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Medicina UFPR

Anestesia Troncular de Dedo

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1. Anestesia Troncular de Dedo

1.1. Introdução e Indicações

A anestesia troncular de dedo, ou bloqueio digital, é uma técnica de anestesia regional que visa proporcionar analgesia e anestesia completas a um único dígito (dedo da mão ou do pé). O procedimento consiste na infiltração de um anestésico local na base do dígito para bloquear a condução nervosa dos quatro nervos digitais que o suprem. Esta abordagem é frequentemente preferível à infiltração local direta na ferida, pois oferece vantagens significativas.

As principais vantagens do bloqueio troncular sobre a infiltração local incluem:

  • Menor distorção tecidual: A injeção na base do dedo evita o edema na área do procedimento (ex: uma laceração), facilitando a visualização e o reparo preciso das estruturas.

  • Anestesia completa do dígito: Com apenas duas a quatro injeções (ou até mesmo uma, dependendo da técnica), é possível anestesiar todo o dedo, o que é ideal para lesões complexas ou múltiplas.

  • Menor dor: A injeção é realizada em pele íntegra e menos sensível na base do dedo, em vez de diretamente na ferida, que já é dolorosa.

As indicações clínicas para a anestesia troncular de dedo são vastas e comuns em ambientes de emergência e ambulatoriais, como Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e consultórios. Incluem:

  • Reparo de lacerações de dedos das mãos ou pés.

  • Lesões do leito ungueal ou da matriz ungueal.

  • Avulsão ungueal (retirada da unha), seja traumática ou terapêutica.

  • Drenagem de paroníquia ou outras infecções dos tecidos moles do dedo (ex: abscesso de polpa digital ou "felon").

  • Redução de fraturas ou luxações das falanges.

  • Remoção de corpos estranhos.

  • Biópsias de pele no dígito.

1.2. Anatomia Relevante e Mecanismo de Ação

O sucesso da anestesia troncular de dedo depende fundamentalmente do conhecimento da anatomia neurovascular do dígito. Cada dedo da mão (e do pé) é inervado por quatro nervos digitais: dois dorsais e dois palmares (ou plantares, no caso do pé). Esses nervos são ramos terminais dos nervos mediano, ulnar e radial (na mão) ou tibial e fibular (no pé).

Os nervos digitais correm longitudinalmente ao longo do dedo, acompanhando as artérias digitais. Sua localização pode ser facilmente lembrada utilizando uma analogia de relógio, com o dedo visto em corte transversal na base da falange proximal:

  • Nervos digitais palmares (ou plantares): Localizam-se nas posições de 4 e 8 horas. São os principais responsáveis pela sensibilidade da polpa digital e do leito ungueal.

  • Nervos digitais dorsais: Localizam-se nas posições de 2 e 10 horas. Inervam o dorso do dedo.

Pérola Clínica: Os nervos palmares são mais calibrosos e clinicamente mais importantes para a maioria dos procedimentos, pois inervam as áreas de maior sensibilidade e onde ocorrem as lesões mais comuns. Um bloqueio eficaz dos nervos palmares é crucial para o sucesso do procedimento.

O mecanismo de ação dos anestésicos locais (ex: Lidocaína, Bupivacaína) baseia-se no bloqueio reversível dos canais de sódio dependentes de voltagem na membrana dos axônios nervosos. Ao impedir o influxo de íons de sódio, o anestésico previne a despolarização da membrana e, consequentemente, a geração e a propagação do potencial de ação. Isso interrompe a transmissão do sinal de dor desde a periferia até o sistema nervoso central, resultando em anestesia na área de distribuição do nervo bloqueado.

1.3. Técnica e Procedimento

A realização da anestesia troncular de dedo exige técnica asséptica e precisão anatômica. O preparo adequado do paciente e do material é essencial para o sucesso e a segurança do procedimento.

Preparo:

  1. Posicionar o paciente confortavelmente, com a mão ou o pé apoiado em uma superfície estável.

  2. Realizar a assepsia da pele na base do dedo com solução antisséptica (ex: clorexidina alcoólica a 0,5% ou iodopovidona).

  3. Utilizar uma seringa de 3 ou 5 mL e uma agulha de pequeno calibre (25G a 27G) para minimizar a dor da punção.

Existem duas técnicas principais para o bloqueio troncular:

Técnica do Espaço Interdigital (Web Space Block)

Esta é a técnica tradicional e mais utilizada, envolvendo duas injeções.

  1. A agulha é inserida no espaço interdigital (a "membrana" entre os dedos), no lado dorsal, na base do dedo a ser anestesiado.

