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Fibrose Cística

A Fibrose Cística (FC), também conhecida como mucoviscidose, é uma das doenças genéticas graves mais comuns e representa um tema de grande importância na pediatria e clínica médica para as provas de residência, incluindo o ENARE. Seu caráter multissistêmico e a evolução do tratamento tornam seu conhecimento indispensável.

Introdução & Epidemiologia

A Fibrose Cística é definida como uma doença genética de herança autossômica recessiva, de caráter crônico e progressivo, que afeta primariamente as glândulas exócrinas de múltiplos órgãos. É considerada a doença genética fatal mais comum em populações caucasianas, embora afete todas as etnias. A sua incidência varia, mas é estimada em aproximadamente 1 a cada 2.500 a 3.500 nascidos vivos em populações de ascendência europeia.

No Brasil, a incidência é variável, sendo mais prevalente na região Sul devido à forte imigração europeia. A implementação de programas de triagem neonatal, como o "Teste do Pezinho", foi um marco fundamental. A detecção precoce da FC permite a instituição imediata de tratamento e acompanhamento em centros de referência, o que comprovadamente melhora o estado nutricional, a função pulmonar e a sobrevida dos pacientes.

Raciocínio Clínico

O padrão de herança autossômico recessivo é um ponto-chave. Isso significa que, para um indivíduo manifestar a doença, ele deve herdar duas cópias do gene mutado, uma de cada genitor. Os pais, que possuem apenas uma cópia do gene mutado, são portadores assintomáticos. Em cada gestação, um casal de portadores tem 25% de chance de ter um filho com FC, 50% de chance de ter um filho portador assintomático e 25% de chance de ter um filho não afetado e não portador.

Fisiopatologia

A base molecular da Fibrose Cística reside em mutações no gene localizado no braço longo do cromossomo 7. Este gene é responsável por codificar uma proteína essencial denominada Regulador de Condutância Transmembrana da Fibrose Cística (CFTR - Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator).

Conceito-Chave Validado pelo Exame

A base fisiopatológica da fibrose cística decorre de um defeito na proteína reguladora da condutância transmembrana (CFTR). (Citado em ENARE 2022, Questão 54)

A proteína CFTR funciona como um canal iônico na membrana apical das células epiteliais, regulando o transporte de íons cloreto (Cl⁻) e, secundariamente, de bicarbonato (HCO₃⁻). O fluxo desses íons é crucial para a hidratação das secreções mucosas. Em pacientes com FC, a proteína CFTR é ausente ou disfuncional. As consequências dessa disfunção são sistêmicas:

  • Transporte Iônico Defeituoso: A falha no transporte de cloreto para fora da célula e o aumento da reabsorção de sódio e água para dentro da célula resultam em uma depleção do líquido na superfície das vias aéreas e outros ductos.
  • Secreções Espessas e Viscosas: A desidratação do muco o torna anormalmente espesso, viscoso e aderente. Este muco defeituoso obstrui ductos e passagens em diversos órgãos.
  • Ciclo Vicioso de Obstrução-Inflamação-Infecção:
    1. Obstrução: O muco espesso obstrui as vias aéreas, ductos pancreáticos, ductos biliares e o trato reprodutivo.
    2. Inflamação: A estase do muco e a presença de debris celulares provocam uma resposta inflamatória crônica e neutrofílica, mesmo na ausência de infecção.
    3. Infecção: O muco estagnado é um meio de cultura ideal para bactérias. Infecções crônicas, notavelmente por Staphylococcus aureus na infância e, posteriormente, por Pseudomonas aeruginosa, se estabelecem, levando a danos teciduais progressivos (ex: bronquiectasias).

Este processo fisiopatológico explica a natureza multissistêmica da doença, afetando principalmente os pulmões, pâncreas, fígado, intestinos e sistema reprodutor.

Apresentação Clínica & Exame Físico

A apresentação clínica da FC é heterogênea, variando conforme a idade e a gravidade das mutações. As manifestações podem ser agrupadas por sistema.

Manifestações Pulmonares

São a principal causa de morbidade e mortalidade.

  • Tosse Crônica Produtiva: Sintoma mais comum, inicialmente seca, tornando-se progressivamente produtiva, com expectoração espessa e purulenta.
  • Infecções Sinopulmonares Recorrentes: Pneumonias de repetição, bronquites e sinusite crônica são frequentes. Os patógenos clássicos são S. aureus e H. influenzae em crianças pequenas, com predominância de P. aeruginosa (incluindo cepas mucoides) em pacientes mais velhos.
  • Bronquiectasias: Dilatação anormal e permanente dos brônquios, resultado do ciclo de infecção e inflamação. Clinicamente, manifesta-se com tosse persistente e expectoração abundante.
  • Exame Físico: A ausculta pulmonar pode revelar estertores crepitantes e sibilos. Em fases avançadas, observa-se baqueteamento digital (hipocratismo digital), cianose e sinais de cor pulmonale.

