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Laringotraqueíte Viral (Crupe)

Introdução & Epidemiologia

A Laringotraqueíte Viral, mais conhecida como Crupe, é uma das causas mais comuns de obstrução aguda de vias aéreas superiores em crianças. Define-se como uma infecção viral que provoca inflamação e edema predominantemente na região da laringe e da traqueia, especificamente na área subglótica. É uma condição autolimitada na maioria dos casos, mas que pode gerar grande ansiedade nos pais e, em situações mais graves, levar à insuficiência respiratória.

Os principais agentes etiológicos são os vírus, com destaque para:

  • Vírus Parainfluenza (tipos 1, 2 e 3): São responsáveis por aproximadamente 75% dos casos. O tipo 1 é o mais comum e está associado a epidemias no outono. O tipo 2 pode causar surtos esporádicos, e o tipo 3 tende a causar doença mais grave, especialmente em lactentes jovens.
  • Vírus Sincicial Respiratório (VSR): Embora mais conhecido por causar bronquiolite, também é um agente frequente de crupe.
  • Influenza A e B: Podem causar quadros de crupe mais graves e com maior toxicidade sistêmica.
  • Adenovírus e Metapneumovírus Humano: São causas menos comuns, mas devem ser consideradas.

A epidemiologia do crupe é bastante característica. A faixa etária mais acometida é de 6 meses a 3 anos de idade, com um pico de incidência por volta dos 2 anos. É mais comum em meninos do que em meninas. A sazonalidade é marcante, com a maioria dos casos ocorrendo durante o outono e o início do inverno, coincidindo com a circulação dos vírus Parainfluenza.

Raciocínio Clínico

Por que a faixa etária de 6 meses a 3 anos é a mais vulnerável? A anatomia da via aérea pediátrica é a chave. Nessa idade, a região subglótica, circundada pelo anel completo da cartilagem cricoide, é a porção mais estreita da via aérea. Um pequeno edema nessa área, que seria insignificante em um adulto, pode causar uma obstrução crítica em uma criança pequena, devido ao diâmetro já reduzido da sua traqueia.

Fisiopatologia

A fisiopatologia do crupe é uma consequência direta da resposta inflamatória à infecção viral na via aérea superior. O processo se desenrola da seguinte forma:

  1. Inoculação Viral: O vírus entra no organismo através da mucosa nasal ou da conjuntiva.
  2. Replicação e Disseminação: O vírus se replica no epitélio respiratório do nariz e da nasofaringe, causando sintomas prodrômicos como coriza e febre baixa. Em seguida, ele se dissemina para a laringe e a traqueia.
  3. Inflamação Subglótica: A resposta inflamatória do hospedeiro é desencadeada na mucosa da região subglótica. Há vasodilatação, aumento da permeabilidade capilar e infiltração de células inflamatórias (neutrófilos, linfócitos, macrófagos).
  4. Edema e Estreitamento: Essa cascata inflamatória resulta em um edema significativo da mucosa e submucosa. Como a cartilagem cricoide forma um anel rígido e inextensível, o edema se projeta para o lúmen da via aérea, causando um estreitamento crítico.
  5. Manifestações Clínicas:
    • Estridor Inspiratório: O fluxo de ar turbulento passando pela via aérea estreitada durante a inspiração gera o som agudo característico do estridor. É predominantemente inspiratório porque a pressão extratorácica negativa durante a inspiração tende a colabar ainda mais a via aérea superior já edemaciada.
    • Tosse "de Cachorro" ou Metálica: A inflamação das cordas vocais e da traqueia altera a vibração normal, resultando em uma tosse de som rouco e peculiar, frequentemente comparada ao latido de uma foca ou cachorro.
    • Rouquidão: O edema das cordas vocais (laringite) causa a disfonia ou rouquidão.

A gravidade dos sintomas está diretamente relacionada ao grau de estreitamento da via aérea. Em casos graves, o trabalho respiratório aumenta drasticamente, podendo levar à fadiga muscular, hipoxemia e insuficiência respiratória.

