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Vacina HPV

O Papilomavírus Humano (HPV) e suas implicações oncológicas representam um dos mais importantes tópicos de saúde pública e prevenção em medicina. A vacina contra o HPV é uma ferramenta de prevenção primária de altíssima eficácia e um tema recorrente nas provas de residência, incluindo o ENARE, por sua relevância epidemiológica e pelas constantes atualizações em seu esquema e indicações no Programa Nacional de Imunizações (PNI).

Introdução e Epidemiologia da Infecção por HPV

O Papilomavírus Humano (HPV) é um vírus de DNA não envelopado do grupo Papillomaviridae. A infecção pelo HPV é considerada a infecção sexualmente transmissível (IST) mais comum em todo o mundo. Estima-se que a maioria dos indivíduos sexualmente ativos será infectada por pelo menos um tipo de HPV em algum momento da vida. A transmissão ocorre principalmente por contato sexual (genital-genital, oral-genital, manual-genital), não sendo necessária a penetração para que ocorra a infecção.

Classificação dos Tipos de HPV

Existem mais de 200 tipos de HPV descritos, que são classificados com base em seu potencial oncogênico, ou seja, sua capacidade de causar câncer. Eles são divididos em dois grandes grupos:

  • Tipos de Baixo Risco Oncogênico: Estão associados principalmente a lesões benignas. Os tipos 6 e 11 são os mais prevalentes e são responsáveis por mais de 90% dos casos de condilomas acuminados (verrugas genitais) e pela papilomatose respiratória recorrente.
  • Tipos de Alto Risco Oncogênico: Estão associados ao desenvolvimento de lesões precursoras e câncer. Os tipos 16 e 18 são os mais importantes, sendo responsáveis por aproximadamente 70% de todos os casos de câncer de colo do útero. Outros tipos de alto risco incluem 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 58, entre outros.

Associação Causal com Cânceres

A infecção persistente por tipos de HPV de alto risco é a causa necessária para o desenvolvimento do câncer de colo do útero e de suas lesões precursoras (Neoplasias Intraepiteliais Cervicais - NIC). Além do câncer cervical, o HPV está fortemente associado a outros tipos de câncer em homens e mulheres:

  • Câncer de Ânus: Aproximadamente 90% dos casos estão ligados ao HPV, principalmente o tipo 16.
  • Câncer de Orofaringe: Especialmente o de amígdala e base da língua. O HPV (principalmente tipo 16) tornou-se a principal causa desse tipo de câncer em muitos países desenvolvidos, superando o tabaco e o álcool.
  • Câncer de Vulva e Vagina: Cerca de 40-70% dos casos estão associados ao HPV.
  • Câncer de Pênis: Aproximadamente 40-50% dos casos estão relacionados ao HPV.

Raciocínio Clínico

A maioria das infecções por HPV é transitória e assintomática, sendo eliminada pelo sistema imunológico em um período de 6 a 24 meses sem causar doença. O problema clínico e o risco de câncer surgem quando a infecção por um tipo de alto risco se torna persistente. É essa persistência que permite ao vírus integrar seu material genético ao da célula hospedeira e iniciar o processo de transformação maligna.

Patofisiologia dos Cânceres Relacionados ao HPV

O mecanismo pelo qual a infecção persistente por HPV de alto risco leva ao câncer é um dos processos de carcinogênese viral mais bem compreendidos na medicina. O processo é mediado por oncoproteínas virais que desregulam o ciclo celular da célula hospedeira.

O HPV infecta as células da camada basal do epitélio escamoso. Para que a transformação maligna ocorra, o DNA viral geralmente se integra ao genoma da célula hospedeira. Essa integração leva à superexpressão de duas oncoproteínas virais chave: E6 e E7.

Papel das Oncoproteínas Virais E6 e E7

  • Oncoproteína E6: A principal função da E6 de alto risco é ligar-se à proteína supressora de tumor p53. A p53 é conhecida como a "guardiã do genoma". Em uma célula normal, a p53 interrompe o ciclo celular em caso de dano ao DNA (para permitir o reparo) ou induz a apoptose (morte celular programada) se o dano for irreparável. Ao se ligar à p53, a E6 promove sua degradação via ubiquitinação. A perda da função da p53 resulta em:
    • Incapacidade de parar o ciclo celular para reparo de DNA.
    • Inibição da apoptose.
    • Acúmulo de mutações genéticas e instabilidade cromossômica.
  • Oncoproteína E7: A principal função da E7 de alto risco é ligar-se e inativar a proteína supressora de tumor pRb (proteína do retinoblastoma). A pRb normalmente controla a progressão do ciclo celular da fase G1 para a fase S, sequestrando o fator de transcrição E2F. Ao se ligar à pRb, a E7 libera o E2F, que então ativa a transcrição de genes necessários para a replicação do DNA. Isso força a célula a entrar na fase S e a proliferar de forma descontrolada. A perda da função da pRb resulta em:
    • Perda do principal ponto de checagem do ciclo celular (G1/S).
    • Proliferação celular contínua e descontrolada.

