Infecções com Manifestações Cervicais
A linfadenopatia cervical é uma queixa extremamente comum na prática clínica, abrangendo um vasto espectro de diagnósticos diferenciais, desde condições benignas e autolimitadas até doenças graves e potencialmente fatais. Para o candidato do ENARE, é fundamental dominar a abordagem sistemática para diferenciar as causas infecciosas, que são as mais prevalentes, das causas neoplásicas e inflamatórias. Este capítulo foca nas principais infecções que se manifestam com linfadenopatia cervical, com ênfase no raciocínio clínico e nos pontos-chave para as provas.
Introdução & Epidemiologia
Linfadenopatia cervical é definida como o aumento do tamanho dos linfonodos na região do pescoço, geralmente considerados anormais quando maiores que 1 cm de diâmetro. Os linfonodos são componentes essenciais do sistema imunológico, atuando como filtros que capturam antígenos e iniciam a resposta imune. Seu aumento reflete uma proliferação de linfócitos e outras células imunes em resposta a um estímulo.
As causas variam significativamente com a idade do paciente, sendo as etiologias infecciosas muito mais comuns em crianças e adultos jovens, enquanto o risco de malignidade aumenta progressivamente com a idade.
Causas Comuns por Faixa Etária
- Crianças e Adultos Jovens:
- Virais (mais comuns): Infecções de vias aéreas superiores (adenovírus, rinovírus), Mononucleose Infecciosa (Vírus Epstein-Barr - EBV), Citomegalovírus (CMV), Rubéola, e a infecção aguda pelo HIV.
- Bacterianas: Faringoamigdalite estreptocócica (Streptococcus pyogenes), linfadenite bacteriana aguda (Staphylococcus aureus, S. pyogenes), Doença da Arranhadura do Gato (Bartonella henselae), e tuberculose ganglionar (escrófula).
- Adultos (> 40 anos):
- Embora as causas infecciosas ainda ocorram, a principal preocupação nesta faixa etária é neoplasia.
- Neoplásicas: Câncer metastático de cabeça e pescoço (especialmente em pacientes com histórico de tabagismo e etilismo), linfomas (Hodgkin e não-Hodgkin) e leucemias.
- Infecciosas: Causas virais e bacterianas ainda são possíveis, mas a investigação para malignidade deve ser mais agressiva e precoce. Tuberculose e infecções fúngicas também devem ser consideradas em pacientes imunocomprometidos.
Raciocínio Clínico
A idade do paciente é o fator demográfico mais importante na construção do diagnóstico diferencial da linfadenopatia cervical. Em um paciente pediátrico com linfonodos cervicais aumentados e febre, a principal hipótese é reacional a uma infecção viral. Em um paciente de 60 anos, tabagista, com um linfonodo supraclavicular endurecido, a principal hipótese é metástase de um tumor primário (pulmão, trato gastrointestinal, etc.), conhecido como linfonodo de Virchow.
Fisiopatologia
O aumento de um linfonodo ocorre devido a um de três mecanismos principais: proliferação de células imunes intrínsecas (linfócitos, macrófagos), infiltração por células extrínsecas (células neoplásicas) ou drenagem de um processo infeccioso/inflamatório (linfadenite supurativa).
Mecanismo de Hiperplasia Linfoide Reacional
A hiperplasia linfoide reacional é a causa mais comum de linfadenopatia e representa uma resposta fisiológica a um estímulo antigênico. O processo ocorre da seguinte forma:
- Apresentação do Antígeno: Patógenos ou seus antígenos que entram no corpo são transportados pela linfa até o linfonodo regional. Lá, são capturados por células apresentadoras de antígenos (APCs), como as células dendríticas.
- Ativação Linfocitária: As APCs processam o antígeno e o apresentam aos linfócitos T auxiliares (CD4+).
- Proliferação Celular: A ativação dos linfócitos T desencadeia uma cascata de sinalização que leva à proliferação clonal de linfócitos T e B. Os linfócitos B se diferenciam em plasmócitos para produzir anticorpos. Essa rápida multiplicação celular causa a expansão das áreas do linfonodo (centros germinativos e região paracortical), resultando em seu aumento de tamanho (linfadenopatia).
Patogênese de Infecções Específicas
- Rubéola: O vírus da rubéola entra pelo trato respiratório, replica-se na nasofaringe e nos linfonodos regionais. Segue-se uma viremia primária, que dissemina o vírus para outros tecidos linfoides, incluindo baço e outros linfonodos. A característica linfadenopatia dolorosa retroauricular, occipital e cervical posterior ocorre durante este período de replicação viral intensa no tecido linfoide, precedendo o exantema característico.
- Infecção Aguda pelo HIV: O HIV tem um tropismo específico pelos linfócitos T CD4+. Após a infecção inicial, ocorre uma fase de replicação viral maciça. O vírus se dissemina por todo o sistema linfoide, levando a uma resposta imune vigorosa, mas ineficaz. A linfadenopatia generalizada observada na síndrome retroviral aguda é um reflexo dessa intensa atividade imunológica e replicação viral nos linfonodos. Com o tempo, a infecção crônica leva a uma depleção progressiva e irreversível das células CD4+, resultando em imunodeficiência grave (AIDS).
