Hipertermia Maligna
A Hipertermia Maligna (HM) é uma emergência anestésica rara, porém de altíssima letalidade se não reconhecida e tratada imediatamente. É um tópico clássico em provas de residência por testar o conhecimento sobre farmacologia, fisiologia e manejo de crises perioperatórias.
Introdução e Epidemiologia
A Hipertermia Maligna é definida como uma desordem farmacogenética do músculo esquelético, de herança autossômica dominante, que se manifesta como um estado hipermetabólico agudo e potencialmente fatal. A crise é desencadeada em indivíduos geneticamente suscetíveis após a exposição a agentes anestésicos específicos.
Agentes Desencadeantes:
- Anestésicos Inalatórios Voláteis: Todos os anestésicos halogenados potentes, como Halotano (historicamente importante), Sevoflurano, Desflurano e Isoflurano. O óxido nitroso e o xenônio não são agentes desencadeantes.
- Relaxante Muscular Despolarizante: A Succinilcolina é o único relaxante muscular implicado. Sua associação com um anestésico volátil aumenta significativamente o risco e a gravidade da crise.
Epidemiologia:
A incidência exata é difícil de determinar, mas estima-se que ocorra em 1 a cada 5.000 a 50.000 anestesias com agentes desencadeantes. A prevalência da mutação genética é maior, mas nem todos os portadores desenvolverão uma crise em toda exposição. A condição é mais comum em crianças e adultos jovens, possivelmente devido à maior massa muscular em relação ao peso corporal.
Raciocínio Clínico
Por que a herança é autossômica dominante? Porque a mutação em apenas um dos alelos do gene (por exemplo, RYR1) é suficiente para produzir uma proteína receptora anormal que causa a disfunção do canal de cálcio. Isso significa que um indivíduo com um dos pais afetado tem 50% de chance de herdar a suscetibilidade.
Fisiopatologia
O defeito molecular central na maioria dos casos de Hipertermia Maligna reside em uma mutação no gene do receptor de rianodina tipo 1 (RYR1), localizado no cromossomo 19. Este receptor é um canal de cálcio gigante localizado na membrana do retículo sarcoplasmático da célula muscular esquelética.
Em condições normais, a despolarização da membrana muscular (sarcolema) ativa o receptor de diidropiridina (DHPR), que por sua vez abre o canal RYR1, permitindo a liberação controlada de cálcio do retículo sarcoplasmático para o citoplasma. Esse aumento do cálcio citoplasmático desencadeia a contração muscular. O cálcio é então rapidamente recaptado para o retículo sarcoplasmático pela bomba de cálcio (SERCA), permitindo o relaxamento muscular.
No indivíduo suscetível à HM, o receptor RYR1 mutado é instável. Quando exposto a um agente desencadeante (anestésico volátil ou succinilcolina), o canal RYR1 se abre de forma excessiva e prolongada. Isso resulta em uma liberação maciça e descontrolada de íons de cálcio no citoplasma da célula muscular.
A Cascata Fisiopatológica:
- Liberação Maciça de Cálcio: Ocorre um aumento sustentado e descontrolado do cálcio mioplasmático.
- Contração Muscular Sustentada: O excesso de cálcio leva a uma contração muscular generalizada e persistente, causando rigidez muscular.
- Estado Hipermetabólico: Para recaptar o excesso de cálcio para o retículo sarcoplasmático, a bomba SERCA trabalha incessantemente, consumindo grandes quantidades de ATP. Isso acelera drasticamente o metabolismo celular (aeróbico e anaeróbico).
- Consequências do Hipermetabolismo:
- Produção Massiva de CO₂: O metabolismo aeróbico acelerado gera enormes quantidades de dióxido de carbono, levando à hipercarbia.
- Produção de Calor: As reações metabólicas exotérmicas geram calor intenso, resultando em hipertermia.
- Consumo de O₂ e Produção de Lactato: O consumo de oxigênio excede a oferta, forçando o metabolismo anaeróbico e resultando em acidose lática.