Apresentação Clínica & Exame Físico

O quadro clínico do crupe é tipicamente estereotipado. A história clássica começa com um pródromo viral de 1 a 3 dias, caracterizado por coriza, congestão nasal, faringite e febre baixa. Após esse período, os sintomas de obstrução da via aérea superior surgem, muitas vezes de forma abrupta e durante a noite.

A tríade clássica do crupe consiste em:

  1. Tosse Ladrante (ou "de cachorro"): Uma tosse seca, rouca e de som metálico.
  2. Estridor Inspiratório: Um som agudo e de alta frequência ouvido durante a inspiração. Em casos leves, pode estar presente apenas durante o choro ou agitação. Em casos graves, está presente em repouso.
  3. Rouquidão (Disfonia): A voz da criança torna-se áspera e fraca.

No exame físico, o objetivo principal é avaliar a gravidade da obstrução e o grau de desconforto respiratório. A avaliação deve ser feita com a criança o mais calma possível, idealmente no colo dos pais, pois a agitação piora a obstrução. Os principais pontos a serem observados são:

  • Nível de Consciência: Agitação pode indicar hipóxia, enquanto letargia ou sonolência são sinais de hipercapnia e falência respiratória iminente.
  • Tiragem Respiratória (Retrações): Observar o uso de musculatura acessória. A presença de tiragem subcostal, intercostal, de fúrcula e batimento de asa de nariz indica aumento do trabalho respiratório.
  • Estridor em Repouso: A presença de estridor quando a criança está calma é um sinal de obstrução mais significativa.
  • Entrada de Ar: A ausculta pulmonar é fundamental para avaliar a qualidade da entrada de ar. Uma diminuição acentuada do murmúrio vesicular é um sinal de alarme, indicando obstrução grave.
  • Cianose: É um sinal tardio e grave de hipoxemia.

Escore de Westley para Crupe

Para objetivar a avaliação da gravidade e guiar o tratamento, utiliza-se o Escore de Westley. É a ferramenta mais validada e cobrada em provas.

Parâmetro Clínico Achado Pontos
Nível de Consciência Normal 0
Desorientado 5
(Avalia a perfusão cerebral)
Cianose Ausente 0
Com agitação 4
Em repouso 5
Estridor Ausente 0
Com agitação 1
Em repouso 2
Entrada de Ar Normal 0
Diminuída 1
Muito diminuída 2
Retrações Ausentes 0
Leves 1
Moderadas 2
Graves 3
Interpretação do Escore Total Classificação
≤ 2 Crupe Leve
3 - 7 Crupe Moderado
≥ 8 Crupe Grave
≥ 12 Insuficiência Respiratória Iminente

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico do crupe viral é eminentemente clínico. A combinação da faixa etária típica, história de pródromo viral e a tríade clássica de tosse ladrante, estridor inspiratório e rouquidão é suficiente para firmar o diagnóstico na grande maioria dos casos. Exames complementares são raramente necessários e devem ser reservados para casos atípicos, graves ou quando há dúvida diagnóstica.

Radiografia Cervical

A radiografia anteroposterior (AP) do pescoço não é um exame de rotina. Sua principal utilidade é no diagnóstico diferencial. O achado clássico no crupe é o "sinal da torre de igreja" ou "sinal do lápis", que representa o estreitamento da coluna de ar na região subglótica devido ao edema. No entanto, a ausência desse sinal não exclui o diagnóstico, e sua presença não é patognomônica. A radiografia lateral pode ajudar a excluir outras condições, como a epiglotite (sinal do "polegar") ou um abscesso retrofaríngeo.

Armadilhas do ENARE

Questões de prova frequentemente testam a indicação de exames. Lembre-se: em um caso clássico de crupe leve a moderado, solicitar uma radiografia de pescoço é considerado inadequado e um desperdício de recursos. O exame pode agitar a criança, piorando o desconforto respiratório, e a exposição à radiação deve ser evitada. A indicação é para quadros que não respondem ao tratamento, apresentação atípica ou suspeita de diagnósticos diferenciais.