  2. Avança-se a agulha em direção à face palmar/plantar, mantendo-a paralela à lateral da falange proximal.

  3. Realizar aspiração para garantir que a agulha não está dentro de um vaso sanguíneo.

  4. Injetar lentamente cerca de 0,5 a 1,5 mL do anestésico, criando um depósito que banhará tanto o nervo dorsal quanto o palmar daquele lado.

  5. Retirar a agulha e repetir o mesmo procedimento no espaço interdigital do outro lado do dedo.

Conceito-Chave: A técnica da anestesia troncular de dedo envolve a infiltração do anestésico na base do dedo, visando os nervos digitais palmares e dorsais, que se localizam nas posições de 2, 4, 8 e 10 horas em relação à falange proximal.

Técnica Transtecal ou Volar Subcutânea (Injeção Única)

Esta técnica alternativa pode ser eficaz e menos dolorosa, utilizando uma única punção.

  1. A agulha é inserida perpendicularmente à pele na linha média da face palmar (volar) do dedo, ao nível da prega de flexão proximal.

  2. Avança-se a agulha até tocar o osso (falange proximal) e então se recua ligeiramente.

  3. Após aspirar, injeta-se cerca de 2 a 3 mL de anestésico. A solução se espalha dentro da bainha do tendão flexor, atingindo os nervos digitais palmares.

  4. Esta técnica anestesia primariamente a face palmar e as pontas dos dedos. Pode ser necessário complementar com uma pequena injeção dorsal se o procedimento envolver o dorso do dedo.

Pérola Clínica: Após a injeção, aguarde de 5 a 10 minutos para que o bloqueio se estabeleça completamente. Teste a sensibilidade com uma pinça (sem causar lesão) na polpa digital e no leito ungueal antes de iniciar o procedimento doloroso. A ausência de resposta à dor confirma o sucesso do bloqueio.

1.4. Agentes Anestésicos e Farmacologia

A escolha do agente anestésico depende da duração necessária para o procedimento. Os dois agentes mais utilizados são a Lidocaína e a Bupivacaína, sempre na formulação sem vasoconstritor (epinefrina).

Agente Anestésico

Início de Ação

Duração da Ação

Concentração Comum

Dose Máxima (sem epinefrina)

Lidocaína

Rápido (2-5 minutos)

Curta (1-2 horas)

1% ou 2%

4,5 mg/kg

Bupivacaína

Lento (5-10 minutos)

Longa (4-8 horas)

0,25% ou 0,5%

2 mg/kg

A Controvérsia da Epinefrina:

Tradicionalmente, o uso de anestésicos com epinefrina em áreas de circulação terminal (dedos, nariz, orelhas, pênis) é contraindicado. A epinefrina causa vasoconstrição, e em uma área com artérias terminais, isso poderia levar a uma isquemia grave e necrose do dígito. Embora estudos recentes tenham sugerido que o uso em pacientes saudáveis e selecionados possa ser seguro, a prática padrão e mais segura, especialmente no contexto do sistema de saúde brasileiro (SUS), onde o acompanhamento pode ser desafiador, é evitar categoricamente o uso de epinefrina em bloqueios digitais.

Pérola Clínica: Para reduzir a dor da injeção, que é causada principalmente pelo pH ácido do anestésico, pode-se tamponar a solução. Adicione 1 mL de bicarbonato de sódio a 8,4% a cada 9 mL de Lidocaína. Isso eleva o pH da solução, tornando a injeção significativamente mais confortável para o paciente.

É fundamental calcular a dose máxima segura para cada paciente com base no seu peso, a fim de evitar toxicidade sistêmica. Por exemplo, para um paciente de 70 kg, a dose máxima de Lidocaína sem epinefrina é 70 kg * 4,5 mg/kg = 315 mg. Como a Lidocaína a 1% contém 10 mg/mL, o volume máximo seria de 31,5 mL.

1.5. Cuidados Pré e Pós-Procedimento

A segurança do paciente é a prioridade máxima e envolve uma avaliação cuidadosa antes e orientações claras após o procedimento.

Cuidados Pré-Procedimento

  • Consentimento Informado: Explique o procedimento, seus riscos, benefícios e alternativas ao paciente (ou responsável) e obtenha o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

  • Avaliação de Alergias: Pergunte especificamente sobre alergias a anestésicos locais. Reações alérgicas verdadeiras são raras, mas devem ser investigadas.

  • Exame Neurovascular Basal: Antes de qualquer injeção, avalie e documente o estado neurovascular do dígito. Isso inclui: Este exame basal é crucial para diferenciar uma complicação pós-procedimento de uma condição preexistente.

