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Reparo de Laceração Facial

As lacerações faciais são definidas como soluções de continuidade na pele e tecidos moles da face, resultantes de trauma. Representam uma das queixas mais frequentes nos serviços de emergência, com alta incidência em populações pediátricas e adultos jovens, frequentemente associadas a quedas, acidentes automobilísticos, agressões e acidentes esportivos. A abordagem a estas lesões transcende a simples restauração da integridade tecidual; ela exige uma meticulosa atenção aos detalhes para restaurar a função (mímica facial, continência oral, proteção ocular) e alcançar um resultado estético ótimo, minimizando a formação de cicatrizes e deformidades que podem ter um profundo impacto psicossocial no paciente.

Avaliação Inicial e do Paciente

A avaliação de um paciente com laceração facial inicia-se, invariavelmente, com a abordagem primária do trauma, seguindo o protocolo ATLS® (Advanced Trauma Life Support). Lesões faciais, por mais dramáticas que pareçam, são secundárias a condições que ameaçam a vida.

  • A (Airway): Vias aéreas com proteção da coluna cervical. Trauma facial extenso pode comprometer a via aérea por sangramento, edema, ou fraturas.
  • B (Breathing): Ventilação e respiração.
  • C (Circulation): Circulação com controle de hemorragia.

Somente após a estabilização do paciente e a exclusão de lesões de risco iminente de vida, o foco se volta para a avaliação detalhada da ferida facial.

Anamnese Direcionada

Uma história clínica concisa é fundamental para guiar o manejo.

  • Mecanismo do Trauma: É crucial diferenciar entre trauma cortante (incisões com bordas nítidas, menor desvitalização tecidual) e trauma contuso/corto-contuso (lacerações com bordas irregulares, esmagamento, maior risco de isquemia e necrose).
  • Tempo Decorrido: O conceito clássico do "período de ouro" de 6 a 8 horas para fechamento primário é mais flexível na face devido à sua rica vascularização. Feridas com até 24 horas, se bem limpas, podem frequentemente ser fechadas primariamente.
  • Potencial de Contaminação: Questionar sobre o ambiente do trauma (asfalto, terra, vidro) e a possibilidade de contaminação específica, como saliva em casos de mordeduras (humanas ou animais).
  • Status da Imunização Antitetânica: A profilaxia deve ser realizada conforme as diretrizes do Ministério da Saúde, baseando-se no histórico vacinal do paciente e no tipo de ferida.

Exame Físico Detalhado

A inspeção e palpação cuidadosas da ferida e das estruturas adjacentes são essenciais para um planejamento terapêutico adequado.

  • Avaliação da Ferida: Analisar profundidade, extensão, configuração (linear, estrelada, com retalho) e a presença de corpos estranhos visíveis.
  • Avaliação Neurológica:
    • Nervo Facial (NC VII): Testar a função de todos os ramos motores. Peça ao paciente para "franzir a testa" (ramo temporal), "fechar os olhos com força" (ramo zigomático), "mostrar os dentes" ou "sorrir" (ramo bucal), e "contrair o pescoço" (ramo cervical). Uma lesão suspeita, especialmente lateral à linha pupilar, exige avaliação por um especialista.
    • Nervos Sensitivos: Testar a sensibilidade nas áreas supridas pelos nervos supraorbital, infraorbital e mentoniano (ramos do NC V).
  • Avaliação de Ductos:
    • Ducto Parotídeo (de Stensen): Uma laceração na bochecha, ao longo de uma linha que vai do trago à comissura labial, deve levantar a suspeita de lesão. A presença de saliva na ferida é um sinal clássico. A canulação do ducto intraoralmente pode confirmar a sua integridade.
    • Sistema Lacrimal: Lacerações no canto medial do olho podem lesar os canalículos lacrimais. A suspeita de lesão requer avaliação oftalmológica.
  • Avaliação de Estruturas Profundas: Palpar as bordas ósseas em busca de degraus ou crepitações que sugiram fraturas subjacentes (e.g., arco zigomático, rebordo orbitário). Inspecionar a ferida em busca de exposição de cartilagem (nariz, orelha) ou osso.