Manifestações Gastrointestinais e Nutricionais

  • Íleo Meconial: Presente em 15-20% dos recém-nascidos com FC. É uma obstrução do íleo distal pelo mecônio espessado e inspissado. Manifesta-se como distensão abdominal, vômitos biliosos e ausência de eliminação de mecônio nas primeiras 24-48 horas de vida. É uma apresentação patognomônica.
  • Insuficiência Pancreática Exócrina (IPE): Ocorre em cerca de 85-90% dos pacientes. A obstrução dos ductos pancreáticos impede a liberação de enzimas digestivas no duodeno.
    • Clínica: Má absorção de gorduras e proteínas, levando a esteatorreia (fezes volumosas, gordurosas, pálidas e fétidas), dor abdominal, flatulência e desnutrição proteico-calórica.
    • Consequência: Dificuldade de ganho de peso e crescimento (failure to thrive), apesar de apetite voraz, e deficiência de vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K).
  • Prolapso Retal: Pode ocorrer em crianças pequenas devido à desnutrição, evacuações volumosas e tosse crônica que aumenta a pressão intra-abdominal.

Outras Manifestações

  • Pele com "Sabor Salgado": Relatado pelos pais ao beijar a criança. É devido à alta concentração de cloreto no suor, resultado direto da disfunção do canal CFTR nas glândulas sudoríparas.
  • Infertilidade Masculina: Ocorre em mais de 95% dos homens com FC devido à ausência congênita bilateral dos ductos deferentes, resultando em azoospermia obstrutiva.
  • Doença Hepática: A obstrução dos ductos biliares pode levar a esteatose, fibrose e, eventualmente, cirrose biliar com hipertensão portal.

Armadilhas do ENARE

Questões podem apresentar cenários clássicos que exigem o diagnóstico de FC. Fique atento a:
1. Recém-nascido: Distensão abdominal, vômitos biliosos e falha na eliminação de mecônio = pensar em Íleo Meconial.
2. Lactente/Criança: Tosse crônica, pneumonias de repetição e dificuldade de ganhar peso apesar de bom apetite = pensar em Fibrose Cística (componente pulmonar + insuficiência pancreática).
3. Adulto Jovem: Infertilidade masculina associada a sintomas respiratórios crônicos = pensar em Fibrose Cística.

Diagnóstico

O diagnóstico da FC é baseado na combinação de critérios clínicos, triagem neonatal e testes confirmatórios.

  1. Triagem Neonatal ("Teste do Pezinho"):
    • Método: Dosagem da Tripsina Imunorreativa (IRT) em amostra de sangue colhida em papel-filtro.
    • Mecanismo: A obstrução dos ductos pancreáticos leva ao refluxo de tripsinogênio para a corrente sanguínea, elevando os níveis de IRT.
    • Interpretação: Um resultado de IRT elevado é um teste de triagem, não diagnóstico. Ele indica a necessidade de investigação adicional, pois pode haver resultados falso-positivos (ex: prematuridade, estresse perinatal).
  2. Teste do Suor (Pilocarpine Iontophoresis):
    • Status: É o padrão-ouro para a confirmação diagnóstica.
    • Técnica: A pilocarpina, um agente colinérgico, é aplicada na pele (geralmente no antebraço) e uma leve corrente elétrica (iontoforese) é usada para estimular as glândulas sudoríparas. O suor é coletado e a concentração de cloreto é medida.
    • Valores de Referência:
      • Normal: Cloreto < 30 mmol/L
      • Limítrofe (Indeterminado): Cloreto entre 30-59 mmol/L (requer repetição do teste ou análise genética)
      • Diagnóstico de FC: Cloreto ≥ 60 mmol/L (em pelo menos duas amostras distintas)
  3. Análise Genética:
    • Indicação: Confirma o diagnóstico, especialmente em casos com teste do suor limítrofe ou apresentações atípicas.
    • Método: Identificação de duas mutações causadoras de doença no gene CFTR. A mutação mais comum em todo o mundo é a F508del.

Tratamento e Manejo

O tratamento da FC é complexo, contínuo e exige uma abordagem multidisciplinar em um centro de referência, envolvendo pneumologista, gastroenterologista, nutricionista, fisioterapeuta, psicólogo e assistente social. Os pilares do tratamento visam controlar os sintomas, prevenir complicações e corrigir o defeito subjacente quando possível.