Apresentação Clínica & Exame Físico
A história clínica e o exame físico são fundamentais para direcionar a investigação. A diferenciação entre uma linfadenopatia benigna (infecciosa/reacional) e uma maligna é o objetivo primário.
Características Diferenciais da Linfadenopatia
Durante o exame físico, os seguintes aspectos dos linfonodos devem ser avaliados sistematicamente:
- Tamanho: > 2 cm são mais suspeitos.
- Consistência: Amolecidos ou elásticos sugerem infecção; endurecidos (pétreos) sugerem malignidade.
- Sensibilidade: Dor e sensibilidade à palpação são características de processos inflamatórios/infecciosos agudos. Linfonodos malignos são classicamente indolores.
- Mobilidade: Linfonodos móveis são geralmente benignos. A fixação a planos profundos (aderência) é um sinal de alerta para malignidade ou infecção crônica (ex: tuberculose).
- Número e Localização: Linfonodos localizados e em cadeias específicas podem sugerir a fonte da infecção (ex: submandibulares para infecções dentárias). Linfonodos supraclaviculares são sempre considerados patológicos até prova em contrário.
| Característica | Sugestivo de Infecção/Inflamação | Sugestivo de Malignidade |
|---|---|---|
| Início | Agudo (dias a semanas) | Insidioso (semanas a meses) |
| Sensibilidade | Doloroso, sensível à palpação | Indolor |
| Consistência | Amolecida, elástica, pode flutuar (abscesso) | Endurecida, pétrea |
| Mobilidade | Móvel | Fixo, aderido a planos profundos |
| Sintomas Associados | Febre, odinofagia, coriza, exantema, foco infeccioso evidente | Perda de peso inexplicada, sudorese noturna, febre persistente (Sintomas B), hepatoesplenomegalia |
Sinais e Sintomas Associados Chave
- Rubéola: O quadro clássico inclui febre baixa, coriza e um exantema maculopapular róseo que se inicia na face e progride em direção cefalocaudal, durando cerca de 3 dias. O sinal mais característico é a linfadenopatia dolorosa em cadeias cervicais posteriores, retroauriculares e suboccipitais, que frequentemente surge antes do exantema. Manchas de Forscheimer (petéquias no palato mole) podem estar presentes.
- Infecção Aguda pelo HIV: Ocorre em 50-90% dos indivíduos recém-infectados, geralmente 2-4 semanas após a exposição. Apresenta-se como uma síndrome "mono-like" com febre, faringite, fadiga, mialgia e um exantema maculopapular. A linfadenopatia generalizada (envolvendo múltiplas cadeias, não apenas a cervical) é um achado comum e importante.
Armadilhas do ENARE
A síndrome retroviral aguda do HIV é uma grande mimetizadora da mononucleose infecciosa (EBV). Ambas cursam com febre, faringite e linfadenopatia. Uma questão de prova pode apresentar um paciente jovem com vida sexual ativa e esses sintomas. A ausência de esplenomegalia significativa e a presença de um exantema mais proeminente podem pender para HIV, mas a suspeita clínica baseada nos fatores de risco é crucial para solicitar a sorologia para HIV.
Avaliação Diagnóstica
A abordagem diagnóstica deve ser escalonada, partindo da suspeita clínica.
- História e Exame Físico: É a etapa mais importante. Investigar idade, duração dos sintomas, sintomas constitucionais, histórico de viagens, contato com animais (gatos), comportamento de risco (sexual, uso de drogas IV) e histórico de tabagismo/etilismo.
- Testes Laboratoriais Iniciais:
- Hemograma Completo com Diferencial: Pode mostrar leucocitose com neutrofilia (bacteriana), linfocitose com linfócitos atípicos (mononucleose por EBV/CMV), ou pancitopenia (neoplasias hematológicas, HIV avançado).
- Provas de Atividade Inflamatória: VHS e PCR são inespecíficos, mas podem ajudar a monitorar a resposta ao tratamento.
- Sorologias Específicas: Guiadas pela suspeita clínica.
- Mononucleose: Anticorpos heterófilos (Monoteste) ou sorologia específica para EBV (anti-VCA IgM/IgG).
- Rubéola: Sorologia com dosagem de anticorpos IgM (infecção aguda) e IgG (infecção pregressa ou imunidade).
- HIV: Testes de 4ª geração (antígeno p24 + anticorpos) são o padrão para diagnóstico precoce.
- Outros: Sorologias para CMV, toxoplasmose, Bartonella henselae.
- Investigação por Imagem:
- Ultrassonografia Cervical: É o exame de imagem inicial de escolha. Ajuda a confirmar o tamanho do linfonodo, avaliar sua morfologia (perda do hilo gorduroso central é suspeita de malignidade) e diferenciar lesões sólidas de císticas/necróticas (abscessos).