A ação combinada de E6 e E7 imortaliza as células epiteliais, permitindo o acúmulo de danos genéticos ao longo do tempo, o que eventualmente leva à transformação maligna e ao desenvolvimento de um carcinoma invasor.

Tipos de Vacina, Mecanismo de Ação e Eficácia

As vacinas contra o HPV são profiláticas, ou seja, destinam-se a prevenir a infecção inicial e não a tratar infecções existentes ou lesões já estabelecidas. Elas são produzidas por tecnologia de DNA recombinante.

Mecanismo de Ação

As vacinas não contêm DNA viral e, portanto, são não infecciosas. Elas são compostas por Partículas Semelhantes a Vírus (Virus-Like Particles - VLPs). As VLPs são formadas pela proteína L1 do capsídeo viral, que se auto-organiza em uma estrutura que imita o vírion natural do HPV. Essa estrutura é altamente imunogênica e induz uma resposta imune humoral robusta, com produção de títulos de anticorpos neutralizantes significativamente mais altos (10 a 100 vezes) do que os observados após uma infecção natural. Esses anticorpos permanecem na circulação e no muco cervical, impedindo que o vírus infecte as células basais do epitélio após uma exposição futura.

Tipos de Vacinas Disponíveis

Existem três tipos principais de vacinas contra o HPV, embora a disponibilidade varie entre os países. No Brasil, a vacina ofertada pelo PNI é a quadrivalente.

Característica Vacina Bivalente (Cervarix®) Vacina Quadrivalente (Gardasil®) Vacina Nonavalente (Gardasil 9®)
Tipos de HPV Cobertos 16, 18 (alto risco) 6, 11 (baixo risco) + 16, 18 (alto risco) 6, 11, 16, 18 + 31, 33, 45, 52, 58 (5 outros tipos de alto risco)
Prevenção Primária Câncer de colo uterino (~70% dos casos) Câncer de colo uterino (~70%) + Verrugas genitais (~90%) Câncer de colo uterino (~90%) + Verrugas genitais (~90%)
Disponibilidade no PNI (Brasil) Não mais utilizada como padrão. Sim, é a vacina padrão do PNI. Disponível apenas na rede privada.

Eficácia

A eficácia da vacina é extremamente alta, especialmente em indivíduos que não tiveram exposição prévia aos tipos de HPV contidos na vacina (população naive). Estudos clínicos demonstraram uma eficácia superior a 90-95% na prevenção de infecções persistentes e lesões pré-cancerosas de alto grau (NIC 2/3) causadas pelos tipos de HPV vacinais.

Indicações, Esquema e Administração (PNI - Brasil)

As recomendações do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil são o foco principal para as provas de residência.

População Alvo para Vacinação de Rotina

  • Meninas: 9 a 14 anos (14 anos, 11 meses e 29 dias).
  • Meninos: 11 a 14 anos (14 anos, 11 meses e 29 dias).

Grupos Especiais com Indicação Ampliada (9 a 45 anos)

A vacinação é recomendada para uma faixa etária estendida em populações com maior risco de infecção ou doença grave pelo HPV:

  • Pessoas vivendo com HIV/AIDS.
  • Pacientes transplantados (órgãos sólidos ou medula óssea).
  • Pacientes oncológicos.
  • Vítimas de violência sexual (recente atualização do PNI).

Esquema de Doses

O número de doses depende da idade de início da vacinação e da condição imunológica do paciente.

  • Esquema de 2 doses (intervalo de 6 meses):
    • Indicado para a população alvo de rotina (meninas de 9-14 anos e meninos de 11-14 anos).
    • Esquema: 0 - 6 meses.
  • Esquema de 3 doses (intervalo de 0, 2 e 6 meses):
    • Indicado para pessoas que iniciam a vacinação com 15 anos ou mais.
    • Indicado para imunocomprometidos de qualquer idade (9 a 45 anos), como os grupos especiais citados acima.
    • Esquema: 0 - 2 - 6 meses.