Manejo Pulmonar

  • Fisioterapia Respiratória (Higiene Brônquica): Fundamental para a remoção das secreções espessas. Inclui técnicas como drenagem postural, percussão/vibração torácica, ciclo ativo da respiração e uso de dispositivos (ex: Flutter®, coletes vibratórios). Deve ser realizada diariamente.
  • Agentes Mucolíticos Inalatórios:
    • Dornase Alfa (rhDNase): Enzima que cliva o DNA extracelular liberado por neutrófilos no escarro, reduzindo sua viscosidade e elasticidade.
    • Solução Salina Hipertônica (7%): Aumenta a hidratação da superfície das vias aéreas, facilitando o clearance mucociliar.
  • Antibioticoterapia: Usada para tratar exacerbações agudas e, em alguns casos, para suprimir a infecção crônica por P. aeruginosa (ex: tobramicina ou aztreonam inalatórios).
  • Anti-inflamatórios: Azitromicina em baixa dose tem efeito imunomodulador e pode ser usada em pacientes cronicamente infectados por P. aeruginosa.

Manejo Nutricional

  • Terapia de Reposição de Enzimas Pancreáticas (TREP): Cápsulas contendo microesferas de enzimas (lipase, protease, amilase) devem ser administradas antes de todas as refeições e lanches que contenham gordura ou proteína. A dose é ajustada com base no peso e na resposta clínica (melhora da esteatorreia).
  • Dieta Hipercalórica e Hiperlipídica: Necessidades energéticas são 120-150% maiores que o normal. A dieta deve ser rica em calorias e gorduras, sem restrições.
  • Suplementação de Vitaminas Lipossolúveis: Reposição de vitaminas A, D, E e K é obrigatória.

Terapias Moduladoras do CFTR

Representam a maior revolução no tratamento da FC. São medicamentos que atuam diretamente na proteína CFTR defeituosa. A sua indicação depende da mutação genética do paciente.

  • Potenciadores (ex: Ivacaftor): Aumentam a atividade do canal CFTR que já está na superfície celular, mas não funciona bem ("abrem o portão").
  • Corretores (ex: Lumacaftor, Tezacaftor, Elexacaftor): Ajudam no processamento e transporte da proteína CFTR defeituosa até a membrana celular ("levam o portão até o muro").
  • Terapia Tripla (Elexacaftor/Tezacaftor/Ivacaftor): Combinação altamente eficaz para pacientes com pelo menos uma cópia da mutação F508del, que é a mais comum.

Complicações e Prognóstico

Apesar dos avanços, a FC continua sendo uma doença progressiva com múltiplas complicações.

Sistema Complicações Principais
Pulmonar Insuficiência respiratória crônica (principal causa de morte), hemoptise, pneumotórax, aspergilose broncopulmonar alérgica (ABPA).
Endócrino Diabetes Relacionado à Fibrose Cística (DRFC): Patogênese mista, com insulinopenia predominante devido à destruição fibrótica das ilhotas de Langerhans.
Hepatobiliar Doença hepática associada à FC, cirrose biliar focal, hipertensão portal (com risco de varizes esofágicas).
Gastrointestinal Síndrome da Obstrução Intestinal Distal (DIOS): Equivalente ao íleo meconial no adulto, causada por fezes espessas e aderentes no íleo terminal e ceco.
Ósseo Baixa densidade mineral óssea e osteoporose, devido à má absorção de cálcio e vitamina D, inflamação crônica e uso de corticoides.

O prognóstico da FC melhorou drasticamente nas últimas décadas. A sobrevida mediana, que era na infância, hoje ultrapassa os 40-50 anos em países com centros de tratamento bem estruturados. O transplante pulmonar bilateral é uma opção terapêutica para pacientes com doença pulmonar em estágio terminal.

Populações Especiais

Aconselhamento Genético

É um componente essencial do cuidado. Famílias com um filho afetado devem ser orientadas sobre o risco de recorrência de 25% em futuras gestações. A triagem de portadores pode ser oferecida a familiares e à população geral, permitindo decisões reprodutivas informadas.

Gestação em Mulheres com FC

A gestação é possível para mulheres com FC, mas requer planejamento e acompanhamento rigoroso por uma equipe multidisciplinar. Os principais desafios são o aumento da demanda metabólica, o risco de exacerbações pulmonares e o manejo de medicamentos. Uma boa função pulmonar (VEF1 > 50-60% do previsto) e um estado nutricional adequado antes da concepção são preditores de melhores desfechos.

Transição do Cuidado

A transição do cuidado pediátrico para centros de adultos é um processo crítico e planejado. O objetivo é garantir a continuidade do tratamento especializado, promovendo a autonomia e a responsabilidade do paciente adulto jovem com sua própria saúde. A falha nesse processo pode levar à deterioração clínica e ao aumento da mortalidade.

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