Raciocínio Clínico

Diante de uma laceração profunda na bochecha, a primeira pergunta a se fazer após o ABCDE é: "Onde está o nervo facial e o ducto parotídeo?". A falha em diagnosticar e reparar essas estruturas pode levar a sequelas funcionais e estéticas permanentes, como paralisia facial e fístula salivar. A avaliação funcional pré-anestésica é mandatória.

Preparo da Ferida

O preparo adequado da ferida é um passo tão ou mais importante que a própria sutura para garantir um bom resultado e minimizar o risco de infecção.

Hemostasia

O controle do sangramento é o primeiro passo. A grande maioria das hemorragias de lacerações faciais pode ser controlada com pressão direta e firme por 5 a 10 minutos. Para sangramentos persistentes, as opções incluem:

  • Anestésico com Vasoconstritor: A infiltração de lidocaína com epinefrina é altamente eficaz. A epinefrina causa vasoconstrição local, reduzindo o sangramento e prolongando o efeito anestésico.
  • Ligadura de Vasos: Vasos arteriais visíveis podem ser pinçados com uma pinça hemostática e ligados com um fio absorvível fino (e.g., 5-0 Vicryl).

Anestesia

A analgesia adequada é essencial para o conforto do paciente e para permitir um reparo meticuloso.

  • Anestésicos Tópicos: Géis como o LET (Lidocaína, Epinefrina, Tetracaína) são excelentes opções, especialmente em crianças, aplicados na ferida por 20-30 minutos antes do procedimento.
  • Anestesia Infiltrativa Local: A injeção de anestésico (lidocaína 1-2% ou bupivacaína 0.25-0.5%) é o método mais comum. A técnica de injetar lentamente através das bordas já lesadas da ferida é menos dolorosa do que através da pele íntegra.
  • Bloqueios de Nervos Regionais: Para lacerações maiores, bloqueios dos nervos supraorbital, infraorbital ou mentoniano são ideais, pois anestesiam uma área ampla com menos agulhadas e sem distorcer a anatomia da ferida com o volume do anestésico.

Irrigação e Desbridamento

  • Irrigação: O princípio é "a solução para a poluição é a diluição". Utiliza-se irrigação copiosa, sob pressão, para remover mecanicamente bactérias e detritos. Soro fisiológico 0,9% é o padrão, mas estudos demonstram que água potável da torneira é igualmente eficaz para feridas não complicadas. A técnica mais prática no pronto-socorro envolve uma seringa de 20-60 mL com um cateter intravenoso (jelco) para gerar um jato de alta pressão.
  • Desbridamento: Consiste na remoção de todo tecido desvitalizado, necrótico ou grosseiramente contaminado. Na face, o desbridamento deve ser extremamente conservador, utilizando uma lâmina de bisturi nº 15 ou tesoura de íris para criar bordas nítidas e viáveis, preservando o máximo de tecido possível.

Princípios do Reparo Cirúrgico e Seleção de Fios

A técnica de sutura na face visa não apenas aproximar as bordas, mas também minimizar a tensão e promover uma cicatrização com o melhor resultado estético possível.

