Introdução à Imunologia e Imunização
A imunização é uma das intervenções de saúde pública mais bem-sucedidas da história, erradicando doenças como a varíola e controlando muitas outras. O seu princípio fundamental baseia-se na capacidade do sistema imunológico de reconhecer um agente patogênico e desenvolver uma memória contra ele. A imunidade pode ser adquirida de forma ativa ou passiva, uma distinção crucial para a prática clínica e para as provas de residência.
Imunidade Ativa
A imunidade ativa é caracterizada pela produção de anticorpos e células de memória pelo próprio indivíduo após a exposição a um antígeno. É uma forma de proteção duradoura, muitas vezes por toda a vida. Pode ser adquirida de duas formas:
- Natural: Ocorre após a infecção por um agente patogênico. O indivíduo adoece, recupera-se e desenvolve memória imunológica contra o agente causador. Exemplo: adquirir imunidade permanente ao sarampo após ter a doença.
- Artificial (Vacinação): Ocorre pela administração de uma vacina, que contém antígenos (agentes mortos, atenuados ou partículas do agente) capazes de estimular uma resposta imune protetora sem causar a doença. Este é o objetivo central da vacinação: induzir uma imunidade ativa protetora e de longa duração.
Imunidade Passiva
A imunidade passiva é caracterizada pelo recebimento de anticorpos pré-formados. Oferece proteção imediata, porém temporária, pois os anticorpos recebidos são degradados ao longo do tempo (semanas a meses) e não há formação de células de memória pelo receptor. Também pode ser adquirida de duas formas:
- Natural: Ocorre pela transferência de anticorpos da mãe para o feto através da placenta (principalmente IgG) ou para o lactente através do colostro e do leite materno (principalmente IgA). Essa imunidade é vital para proteger o recém-nascido nos primeiros meses de vida.
- Artificial (Imunoterapia): Ocorre pela administração de preparações contendo anticorpos, como imunoglobulinas ou soros heterólogos (antivenenos). É utilizada para profilaxia pós-exposição (ex: imunoglobulina antirrábica, imunoglobulina antitetânica) ou para tratamento de doenças (ex: soro antiofídico).
Raciocínio Clínico
Um paciente com ferimento profundo e sujo, com status vacinal incerto para tétano, necessita de proteção imediata e duradoura. Por isso, a conduta é administrar tanto a imunoglobulina antitetânica (imunidade passiva artificial) para neutralizar a toxina imediatamente, quanto a vacina antitetânica (imunidade ativa artificial) para gerar memória imunológica a longo prazo. A imunoglobulina não interfere na resposta à vacina.
| Característica | Imunidade Ativa | Imunidade Passiva |
|---|---|---|
| Fonte | Produção própria de anticorpos pelo indivíduo | Recebimento de anticorpos pré-formados |
| Início da Proteção | Lento (dias a semanas) | Imediato |
| Duração da Proteção | Longa (anos ou vida inteira) | Curta (semanas a meses) |
| Memória Imunológica | Presente | Ausente |
| Exemplo Natural | Pós-infecção (ex: catapora) | Anticorpos maternos (via placenta/amamentação) |
| Exemplo Artificial | Vacinação | Administração de imunoglobulinas/soros |
Classificação das Vacinas: Vacinas Vivas Atenuadas
As vacinas vivas atenuadas contêm uma forma enfraquecida (atenuada) do vírus ou da bactéria causadora da doença. O processo de atenuação reduz a virulência do patógeno, tornando-o incapaz de causar doença em indivíduos imunocompetentes, mas mantendo sua capacidade de se replicar no organismo do hospedeiro.
Mecanismo de Ação
A replicação limitada do microrganismo atenuado mimetiza uma infecção natural subclínica. Isso desencadeia uma resposta imunológica robusta e completa, envolvendo tanto a imunidade humoral (produção de anticorpos, principalmente IgG e IgA de mucosas) quanto a imunidade celular (ativação de linfócitos T citotóxicos e T auxiliares). Essa resposta abrangente geralmente resulta em uma imunidade de longa duração, muitas vezes por toda a vida, com apenas uma ou duas doses.
Exemplos de Vacinas Vivas Atenuadas no PNI:
- BCG: Contra formas graves de tuberculose (miliar e meníngea).
- Rotavírus Humano: Contra gastroenterite por rotavírus.
- Poliomielite Oral (VOP): A famosa "gotinha", usada em campanhas de vacinação.
