Faringite e Faringoamigdalite
A faringite, ou faringoamigdalite quando acomete também as amígdalas palatinas, é a inflamação da faringe e do tecido linfoide associado. Representa uma das queixas mais comuns na prática médica, especialmente em pediatria e na atenção primária. A correta diferenciação entre suas etiologias, viral e bacteriana, é fundamental para o manejo adequado, evitando o uso desnecessário de antibióticos e prevenindo complicações graves.
Introdução e Epidemiologia
A faringoamigdalite é uma condição de altíssima prevalência em todo o mundo, sendo uma das principais causas de visita a serviços de emergência e consultórios. Embora possa ocorrer em qualquer idade, apresenta picos de incidência em crianças em idade escolar (5 a 15 anos), principalmente durante o outono e o inverno, períodos de maior aglomeração em ambientes fechados.
A grande maioria dos casos tem etiologia viral, correspondendo a cerca de 70-90% das faringites em adultos e 60-75% em crianças. Os principais agentes virais incluem:
- Rinovírus
- Adenovírus (frequentemente associado à febre faringoconjuntival)
- Vírus Influenza e Parainfluenza
- Coronavírus
- Vírus Epstein-Barr (EBV), causador da mononucleose infecciosa
- Coxsackievírus (associado à herpangina e à doença mão-pé-boca)
A etiologia bacteriana mais importante e que motiva a maior parte da investigação diagnóstica é o Streptococcus pyogenes, também conhecido como Estreptococo Beta-Hemolítico do Grupo A (EBHGA ou GAS - Group A Streptococcus). Ele é responsável por cerca de 5-15% dos casos em adultos e 20-30% em crianças. Outras bactérias, como Streptococcus dos grupos C e G, Arcanobacterium haemolyticum e Mycoplasma pneumoniae, são causas menos comuns.
Raciocínio Clínico
O dilema central no manejo da faringite é identificar a minoria de pacientes com infecção por EBHGA dentro do vasto universo de faringites virais. O tratamento com antibióticos só é indicado para a etiologia bacteriana, visando não apenas a melhora dos sintomas, mas, crucialmente, a prevenção de suas complicações supurativas e não supurativas.
Fisiopatologia
Infecção Viral
Os vírus tipicamente infectam as células epiteliais da nasofaringe e orofaringe através da inalação de gotículas respiratórias. A replicação viral leva à lise celular e à liberação de mediadores inflamatórios. O resultado é uma inflamação difusa da mucosa faríngea, que se manifesta como eritema, edema e dor. Como esses vírus frequentemente infectam todo o trato respiratório superior, os sintomas de faringite costumam vir acompanhados de coriza, tosse, espirros e conjuntivite, compondo um quadro clínico mais "arrastado" e sistêmico.
Infecção Bacteriana (Streptococcus pyogenes)
O S. pyogenes possui uma série de fatores de virulência que facilitam a invasão e a resposta inflamatória. A proteína M em sua superfície inibe a fagocitose e permite a adesão às células epiteliais da faringe. Após a adesão, a bactéria invade a mucosa, desencadeando uma robusta resposta inflamatória localizada. Essa resposta é caracterizada por um intenso influxo de neutrófilos, resultando na formação de exsudato purulento visível nas amígdalas e na faringe. A liberação de toxinas, como as exotoxinas pirogênicas estreptocócicas, contribui para a febre e o rash cutâneo da escarlatina (uma manifestação da faringite estreptocócica).
A capacidade do S. pyogenes de causar complicações à distância (não supurativas) decorre de um fenômeno de mimetismo molecular. Componentes da parede celular bacteriana, especialmente a proteína M, possuem semelhanças antigênicas com proteínas do tecido cardíaco, sinovial, cutâneo e nervoso do hospedeiro. A resposta imune montada contra a bactéria pode, então, reagir de forma cruzada com esses tecidos, levando à febre reumática aguda. De forma similar, a deposição de imunocomplexos contendo antígenos estreptocócicos nos glomérulos renais pode causar a glomerulonefrite difusa aguda pós-estreptocócica (GNDA).