Técnicas Fundamentais

  • Reparo em Camadas (Layered Closure): É o princípio mais importante para feridas profundas.
    1. Camada Profunda: Músculo e fáscia são aproximados com suturas absorvíveis (e.g., Vicryl®, Monocryl® 4-0 ou 5-0). Isso elimina o espaço morto (prevenindo hematomas) e, crucialmente, alivia a tensão da pele.
    2. Camada Dérmica: A derme é aproximada com suturas dérmicas profundas ou intradérmicas, também com fios absorvíveis (e.g., Vicryl®, Monocryl® 5-0 ou 6-0). Esta é a sutura que realmente suporta a tensão da ferida.
    3. Pele (Epiderme): A camada final é fechada com a menor tensão possível, usando fios não absorvíveis e finos (e.g., Nylon, Prolene® 6-0). O objetivo aqui é apenas alinhar as bordas.
  • Eversão das Bordas: Ao passar a agulha, o ponto deve ser mais largo na base (derme) e mais estreito na superfície (epiderme), fazendo com que as bordas da ferida se elevem ligeiramente. Isso é fundamental porque as cicatrizes tendem a se contrair e achatar com o tempo; a eversão inicial compensa essa contração, resultando em uma cicatriz plana e menos visível.

Seleção do Material de Sutura

A escolha do fio e da agulha corretos é vital. Para a pele da face, agulhas de corte reverso ou cortantes (triangulares) são preferidas.

Localização Fio para Pele (Não Absorvível) Fio para Camadas Profundas (Absorvível) Remoção (dias)
Pálpebras Nylon/Prolene 6-0 ou 7-0 Vicryl/Monocryl 6-0 3-5
Nariz, Lábios, Sobrancelha Nylon/Prolene 6-0 Vicryl/Monocryl 5-0 5-7
Fronte, Bochecha Nylon/Prolene 6-0 Vicryl/Monocryl 5-0 5-7
Queixo, Couro Cabeludo Nylon/Prolene 5-0 Vicryl/Monocryl 4-0 7-10
Orelha Nylon/Prolene 6-0 Vicryl/Monocryl 5-0 (pericôndrio) 5-7

Armadilhas do ENARE: Análise de Caso (Baseado em ENARE 2023)

Cenário: Criança de 5 anos, agitada, com laceração de 3 cm no queixo. Qual a conduta mais adequada?

Análise do Raciocínio:

  • Contenção: O primeiro passo prático é reconhecer a necessidade de auxílio para contenção física e suporte psicológico. Uma criança não cooperativa impossibilita um reparo adequado.
  • Anestesia: Lidocaína sem vasoconstritor é a escolha mais segura. Embora a epinefrina seja útil, o risco de toxicidade sistêmica é maior em crianças, e evita-se seu uso em áreas de circulação potencialmente terminal por precaução (embora o queixo não seja um exemplo clássico como a ponta do nariz).
  • Seleção do Fio: O queixo é uma área de alta mobilidade e tensão. Um fio Nylon 5-0 é a escolha ideal para a pele, pois oferece resistência adequada. Um fio 6-0 poderia ser muito fino e romper.

Conclusão da Banca: A questão valoriza a integração do conhecimento técnico (escolha do fio) com a segurança do paciente (anestésico) e a realidade prática do atendimento pediátrico (contenção).

Técnicas para Áreas Anatômicas Específicas

  • Lábios: O alinhamento da borda do vermelhão é o passo mais crítico. O primeiro ponto da sutura deve ser dado exatamente nesta linha de transição, usando um fio 6-0 (Nylon ou Prolene). Uma vez que este marco anatômico esteja perfeitamente alinhado, o restante da ferida (pele e mucosa) pode ser fechado. Um desalinhamento de apenas 1 mm será cosmeticamente muito perceptível.
  • Pálpebras: Lacerações que envolvem a margem palpebral, a placa tarsal ou o canto medial (suspeita de lesão do sistema lacrimal) devem ser referenciadas a um oftalmologista. Lacerações simples, superficiais e paralelas à margem podem ser fechadas com fio 6-0 ou 7-0.
  • Orelhas: O objetivo principal é cobrir a cartilagem para prevenir condrite e necrose. A cartilagem em si raramente precisa ser suturada. O pericôndrio deve ser aproximado com suturas absorvíveis finas (5-0 ou 6-0), seguido pelo fechamento da pele. Um curativo compressivo (bolster) pode ser necessário para prevenir o hematoma auricular ("orelha de couve-flor").
  • Nariz e Sobrancelhas: A chave é o alinhamento preciso de marcos cosméticos, como a borda da asa nasal ou as linhas do filtro labial. Para as sobrancelhas, a regra de ouro é NUNCA raspar os pelos, pois eles servem como guia essencial para o alinhamento e podem não crescer novamente.