- Rabdomiólise: A contração muscular intensa e a depleção de ATP levam à destruição da membrana celular muscular (sarcolema), liberando seu conteúdo na corrente sanguínea: potássio (hipercalemia), mioglobina (mioglobinúria) e creatina quinase (CK).
Apresentação Clínica e Exame Físico
A crise de HM é um evento dramático que ocorre no ambiente perioperatório. Os sinais podem se desenvolver rapidamente ou de forma mais insidiosa ao longo de uma anestesia. A ordem de aparecimento dos sinais é crucial para o diagnóstico precoce.
Sinais Precoces (Os mais sensíveis):
- Hipercarbia Inexplicada: O sinal mais precoce e consistente é um aumento abrupto e persistente do dióxido de carbono no final da expiração (ETCO₂), detectado pela capnografia. Este aumento é resistente às tentativas de correção pelo aumento da ventilação minuto (aumento da frequência respiratória ou do volume corrente).
- Taquicardia Sinusal Inexplicada: Frequência cardíaca elevada e desproporcional ao estímulo cirúrgico ou à profundidade anestésica.
- Taquipneia: Em pacientes com ventilação espontânea.
Sinais Clássicos (Desenvolvimento Intermediário):
- Rigidez Muscular: Pode ser generalizada. Um sinal clássico é o espasmo do músculo masseter (trismo ou "mandíbula de aço"), especialmente após a administração de succinilcolina. A presença de trismo deve sempre levantar a suspeita de HM.
- Arritmias Cardíacas: Taquiarritmias ventriculares e extrassístoles podem ocorrer devido à hipercalemia e à estimulação simpática.
- Cianose e Pele Marmórea: Resultantes do desequilíbrio entre oferta e consumo de oxigênio e da vasoconstrição periférica.
Sinais Tardios (Indicam progressão da crise):
- Hipertermia: A febre é um sinal característico, mas tardio. A temperatura corporal pode aumentar rapidamente, a uma taxa de 1-2°C a cada 5 minutos, atingindo valores extremos (>40°C).
- Mioglobinúria: A urina se torna escura, com coloração de "chá" ou "Coca-Cola", devido à presença de mioglobina.
- Instabilidade Hemodinâmica: Hipotensão e choque ocorrem em fases avançadas.
Armadilhas do ENARE
A questão clássica do ENARE descreverá um paciente jovem submetido a uma cirurgia eletiva que, após a indução com sevoflurano e succinilcolina, desenvolve taquicardia e um aumento súbito do ETCO₂. O candidato pode ser tentado a escolher "plano anestésico superficial" como causa. No entanto, a chave é a resistência da hipercarbia ao aumento da ventilação e a subsequente aparição de rigidez muscular. Lembre-se: Hipertermia é um sinal tardio; a crise começa com alterações metabólicas (ETCO₂) e cardiovasculares (taquicardia).
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico da crise aguda de HM é eminentemente clínico. O tratamento não deve ser adiado para aguardar resultados de exames laboratoriais. No entanto, a coleta de exames é fundamental para confirmar a suspeita e guiar o tratamento das complicações metabólicas.
Exames Laboratoriais Imediatos:
- Gasometria Arterial: Revela uma acidose mista grave (respiratória e metabólica), com pH baixo (<7.25), PaCO₂ elevado (>60 mmHg) e déficit de bases significativo.
- Eletrólitos: A hipercalemia é um achado comum e potencialmente letal, podendo exceder 6.5 mEq/L. Hipercalcemia e hiperfosfatemia também podem estar presentes.
- Creatina Quinase (CK): Os níveis de CK sobem drasticamente, atingindo picos de 20.000 a mais de 100.000 U/L em 12-24 horas após a crise. É o marcador mais sensível de dano muscular.
- Urinálise: Presença de mioglobina (mioglobinúria) e sangue no exame de fita reagente, mas com poucas ou nenhuma hemácia na microscopia.