    • Sensibilidade: Teste o tato leve e a discriminação de dois pontos.

    • Status Vascular: Verifique o tempo de enchimento capilar (deve ser < 2 segundos), a coloração e a temperatura do dedo.

Cuidados Pós-Procedimento

  • Confirmação do Bloqueio: Assegure-se de que a anestesia está efetiva antes de iniciar o procedimento principal.

  • Orientações ao Paciente: Após o término do procedimento, instrua o paciente a proteger o dedo anestesiado até que a sensibilidade retorne completamente. A ausência de dor pode levar a lesões inadvertidas, como queimaduras (ao tocar superfícies quentes) ou traumas.

  • Sinais de Alerta: Oriente o paciente a procurar atendimento médico imediato se notar sinais de complicação após o efeito do anestésico passar, como dor desproporcional, palidez persistente, coloração azulada (cianose) ou inchaço significativo.

1.6. Complicações e Manejo

Embora a anestesia troncular de dedo seja um procedimento seguro, complicações podem ocorrer. É vital saber reconhecê-las e manejá-las adequadamente.

  • Falha do Bloqueio: A complicação mais comum. Pode ocorrer por técnica inadequada ou variação anatômica. O manejo consiste em aguardar mais tempo, injetar um volume adicional de anestésico ou tentar uma técnica alternativa.

  • Dor na Injeção e Hematoma: Comum e geralmente autolimitado. O uso de agulhas de pequeno calibre e injeção lenta minimiza a dor. Hematomas podem ser tratados com compressão local.

  • Lesão Nervosa Direta (Neurapraxia): Rara. Ocorre se a agulha atinge diretamente o nervo. O paciente geralmente relata uma sensação de "choque" ou dor irradiada durante a injeção. A maioria dos casos é transitória, com recuperação completa. O manejo é expectante.

  • Infecção: Rara se a técnica asséptica for seguida. O tratamento segue os princípios gerais de infecções de tecidos moles.

  • Toxicidade Sistêmica por Anestésico Local: Uma complicação grave, mas rara, causada pela injeção intravascular acidental. Os sintomas iniciais envolvem o SNC (gosto metálico, zumbido, tontura, agitação) e podem progredir para convulsões e parada cardiorrespiratória. O manejo é de suporte (manter via aérea, oxigenação, controle de convulsões com benzodiazepínicos) e, em casos graves, a administração de emulsão lipídica intravenosa a 20%. A aspiração antes de cada injeção é a medida preventiva mais importante.

  • Isquemia Digital: A complicação mais temida, quase sempre associada ao uso inadvertido de epinefrina. O dedo torna-se pálido, frio e com enchimento capilar ausente. O manejo é uma emergência e pode incluir aquecimento da mão, massagem para promover vasodilatação e, se disponível, a infiltração local de fentolamina (um antagonista alfa-adrenérgico) para reverter o vasospasmo.

1.7. Considerações Especiais

Pacientes Pediátricos

A abordagem em crianças requer considerações adicionais para minimizar a dor e a ansiedade.

  • Anestésicos Tópicos: A aplicação de um creme anestésico tópico (ex: EMLA - mistura de lidocaína e prilocaína, ou LET - lidocaína, epinefrina, tetracaína) na pele 30-60 minutos antes da punção pode reduzir significativamente a dor da agulhada. Note que o LET contém epinefrina e seu uso deve ser criterioso.

  • Técnicas de Distração: Utilizar brinquedos, vídeos, ou a presença dos pais para desviar a atenção da criança durante o procedimento é altamente eficaz.

  • Volumes Menores: Utilizar o menor volume eficaz de anestésico, sempre respeitando a dose máxima calculada pelo peso.

Pacientes com Comorbidades

Em pacientes com certas condições médicas, o risco de complicações vasculares é maior, exigindo cautela redobrada.

  • Condições de Risco: Doença vascular periférica, diabetes mellitus avançado (com vasculopatia ou neuropatia), fenômeno de Raynaud, ou qualquer condição que comprometa a circulação distal.

  • Contraindicação Absoluta à Epinefrina: Nestes pacientes, o uso de epinefrina é absolutamente contraindicado, sem exceções.

  • Técnica Cautelosa: Utilize anestésicos simples (sem vasoconstritor) e injete o menor volume necessário para alcançar o bloqueio. Grandes volumes podem causar compressão vascular (efeito de torniquete químico), o que pode ser deletério em uma circulação já comprometida. A avaliação neurovascular basal e pós-procedimento é ainda mais crítica neste grupo.

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