Cuidados Pós-operatórios e Complicações

Cuidados com a Ferida

  • Curativo: Aplicação de uma fina camada de pomada antibiótica (e.g., bacitracina, mupirocina) e um curativo estéril. A pomada mantém o ambiente úmido, o que acelera a epitelização e evita a formação de crostas que podem prender os pontos.
  • Orientações ao Paciente: Instruir a manter a ferida limpa e seca nas primeiras 24-48 horas. Ensinar a reconhecer sinais de infecção (eritema crescente, dor, edema, secreção purulenta, febre).
  • Remoção dos Pontos: Deve ser feita no tempo adequado (ver tabela acima) para evitar as "marcas de trilho de trem" (cicatrizes dos pontos).
  • Manejo da Cicatriz: Após a remoção dos pontos e a cicatrização completa, orientar o uso rigoroso de protetor solar (FPS > 50) por pelo menos 6-12 meses para prevenir hiperpigmentação. Massagem da cicatriz e uso de fitas ou géis de silicone podem ajudar a melhorar o resultado final.

Complicações Potenciais

  • Infecção: A complicação mais comum, apesar da excelente vascularização facial.
  • Hematoma: Acúmulo de sangue sob a pele, geralmente por hemostasia inadequada.
  • Deiscência: Abertura da ferida, causada por tensão excessiva, infecção ou técnica inadequada.
  • Lesão Nervosa: Pode ser temporária (neuropraxia) ou permanente (neurotmese).
  • Cicatrização Desfavorável: Cicatrizes hipertróficas, queloides, alargadas ou deprimidas.

Populações Especiais

Pacientes Pediátricos

O reparo de lacerações em crianças exige uma abordagem diferenciada. A contenção física segura (enrolamento em lençol ou "papoose board") é frequentemente necessária. O suporte psicológico dos pais e da equipe é fundamental. Para o reparo, alternativas à sutura tradicional são valiosas:

  • Adesivos Tissulares (Cianoacrilato): Excelente opção para lacerações lineares, limpas e de baixa tensão. É rápido, indolor e não requer remoção.
  • Fios Absorvíveis para a Pele: O uso de fios como categute simples ou Vicryl Rapide® pode evitar o trauma da remoção dos pontos.
  • Sedação Procedural: Em casos selecionados e em ambiente controlado, fármacos como cetamina ou midazolam podem ser utilizados para facilitar o procedimento.

Mordeduras (Humanas e Animais)

Mordeduras são consideradas feridas de alto risco para infecção devido à inoculação de polimicrobianos da flora oral.

  • Patógenos Comuns: Pasteurella canis (cães), Pasteurella multocida (gatos), Eikenella corrodens (humanos), além de Estafilococos, Estreptococos e anaeróbios.
  • Profilaxia Antibiótica: É fortemente recomendada. A droga de escolha é a amoxicilina-clavulanato, que oferece cobertura para a maioria dos patógenos envolvidos.
  • Decisão sobre o Fechamento: Existe controvérsia. A prática atual pende para o fechamento primário da maioria das mordeduras faciais após irrigação exaustiva e desbridamento, devido à importância estética e à robusta vascularização da face que combate a infecção. Feridas por esmagamento graves, puntiformes ou com sinais de infecção já estabelecida podem ser tratadas com fechamento primário tardio (após 3-5 dias de antibioticoterapia e curativos).
  • Profilaxia Adicional: Avaliar sempre a necessidade de profilaxia para raiva e tétano.
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