- Coagulograma: Pode mostrar sinais de Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD) em casos graves.
Teste Definitivo para Suscetibilidade:
Para confirmar a suscetibilidade à HM em um paciente que sobreviveu a uma crise ou em seus familiares, o padrão-ouro é o Teste de Contratura com Cafeína-Halotano (TCCH). Este é um teste in vitro realizado em uma amostra de biópsia de músculo esquelético fresco (geralmente do quadríceps). O tecido muscular é exposto a concentrações crescentes de cafeína e halotano, e uma resposta contrátil anormal confirma a suscetibilidade. O teste genético para mutações conhecidas no gene RYR1 é uma alternativa, mas um resultado negativo não exclui a suscetibilidade, pois nem todas as mutações causadoras são conhecidas.
Tratamento e Manejo
O manejo da crise de HM é uma emergência médica que exige uma resposta rápida, organizada e multidisciplinar. A maioria dos hospitais possui um "carrinho de hipertermia maligna" com todos os medicamentos e suprimentos necessários.
Passos Imediatos (Mnemônico "Some Hot Dude Better Give Iced Fluids Fast"):
- Suspender os Agentes Desencadeantes: Interromper imediatamente a administração de todos os anestésicos inalatórios e da succinilcolina. Desligar os vaporizadores.
- Pedir Ajuda (Call for Help): Alertar toda a equipe cirúrgica e de enfermagem. Designar tarefas específicas para cada membro da equipe.
- Hiperventilar com O₂ a 100%: Aumentar o fluxo de gás fresco para o máximo (10-15 L/min) para eliminar os agentes inalatórios residuais e ajudar a corrigir a hipercarbia e a hipoxemia. Trocar o circuito respiratório e o absorvedor de CO₂ se possível.
- Administrar DANTROLENE: Este é o antídoto específico.
- Mecanismo de Ação: O dantrolene é um relaxante muscular de ação direta que se liga ao receptor RYR1, inibindo a liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático. Ele reverte a causa fundamental da crise.
- Dose: A dose inicial é de 2.5 mg/kg em bolus intravenoso rápido.
- Repetição: Repetir a dose a cada 5-10 minutos até que os sinais da crise (taquicardia, rigidez, hipercarbia, febre) comecem a se resolver. A dose total pode chegar a 10 mg/kg ou mais.
- Preparo: Cada frasco de dantrolene (20 mg) deve ser reconstituído com 60 mL de água destilada estéril, sem conservantes. É um processo demorado que requer várias pessoas.
- Resfriamento Ativo (Cooling): Iniciar medidas de resfriamento para pacientes com temperatura central > 38.5°C.
- Externo: Bolsas de gelo nas axilas, virilha e pescoço; mantas de resfriamento.
- Interno: Infusão de soro fisiológico gelado (4°C); lavagem gástrica, vesical ou de cavidades cirúrgicas abertas com solução salina fria. O resfriamento deve ser interrompido quando a temperatura atingir 38°C para evitar hipotermia rebote.
- Tratar as Anormalidades Metabólicas:
- Acidose: Administrar bicarbonato de sódio (1-2 mEq/kg IV) guiado pela gasometria arterial para corrigir a acidose metabólica grave (pH < 7.20).
- Hipercalemia: Tratar agressivamente com cloreto ou gluconato de cálcio, insulina regular + glicose, bicarbonato de sódio.
- Arritmias: Tratar com antiarrítmicos como amiodarona ou lidocaína. Evitar bloqueadores de canal de cálcio (verapamil, diltiazem), pois podem interagir com o dantrolene e causar hipercalemia fatal e colapso cardiovascular.
- Manter Diurese: Administrar fluidos intravenosos e diuréticos (manitol ou furosemida) para manter um débito urinário > 1 mL/kg/h e prevenir a necrose tubular aguda pela mioglobinúria.
