxo de 16 carbonos, o palmitato (16:0), seja formado. O palmitato é o produto final primário da ácido graxo sintase no citosol.

Alongamento e Dessaturação dos Ácidos Graxos

O palmitato pode ser modificado para produzir outros ácidos graxos de cadeia mais longa ou insaturados. Esses processos, conhecidos como alongamento e dessaturação, ocorrem principalmente no retículo endoplasmático liso e, em menor grau, na mitocôndria. O alongamento adiciona unidades de dois carbonos, similarmente ao processo da ácido graxo sintase. A dessaturação, catalisada por enzimas chamadas dessaturases, introduz duplas ligações na cadeia de acil-CoA. O organismo humano possui dessaturases que podem criar duplas ligações nas posições Δ9, Δ6, Δ5 e Δ4, mas não consegue introduzir duplas ligações além do carbono 9 (a partir do terminal metil). Por esta razão, os ácidos linoleico (ômega-6) e alfa-linolênico (ômega-3) são considerados essenciais e devem ser obtidos da dieta.

Destino dos Ácidos Graxos e Regulação Hormonal

Os ácidos graxos sintetizados têm dois destinos principais: podem ser incorporados em lipídios de membrana (como fosfolipídios) ou esterificados com glicerol para formar triacilgliceróis, que servem como a principal forma de armazenamento de energia. A síntese de ácidos graxos e triacilgliceróis é fortemente estimulada pela insulina, o hormônio predominante no estado alimentado. A insulina promove a captação de glicose e ativa enzimas chave da via, como a acetil-CoA carboxilase.

Metabolismo de Triacilgliceróis e Implicações Clínicas

Esteatose Hepática: Acúmulo de Triacilgliceróis no Fígado

O fígado desempenha um papel central na síntese de triacilgliceróis. Para exportar essa gordura para os tecidos periféricos, principalmente o tecido adiposo, o fígado empacota os triacilgliceróis em lipoproteínas de muito baixa densidade (VLDL). No entanto, quando a taxa de síntese de triacilgliceróis (estimulada por uma dieta rica em carboidratos e gorduras) excede a capacidade do fígado de montar e secretar VLDL, os triacilgliceróis começam a se acumular dentro dos hepatócitos. Este acúmulo crônico leva à esteatose hepática, também conhecida como doença hepática gordurosa não alcoólica. A esteatose pode progredir para esteato-hepatite (inflamação), fibrose e, em casos graves, cirrose hepática.

Síntese e Regulação do Colesterol

Importância e Estrutura do Colesterol

O colesterol é um lipídio esteroide vital para o organismo, sintetizado principalmente no fígado. Ele é um componente essencial das membranas celulares, onde modula a fluidez, e serve como precursor para a síntese de hormônios esteroides (como cortisol, aldosterona e hormônios sexuais), sais biliares (essenciais para a digestão de gorduras) e vitamina D. Estruturalmente, o colesterol possui um núcleo esteroide de quatro anéis fusionados e uma cadeia lateral de hidrocarbonetos, sendo uma molécula predominantemente apolar. No entanto, a presença de um grupo hidroxila no anel A confere-lhe um caráter anfipático (uma região polar e uma apolar).

Esterificação do Colesterol para Transporte e Armazenamento

Para ser armazenado dentro das células ou transportado no núcleo hidrofóbico das lipoproteínas, o colesterol livre, que é anfipático, deve ser convertido em uma forma completamente apolar. Este processo é a esterificação, na qual um ácido graxo é ligado ao grupo hidroxila do colesterol. A reação intracelular é catalisada pela enzima Acil-CoA:colesterol aciltransferase (ACAT), formando um éster de colesterol. Esta molécula, sendo totalmente hidrofóbica, pode ser eficientemente empacotada em gotículas lipídicas ou no interior das lipoproteínas.

Regulação da Síntese de Colesterol: A Enzima HMG-CoA Redutase

Algo frequentemente cobrado em provas é a regulação da síntese de colesterol. A via de síntese do colesterol é longa e complexa, partindo do acetil-CoA. A etapa chave, limitante da velocidade e principal ponto de regulação, é a conversão de beta-hidroxi-beta-metilglutaril-CoA (HMG-CoA) em mevalonato, catalisada pela enzima HMG-CoA redutase. A regulação desta enzima é multifacetada e responde finamente aos níveis intracelulares de colesterol. Quando os níveis de colesterol na célula estão altos, ocorrem três mecanismos regulatórios principais:

  1. Inibição por feedback: O excesso de colesterol inibe a atividade da HMG-CoA redutase, diminuindo a síntese endógena.
  2. Ativação da esterificação: O colesterol ativa a enzima ACAT, promovendo sua conversão em ésteres de colesterol para armazenamento.
  3. Redução da captação: O colesterol suprime a transcrição do gene que codifica o receptor de LDL, diminuindo o número de receptores na superfície celular e, assim, reduzindo a captação de colesterol do sangue.
A regulação hormonal também ocorre, com a insulina estimulando a síntese e o glucagon inibindo-a.

Implicações Clínicas e Farmacológicas da Regulação do Colesterol

A regulação dos receptores de LDL é de extrema importância clínica. Quando a síntese de receptores é suprimida devido ao alto colesterol intracelular, a lipoproteína de baixa densidade (LDL), rica em colesterol, não pode ser eficientemente removida da circulação. O aumento dos níveis de LDL no sangue é um fator de risco primário para a aterosclerose, a formação de placas de gordura nas artérias. A farmacologia moderna explora este mecanismo. As estatinas (ex: sinvastatina, atorvastatina) são uma classe de fármacos que atuam como inibidores competitivos da HMG-CoA redutase. Ao bloquear a síntese endógena de colesterol, as estatinas diminuem os níveis de colesterol intracelular. Em resposta, a célula aumenta a síntese de receptores de LDL para captar mais colesterol do sangue, resultando em uma redução significativa dos níveis de LDL circulante e, consequentemente, do risco cardiovascular.

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