- Febre Amarela.
- Tríplice Viral (MMR): Contra Sarampo, Caxumba e Rubéola.
- Tetra Viral (MMRV): Contra Sarampo, Caxumba, Rubéola e Varicela.
- Varicela (Catapora).
Armadilhas do ENARE
A principal desvantagem e fonte de questões de prova sobre as vacinas vivas atenuadas são suas contraindicações. Por conterem agentes capazes de se replicar, elas são geralmente contraindicadas em indivíduos com imunodeficiência grave e em gestantes. A replicação descontrolada nesses pacientes pode levar ao desenvolvimento da doença que a vacina deveria prevenir. Exemplos de contraindicações incluem:
- Imunodeficiências congênitas graves.
- Pacientes com HIV/AIDS com contagem de linfócitos T-CD4+ muito baixa (geralmente < 200 células/mm³ para adultos, ou <15% para crianças).
- Pacientes em uso de altas doses de corticosteroides (>2 mg/kg/dia ou >20 mg/dia por mais de 14 dias) ou outras drogas imunossupressoras.
- Pacientes transplantados ou em quimioterapia.
- Gestantes (pelo risco teórico de infecção fetal).
Classificação das Vacinas: Vacinas Inativadas (Mortas)
As vacinas inativadas, também conhecidas como mortas, são compostas por vírus ou bactérias inteiros que foram inativados (mortos) por processos químicos (ex: formaldeído) ou físicos (ex: calor, radiação). Esses microrganismos não podem se replicar no hospedeiro e, portanto, são incapazes de causar a doença.
Mecanismo de Ação
Como não há replicação do agente, a carga antigênica é limitada à quantidade injetada. A resposta imune induzida é primariamente humoral, com produção de anticorpos. A resposta celular (linfócitos T) é menos intensa em comparação com as vacinas vivas. Por essa razão, as vacinas inativadas geralmente exigem um esquema de múltiplas doses (esquema primário) e doses de reforço (boosters) para alcançar e manter uma imunidade protetora.
Vantagens e Segurança
A principal vantagem das vacinas inativadas é a segurança. Por não conterem agentes vivos, não há risco de o agente vacinal causar a doença, mesmo em indivíduos imunocomprometidos ou gestantes. Elas são a escolha preferencial para esses grupos populacionais.
Exemplos de Vacinas Inativadas no PNI:
- Poliomielite Inativada (VIP): A forma injetável (vacina Salk), que compõe o esquema primário de vacinação contra a pólio no Brasil.
- Hepatite A.
- Influenza (Gripe): A maioria das formulações disponíveis.
- Raiva (uso humano).
- DTPw (Tríplice Bacteriana de Células Inteiras): O componente Pertussis (coqueluche) é uma bactéria inteira inativada.
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022)
A vacina da Hepatite A é um exemplo clássico de vacina inativada, composta pelo vírus inteiro tornado não-infeccioso. Ela faz parte do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e é administrada em dose única aos 15 meses de idade. Saber classificar a vacina da Hepatite A como inativada é um conhecimento de alta relevância para a prova.
Classificação das Vacinas: Subunitárias, Recombinantes, Polissacarídicas e Conjugadas
Este grupo de vacinas utiliza apenas partes específicas (antígenos) do microrganismo, em vez do agente inteiro. Isso as torna muito seguras, pois não há qualquer risco de causar a doença. São todas vacinas não-vivas.
Vacinas Subunitárias
Contêm apenas fragmentos purificados do patógeno que são mais imunogênicos, como proteínas ou polissacarídeos.
Exemplo: Vacina contra coqueluche acelular (o componente "aP" da DTaP e dTpa). Ela contém proteínas purificadas da Bordetella pertussis, em vez da bactéria inteira, o que causa menos reações adversas locais (dor, vermelhidão) e sistêmicas (febre) do que a vacina de células inteiras (DTPw).
Vacinas Recombinantes
São produzidas por meio de tecnologia de DNA recombinante. O gene que codifica um antígeno específico do patógeno é inserido em outro microrganismo (como uma levedura ou bactéria), que passa a produzir essa proteína em grande quantidade. A proteína é então purificada e usada na vacina.
Exemplos:
- Hepatite B: O gene que codifica o antígeno de superfície do vírus da hepatite B (HBsAg) é inserido em leveduras, que produzem o antígeno para a vacina.