- Biópsia:
- Indicações: Linfonodo persistentemente aumentado (>4-6 semanas), crescimento progressivo, características suspeitas ao exame físico ou USG, presença de sintomas constitucionais, ou linfonodo supraclavicular.
- Método de Escolha: A biópsia excisional (remoção completa do linfonodo) é o padrão-ouro, pois permite a análise histológica completa e a realização de imuno-histoquímica, essencial para o diagnóstico de linfomas. A Punção Aspirativa por Agulha Fina (PAAF) tem valor limitado, podendo ser útil para diagnosticar metástases de carcinoma, mas é frequentemente inconclusiva para linfomas.
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024)
Em um cenário epidemiológico de surto de rubéola, um paciente que apresenta o quadro clínico clássico (exantema maculopapular cefalocaudal e linfadenopatia retroauricular) tem seu diagnóstico confirmado laboratorialmente através da sorologia para anticorpos IgM e IgG específicos para o vírus da rubéola. A presença de IgM confirma a infecção aguda.
Tratamento e Manejo
O tratamento é sempre direcionado à causa subjacente identificada.
- Infecções Virais (EBV, CMV, Rubéola): O tratamento é primariamente de suporte. Inclui repouso, hidratação, analgésicos (paracetamol) e anti-inflamatórios não esteroides (ibuprofeno) para controle da febre e da dor. Não há terapia antiviral específica para estas condições na maioria dos casos.
- Linfadenite Bacteriana Aguda: O tratamento requer antibioticoterapia. A escolha empírica inicial deve cobrir S. aureus e S. pyogenes. Opções incluem cefalexina ou clindamicina (especialmente se houver suspeita de MRSA). Se houver formação de abscesso (identificado por flutuação ao exame ou por ultrassom), a drenagem cirúrgica é necessária, associada à antibioticoterapia.
- Infecção pelo HIV: O manejo é feito com Terapia Antirretroviral (TARV). O objetivo da TARV é suprimir a replicação viral a níveis indetectáveis, permitindo a recuperação da contagem de células CD4+ e a restauração da função imune, prevenindo a progressão para AIDS e as infecções oportunistas.
Complicações e Prognóstico
As complicações dependem diretamente da etiologia da linfadenopatia.
- Linfadenite Bacteriana: A complicação mais comum é a supuração com formação de abscesso, que pode fistulizar para a pele ou disseminar a infecção para tecidos adjacentes (celulite, fasceíte). Em casos graves, pode levar à sepse.
- Rubéola: A infecção em crianças e adultos é geralmente benigna e autolimitada. A complicação mais temida é a Síndrome da Rubéola Congênita (SRC), que ocorre quando uma mulher grávida não imune se infecta, especialmente no primeiro trimestre. A SRC pode causar aborto, natimorto ou uma tríade clássica de malformações no feto: cardiopatia congênita (persistência do canal arterial), catarata e surdez neurossensorial.
- Infecção pelo HIV: Sem tratamento, a infecção progride para a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), caracterizada por uma contagem de CD4+ < 200 células/mm³ ou pela presença de doenças definidoras de AIDS (ex: pneumonia por Pneumocystis jirovecii, sarcoma de Kaposi). Com a TARV, o prognóstico é excelente, com expectativa de vida próxima à da população geral, embora com maior risco de comorbidades crônicas.
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2020)
Adolescentes e adultos jovens que adquiriram o HIV por transmissão vertical (durante a gestação, parto ou amamentação) estão expostos à Terapia Antirretroviral (TARV) desde a infância. O uso crônico desses medicamentos, embora essencial para o controle da doença, está associado a um maior risco de efeitos adversos metabólicos a longo prazo. Os mais notáveis e frequentemente cobrados em provas são a dislipidemia (aumento de colesterol e triglicerídeos) e a lipodistrofia (redistribuição anormal da gordura corporal, com lipoatrofia em face e membros, e lipo-hipertrofia em abdômen e região dorsocervical - "giba de búfalo").
Prevenção
A prevenção é a estratégia mais eficaz e se baseia em medidas de saúde pública e práticas individuais.
- Imunização: A prevenção da rubéola é feita de forma altamente eficaz pela vacina Tríplice Viral (MMR), que protege contra sarampo, caxumba e rubéola. A vacinação de crianças e de mulheres em idade fértil é crucial para prevenir a Síndrome da Rubéola Congênita.
- Controle de Surtos: Medidas de saúde pública como notificação compulsória de casos, investigação de surtos e isolamento de pacientes durante o período de transmissibilidade são fundamentais para controlar a disseminação de doenças como a rubéola.
- Prevenção do HIV: A prevenção da transmissão do HIV envolve uma abordagem combinada:
- Uso consistente e correto de preservativos.
- Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) para populações de alto risco.
- Profilaxia Pós-Exposição (PEP) após uma possível exposição.
- Tratamento como Prevenção (TASP): Pessoas vivendo com HIV em TARV com carga viral indetectável não transmitem o vírus por via sexual (Indetectável = Intransmissível, I=I).
- Prevenção da transmissão vertical através do uso de TARV pela gestante, parto cesáreo eletivo em alguns casos, e inibição da amamentação.