Via de Administração

A vacina é administrada por via intramuscular (IM), preferencialmente no músculo deltoide.

Contraindicações e Populações Especiais

As contraindicações para a vacina HPV são poucas, o que reforça seu alto perfil de segurança.

Contraindicações Absolutas

  • Hipersensibilidade grave (anafilaxia) a qualquer componente da vacina ou a uma dose anterior.
  • Gestação: A vacinação deve ser adiada em gestantes. Se uma mulher engravidar após iniciar o esquema, as doses subsequentes devem ser postergadas para o pós-parto. Não é uma contraindicação absoluta, mas uma precaução. Não há evidências de teratogenicidade, mas os dados são limitados.

Falsas Contraindicações

É crucial para as provas saber o que NÃO impede a vacinação:

  • Doenças agudas leves (resfriado comum, febre baixa).
  • História de alergias comuns (rinite, asma, dermatite atópica).
  • Uso de antibióticos.
  • Lactação (a vacina é segura para lactantes).
  • Infecção prévia por HPV ou resultado de Papanicolau alterado (a vacina ainda protege contra os tipos com os quais a pessoa não teve contato).

Armadilhas do ENARE

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024): Uma questão clássica apresenta um adolescente com uma condição alérgica comum e controlada, como rinite alérgica, e pergunta sobre a conduta em relação à vacina HPV. A resposta correta é que a vacinação deve prosseguir normalmente. Alergias comuns não constituem uma contraindicação. A única contraindicação de natureza alérgica é uma história de anafilaxia a um componente da vacina.

Efeitos Adversos e Perfil de Segurança

A vacina HPV é considerada extremamente segura, com milhões de doses administradas em todo o mundo. Os efeitos adversos são geralmente leves e autolimitados.

Efeitos Adversos Comuns

  • Reações Locais (no local da injeção): São as mais frequentes. Incluem dor, eritema (vermelhidão) e edema (inchaço).
  • Reações Sistêmicas: Menos comuns, podem incluir febre, cefaleia, mialgia, fadiga e náuseas.

Síncope (Desmaio)

A síncope vasovagal pode ocorrer após qualquer procedimento de injeção, especialmente em adolescentes, devido à ansiedade e à dor. Não é uma reação à vacina em si, mas ao processo de vacinação. Por esse motivo, recomenda-se que todos os pacientes permaneçam sentados ou deitados e em observação por 15 minutos após a administração da vacina para prevenir quedas e lesões secundárias.

Impacto em Saúde Pública e Integração com o Rastreamento

A vacinação contra o HPV é uma estratégia de saúde pública com impacto comprovado na redução da carga de doenças relacionadas ao vírus.

Redução da Incidência de Doenças

Países com altas taxas de cobertura vacinal, como a Austrália, já demonstram resultados expressivos:

  • Redução drástica (>90%) na prevalência de infecções pelos tipos de HPV vacinais.
  • Queda significativa na incidência de verrugas genitais.
  • Diminuição marcante nas taxas de lesões cervicais de alto grau (NIC 2/3) em mulheres jovens.

A Austrália está a caminho de eliminar o câncer de colo do útero como um problema de saúde pública nas próximas décadas, um feito atribuído à combinação de vacinação em massa e um programa de rastreamento organizado.

Vacinação não Substitui o Rastreamento

Este é um dos pontos mais importantes para a prática clínica e para as provas. A vacinação é uma prevenção primária, mas não elimina a necessidade da prevenção secundária (rastreamento).

Raciocínio Clínico

Por que mulheres vacinadas ainda devem realizar o rastreamento do câncer de colo do útero (exame de Papanicolau ou teste de HPV)?

  1. Cobertura Incompleta de Tipos Oncogênicos: A vacina quadrivalente (do PNI) protege contra os tipos 16 e 18, que causam 70% dos cânceres. No entanto, cerca de 30% dos cânceres são causados por outros tipos de HPV de alto risco não cobertos pela vacina.
  2. Exposição Prévia: Mulheres que já eram sexualmente ativas antes da vacinação podem ter sido expostas a um dos tipos de HPV da vacina, e nestes casos, a vacina não tem efeito terapêutico.
  3. Falha Vacinal: Embora rara, nenhuma vacina tem 100% de eficácia.
  4. Proteção de Coortes Não Vacinadas: O rastreamento continua essencial para as gerações de mulheres que não foram vacinadas.
Portanto, a recomendação de rastreamento citológico para mulheres entre 25 e 64 anos, conforme as diretrizes do Ministério da Saúde, permanece inalterada, independentemente do histórico vacinal.

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