- HPV (Papilomavírus Humano): Produzida a partir de proteínas do capsídeo viral que se auto-organizam em "partículas semelhantes a vírus" (VLPs - Virus-Like Particles), que são altamente imunogênicas, mas não contêm material genético.
Vacinas Polissacarídicas e Conjugadas
Esta é uma distinção fundamental, especialmente para a imunização infantil.
- Vacinas Polissacarídicas Puras (VPP): Utilizam os polissacarídeos (açúcares) da cápsula de bactérias como o pneumococo e o meningococo.
- Mecanismo: Induzem uma resposta imune T-independente. Isso significa que ativam os linfócitos B diretamente, sem a ajuda dos linfócitos T.
- Limitação Crítica: Essa resposta é ineficaz em crianças menores de 2 anos, cujo sistema imune ainda é imaturo. Além disso, não gera memória imunológica robusta nem reduz o estado de portador na nasofaringe.
- Exemplo: Vacina Pneumocócica Polissacarídica 23-valente (VPP23), indicada para idosos e grupos de risco acima de 2 anos.
- Vacinas Conjugadas: Representam um grande avanço tecnológico. Nelas, o antígeno polissacarídico é covalentemente ligado (conjugado) a uma proteína transportadora (carrier), como o toxoide tetânico ou diftérico.
- Mecanismo: A proteína transportadora é reconhecida pelos linfócitos T, que então "ajudam" os linfócitos B a montar uma resposta contra o polissacarídeo. Isso transforma a resposta em T-dependente.
- Vantagens: A resposta T-dependente é eficaz em lactentes jovens (a partir de 2 meses), induz memória imunológica duradoura, requer menos doses e reduz o estado de portador, contribuindo para a imunidade de rebanho.
- Exemplos no PNI: Vacina Pneumocócica Conjugada 10-valente (VPC10), Vacina Meningocócica C e ACWY (conjugadas), Vacina contra Haemophilus influenzae tipo b (Hib).
Raciocínio Clínico
Por que o PNI utiliza a vacina pneumocócica conjugada (VPC10) no primeiro ano de vida e reserva a polissacarídica (VPP23) para idosos? Porque o sistema imune de lactentes não responde adequadamente a antígenos polissacarídicos puros. A conjugação com uma proteína é a "chave" que permite ao sistema imune da criança pequena reconhecer o antígeno e montar uma defesa eficaz e duradoura. A VPP23, por ter uma cobertura maior de sorotipos, é útil em idosos, cujo sistema imune já é maduro.
Classificação das Vacinas: Toxoides e Novas Plataformas
Vacinas de Toxoide
Algumas bactérias causam doenças não pela sua proliferação, mas pela produção de potentes exotoxinas. As vacinas de toxoide são desenvolvidas para induzir uma resposta imune contra essas toxinas, e não contra a bactéria em si.
Mecanismo: A toxina bacteriana é purificada e depois inativada quimicamente (geralmente com formalina), transformando-a em um toxoide. O toxoide é atóxico, mas mantém sua imunogenicidade, induzindo a produção de anticorpos neutralizantes (antitoxinas).
Exemplos Clássicos:
- Toxoide Tetânico: Componente das vacinas contra o tétano (DT, DTPw, DTaP, dT, dTpa).
- Toxoide Diftérico: Componente das vacinas contra a difteria (DT, DTPw, DTaP, dT, dTpa).
Novas Plataformas Vacinais
A pandemia de COVID-19 acelerou o desenvolvimento e a implementação de plataformas vacinais inovadoras, que são tópicos de alta relevância para provas recentes.
- Vacinas de mRNA (RNA mensageiro):
- Mecanismo: A vacina contém uma molécula de mRNA que codifica um antígeno específico do patógeno (ex: a proteína Spike do SARS-CoV-2). Esse mRNA é encapsulado em uma nanopartícula lipídica para protegê-lo e facilitar sua entrada nas células do hospedeiro. Uma vez dentro da célula, os ribossomos "leem" o mRNA e produzem a proteína antigênica. Essa proteína é então apresentada ao sistema imune, que monta uma resposta humoral e celular robusta.
- Características: O mRNA não entra no núcleo da célula e não se integra ao DNA do hospedeiro. É degradado rapidamente.
- Exemplos: Vacinas da Pfizer/BioNTech e Moderna contra a COVID-19.