Diagnósticos Diferenciais

É crucial diferenciar o crupe de outras causas de obstrução de via aérea superior. A tabela abaixo resume as principais diferenças:

Condição Etiologia Clínica Principal Achados Chave
Laringotraqueíte Viral (Crupe) Viral (Parainfluenza) Início gradual, febre baixa, tosse ladrante, estridor inspiratório, rouquidão. Pródromo viral. Piora à noite. Rx: Sinal da "torre de igreja".
Epiglotite Aguda Bacteriana (H. influenzae tipo b) Início súbito, febre alta, aparência toxemiada, disfagia, sialorreia, estridor abafado. Posição de "tripé". Sem tosse. Emergência médica. Rx: Sinal do "polegar".
Aspiração de Corpo Estranho Mecânica Início súbito de engasgo, tosse e estridor, sem pródromo viral ou febre. História de presenciar o engasgo. Estridor pode ser bifásico. Ausculta assimétrica se for brônquico.
Traqueíte Bacteriana Bacteriana (S. aureus) Aparência tóxica, febre alta, estridor, tosse produtiva. Frequentemente segue um quadro viral. "Crupe que não melhora". Piora progressiva apesar do tratamento. Leucocitose com desvio.
Abscesso Retrofaríngeo Bacteriana (Polimicrobiana) Febre, dor de garganta, disfagia, torcicolo, voz "de batata quente". Criança pequena, recusa alimentar, hiperextensão do pescoço. Rx lateral: Aumento do espaço pré-vertebral.

Tratamento e Manejo

O manejo do crupe é estratificado de acordo com a gravidade, avaliada pelo Escore de Westley. O objetivo é reduzir o edema da via aérea e diminuir o trabalho respiratório.

Crupe Leve (Escore ≤ 2)

Pacientes com crupe leve (tosse ladrante, mas sem estridor em repouso ou tiragem significativa) podem ser manejados ambulatorialmente.

  • Medidas de Suporte: Manter a criança calma, hidratada e confortável. A exposição ao ar frio e úmido (ar noturno ou vapor do chuveiro) pode proporcionar alívio sintomático, embora a evidência científica seja limitada.
  • Corticosteroides: O pilar do tratamento farmacológico. Uma dose única de dexametasona é recomendada para todos os pacientes com crupe, incluindo os casos leves. Isso reduz a inflamação, diminui a gravidade dos sintomas e a necessidade de retorno ao serviço de saúde.
    • Dexametasona: A dose é de 0,15 a 0,6 mg/kg (dose máxima de 10-12 mg), administrada por via oral (VO) ou intramuscular (IM). A via oral é preferível por ser menos invasiva. O efeito começa em 1 a 2 horas e dura até 72 horas.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022)

É indicado o uso de corticosteroide oral ou parenteral para o tratamento de crupe leve. Esta é uma mudança de paradigma em relação a práticas mais antigas. A evidência atual suporta fortemente o uso de dexametasona em dose única para todos os níveis de gravidade, pois acelera a resolução dos sintomas e previne a progressão da doença.

Crupe Moderado a Grave (Escore 3-7 e ≥ 8)

Pacientes com estridor em repouso, tiragem visível e desconforto respiratório necessitam de intervenção mais agressiva e, geralmente, de observação hospitalar.