- Monitorização Intensiva: Transferir o paciente para a UTI para monitorização contínua (ECG, pressão arterial invasiva, temperatura central, capnografia, débito urinário) por pelo menos 24-48 horas. A recrudescência dos sintomas pode ocorrer em até 25% dos casos.
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2020)
A questão do ENARE de 2020 abordou exatamente este cenário: um paciente em pós-operatório imediato de colecistectomia videolaparoscópica que evoluiu com taquicardia, febre e espasmo de masseter. A pergunta exigia o diagnóstico (Hipertermia Maligna) e o tratamento específico. A resposta correta era a administração de Dantrolene Sódico. Este é o ponto de maior rendimento sobre o tema: reconhecer a tríade clínica (taquicardia, rigidez, hipertermia) no contexto anestésico e saber que o dantrolene é o tratamento salvador.
Complicações e Prognóstico
Mesmo com tratamento, a HM pode levar a complicações graves devido à intensa cascata fisiopatológica.
Principais Complicações:
- Lesão Renal Aguda: A mioglobinúria pode obstruir os túbulos renais, causando necrose tubular aguda. A prevenção com hidratação vigorosa e diurese forçada é fundamental.
- Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD): A liberação de conteúdo celular e a acidose podem ativar a cascata de coagulação.
- Arritmias Cardíacas e Parada Cardíaca: Principalmente devido à hipercalemia e acidose severas.
- Edema Pulmonar: Pode ocorrer por disfunção cardíaca ou sobrecarga hídrica durante a ressuscitação.
- Edema Cerebral e Lesão Neurológica: A hipóxia, acidose e o edema podem levar a sequelas neurológicas permanentes ou morte cerebral.
- Síndrome Compartimental: O edema muscular intenso em membros pode necessitar de fasciotomia.
Prognóstico:
Antes da introdução do dantrolene na prática clínica na década de 1970, a mortalidade da Hipertermia Maligna era superior a 80%. Com o reconhecimento precoce, o manejo protocolar e a disponibilidade do dantrolene, a mortalidade caiu para menos de 5%. O prognóstico depende diretamente da rapidez do diagnóstico e do início do tratamento.
Populações Especiais e Prevenção
A prevenção é a chave no manejo de pacientes com suscetibilidade conhecida ou suspeita à HM.
Manejo Anestésico do Paciente Suscetível:
Para cirurgias eletivas em um paciente com histórico pessoal ou familiar de HM, uma abordagem anestésica segura deve ser planejada:
- Evitar Todos os Agentes Desencadeantes: Nenhum anestésico volátil ou succinilcolina deve ser usado.
- Preparar o Aparelho de Anestesia: O aparelho deve ser "limpo". Isso envolve remover os vaporizadores, trocar o circuito respiratório e o absorvedor de CO₂, e lavar o sistema com alto fluxo de oxigênio por um período prolongado (geralmente >20 minutos, seguindo as recomendações do fabricante) para eliminar resíduos de agentes voláteis.
- Técnicas Anestésicas Seguras:
- Anestesia Venosa Total (AVT ou TIVA): Utilizando agentes como propofol, opioides (remifentanil, fentanil), cetamina e relaxantes musculares não despolarizantes (rocurônio, cisatracúrio).
- Anestesia Regional: Bloqueios de nervos periféricos.
- Neuroeixo: Raquianestesia ou anestesia peridural.
- Disponibilidade do Dantrolene: Mesmo com todas as precauções, o dantrolene e o carrinho de HM devem estar imediatamente disponíveis na sala cirúrgica.
Aconselhamento Genético:
Devido à herança autossômica dominante, todos os parentes de primeiro grau (pais, irmãos, filhos) de um indivíduo com suscetibilidade confirmada à HM devem ser informados do seu risco de 50% e encaminhados para aconselhamento e testagem (TCCH ou teste genético). Pacientes suscetíveis devem portar uma identificação médica (pulseira, cartão) alertando sobre sua condição.