- Vacinas de Vetor Viral:
- Mecanismo: Utiliza um vírus inofensivo e não replicante (o vetor, geralmente um adenovírus) que foi geneticamente modificado para carregar o gene do antígeno de interesse. O vetor viral infecta as células do hospedeiro e entrega o material genético, que instrui a célula a produzir a proteína antigênica, desencadeando a resposta imune.
- Características: O vetor é escolhido por sua segurança e eficiência em entregar o gene. Não causa doença no hospedeiro.
- Exemplos: Vacinas da AstraZeneca/Oxford e Janssen (Johnson & Johnson) contra a COVID-19; vacina contra o Ebola.
Adjuvantes e Componentes Vacinais
Além do antígeno, as vacinas contêm outros componentes essenciais para sua eficácia, estabilidade e segurança.
Adjuvantes
Definição: Adjuvantes são substâncias adicionadas a vacinas (principalmente as não-vivas, como inativadas, subunitárias e de toxoide) para potencializar a resposta imune ao antígeno.
Mecanismo de Ação: Eles funcionam de várias maneiras, principalmente criando uma inflamação localizada no local da injeção. Isso cria um "efeito de depósito", liberando o antígeno lentamente e atraindo células apresentadoras de antígenos (APCs) para o local. O resultado é uma resposta imune mais forte, mais rápida e mais duradoura, permitindo o uso de uma menor quantidade de antígeno na vacina.
Exemplo Principal: Os adjuvantes mais comuns são os sais de alumínio (hidróxido de alumínio, fosfato de alumínio). São usados há décadas e têm um perfil de segurança bem estabelecido. São responsáveis por algumas reações locais comuns, como dor e formação de nódulos no local da aplicação.
Outros Componentes
- Conservantes: Adicionados a frascos de múltiplas doses para prevenir a contaminação por bactérias ou fungos após a abertura. O timerosal (um composto contendo mercúrio) foi historicamente usado, mas hoje é raro em vacinas de uso pediátrico no PNI.
- Estabilizantes: Substâncias como açúcares (sacarose), aminoácidos (glutamato) ou proteínas (gelatina, albumina) são usadas para proteger os antígenos durante o armazenamento e transporte, evitando que percam sua eficácia devido a variações de temperatura ou luz.
- Antibióticos: Pequenas quantidades de antibióticos (como neomicina ou polimixina B) podem ser usadas durante o processo de fabricação para prevenir a contaminação bacteriana e podem estar presentes em quantidades residuais na vacina final.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) e os Tipos de Vacinas
Conhecer o tipo de cada vacina do calendário do PNI é fundamental, pois determina suas indicações, contraindicações e o tipo de resposta imune esperada. A tabela abaixo resume as principais vacinas do calendário infantil e sua classificação.
| Vacina | Doenças Prevenidas | Tipo de Vacina |
|---|---|---|
| BCG | Formas graves de Tuberculose | Viva Atenuada (bacteriana) |
| Hepatite B | Hepatite B | Recombinante (proteína de superfície) |
| Pentavalente (DTPw/Hib/HB) | Difteria, Tétano, Coqueluche, Haemophilus influenzae b, Hepatite B | Combinada: Toxoide (D, T), Inativada de célula inteira (Pw), Conjugada (Hib), Recombinante (HB) |
| VIP (Salk) | Poliomielite | Inativada (vírus inteiro) |
| VOP (Sabin) | Poliomielite | Viva Atenuada (vírus) |
| Rotavírus | Gastroenterite por Rotavírus | Viva Atenuada (vírus) |
| Pneumocócica 10-valente (VPC10) | Doenças pneumocócicas invasivas | Conjugada (polissacarídeo + proteína) |
| Meningocócica C / ACWY | Doença meningocócica | Conjugada (polissacarídeo + proteína) |
| Febre Amarela | Febre Amarela | Viva Atenuada (vírus) |
| Tríplice Viral (MMR) | Sarampo, Caxumba, Rubéola | Viva Atenuada (vírus) |
| Hepatite A | Hepatite A | Inativada (vírus inteiro) |
| Varicela | Varicela (Catapora) | Viva Atenuada (vírus) |
| HPV | Infecções por Papilomavírus Humano | Recombinante (Partículas Semelhantes a Vírus - VLP) |
| dTpa (Tríplice bacteriana acelular do tipo adulto) | Difteria, Tétano, Coqueluche | Combinada: Toxoide (d, T), Subunitária Acelular (pa) |