  • Corticosteroides: A dexametasona (0,6 mg/kg, VO ou IM) é a primeira linha e deve ser administrada imediatamente. Em pacientes graves que não conseguem deglutir ou com acesso venoso, a via IM ou IV pode ser utilizada. A budesonida nebulizada é uma alternativa, mas a dexametasona é mais utilizada pela facilidade e custo.
  • Epinefrina (Adrenalina) Nebulizada: Indicada para crupe moderado a grave. Atua como um potente vasoconstritor tópico, diminuindo rapidamente o edema da mucosa subglótica e aliviando a obstrução.
    • Mecanismo de Ação: Estimulação de receptores alfa-adrenérgicos na vasculatura da mucosa da via aérea.
    • Administração: Utiliza-se a L-epinefrina (1:1000) na dose de 0,5 mL/kg (máximo de 5 mL) via nebulização.
    • Efeito: O início de ação é rápido (10-30 minutos), mas o efeito é transitório, durando cerca de 2 horas.
  • Oxigenoterapia: Oferecer oxigênio suplementar (geralmente por máscara ou cateter) para pacientes com saturação de O2 < 92% ou com sinais de desconforto respiratório grave.
  • Observação Clínica: Após a administração de epinefrina nebulizada, o paciente deve ser mantido em observação por um período de 3 a 4 horas para monitorar a possibilidade de efeito rebote, que é o retorno dos sintomas após o término do efeito do medicamento. Se o paciente permanecer estável e sem estridor em repouso após esse período, a alta pode ser considerada.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2023, 2020)

A epinefrina inalatória, usada em casos mais graves, tem um efeito terapêutico breve e transitório, podendo haver retorno dos sintomas após o término da sua ação (efeito rebote). Por essa razão, a observação clínica prolongada (mínimo de 3 horas) após sua administração é mandatória antes de decidir pela alta hospitalar. Uma questão pode apresentar um paciente que melhora após a nebulização e perguntar a conduta seguinte: a resposta correta será "manter em observação", e não "alta imediata".

Pacientes com crupe grave (Escore ≥ 8) ou com insuficiência respiratória iminente (Escore ≥ 12) devem ser admitidos em unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP). O manejo pode incluir heliox (mistura de hélio e oxigênio) para diminuir a turbulência do fluxo aéreo e, em casos refratários, intubação orotraqueal.

Complicações & Prognóstico

Embora a maioria dos casos de crupe seja leve e autolimitada, complicações podem ocorrer, especialmente em quadros mais graves ou em pacientes com comorbidades.

  • Insuficiência Respiratória: A complicação mais temida. Ocorre devido à obstrução grave da via aérea e/ou fadiga da musculatura respiratória. Requer manejo em UTIP e, por vezes, via aérea artificial.
  • Traqueíte Bacteriana Secundária: É uma superinfecção bacteriana da traqueia, geralmente por Staphylococcus aureus. Suspeita-se em uma criança com crupe que apresenta piora súbita, febre alta, aparência tóxica e secreção purulenta na via aérea. É uma emergência médica que exige antibioticoterapia intravenosa e, frequentemente, broncoscopia para limpeza das secreções.
  • Outras: Pneumonia, otite média aguda e desidratação são outras complicações possíveis.

O prognóstico geral é excelente. Menos de 5% dos pacientes que procuram o serviço de emergência necessitam de internação, e a necessidade de intubação é rara (menos de 1%). A recuperação completa, sem sequelas a longo prazo, é a regra.

Populações Especiais

Lactentes com Menos de 6 Meses

O crupe é incomum nesta faixa etária. Quando um lactente jovem apresenta estridor, um leque mais amplo de diagnósticos diferenciais deve ser considerado, incluindo:

  • Anomalias Congênitas: Laringomalácia (causa mais comum de estridor crônico no lactente), estenose subglótica congênita, anéis vasculares, hemangiomas subglóticos.
  • Causas Infecciosas: Além dos vírus típicos, deve-se pensar em infecções mais graves.

A investigação nesses casos pode necessitar de exames de imagem mais avançados ou avaliação por um especialista (otorrinolaringologista ou pneumologista pediátrico).

Crianças com Anormalidades de Via Aérea ou Imunocomprometidas

Crianças com condições preexistentes, como estenose subglótica (congênita ou adquirida por intubação prévia), ou pacientes imunocomprometidos podem apresentar quadros de crupe mais graves e prolongados. O limiar para internação e tratamento agressivo deve ser menor nesses pacientes, pois eles possuem menor reserva fisiológica para tolerar o edema da via aérea.

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