Apresentação Clínica e Exame Físico
A distinção clínica entre as etiologias é o primeiro passo no diagnóstico. Embora haja sobreposição, certos sinais e sintomas são mais sugestivos de uma ou outra causa.
Sintomas Comuns a Ambas as Etiologias:
- Odinofagia (dor de garganta): sintoma cardinal, geralmente o principal motivo da consulta.
- Disfagia: dificuldade para engolir devido à dor.
- Febre: pode variar de baixa a alta.
- Cefaleia e mal-estar geral.
Achados Sugestivos de Etiologia
A tabela abaixo resume as principais diferenças, que são a base para os escores de predição clínica.
| Característica Clínica | Mais Sugestivo de Faringite Viral | Mais Sugestivo de Faringite por EBHGA |
|---|---|---|
| Início dos Sintomas | Gradual, progressivo | Súbito, agudo |
| Sintomas Associados | Tosse, coriza, conjuntivite, rouquidão, diarreia, úlceras orais | Ausência de tosse e coriza. Cefaleia, náuseas, vômitos, dor abdominal (principalmente em crianças) |
| Exame da Orofaringe | Hiperemia difusa, pode haver exsudato discreto, vesículas ou úlceras (herpangina) | Hiperemia e edema acentuados, exsudato purulento em amígdalas, petéquias no palato |
| Linfonodomegalia Cervical | Pode estar presente, geralmente difusa e pouco dolorosa | Linfonodos cervicais anteriores aumentados e muito dolorosos à palpação |
| Manifestações Específicas | Febre faringoconjuntival (Adenovírus), mononucleose (EBV - com esplenomegalia e linfonodomegalia generalizada) | Escarlatina: rash cutâneo micropapular e eritematoso ("pele em lixa"), mais intenso em áreas de dobras (sinal de Pastia), palidez perioral (sinal de Filatov) e língua em framboesa. |
Avaliação Diagnóstica
Dado que a clínica não é 100% acurada, a avaliação diagnóstica visa estratificar o risco de infecção por EBHGA para guiar a necessidade de testes adicionais e antibioticoterapia.
Escores de Predição Clínica: Critérios de Centor/McIsaac
Os critérios de Centor (modificados por McIsaac para incluir a idade) são uma ferramenta validada para estimar a probabilidade de faringite por EBHGA. Cada critério positivo soma 1 ponto.
| Critérios de Centor Modificados por McIsaac | |
|---|---|
| Critério | Pontos |
| Febre > 38°C | +1 |
| Ausência de Tosse | +1 |
| Linfonodomegalia Cervical Anterior Dolorosa | +1 |
| Exsudato ou Edema Amigdaliano | +1 |
| Idade 3-14 anos | +1 |
| Idade 15-44 anos | 0 |
| Idade ≥ 45 anos | -1 |
Interpretação e Conduta Baseada no Escore:
- 0 a 1 ponto: Baixa probabilidade de EBHGA (<10%). Não são necessários testes adicionais nem antibióticos. O tratamento é sintomático.
- 2 a 3 pontos: Probabilidade intermediária (15-32%). A investigação com teste microbiológico (RADT ou cultura) está indicada para confirmar ou afastar o diagnóstico.
- 4 a 5 pontos: Alta probabilidade de EBHGA (>50%). Pode-se considerar o tratamento empírico com antibióticos, embora a confirmação com teste microbiológico seja a conduta ideal, especialmente em crianças e adolescentes.
Armadilhas do ENARE: ENARE_2022_Q95
Uma questão clássica do ENARE apresenta um paciente com dor de garganta, tosse e coriza (Critérios de Centor = 0 ou 1). Mesmo que o paciente ou a família insista na prescrição de antibióticos, a conduta correta é não prescrever. O uso de antibióticos em quadros virais não traz benefícios, aumenta o risco de efeitos adversos e contribui para a resistência bacteriana. A resposta correta sempre será orientar sobre a etiologia viral provável e prescrever apenas sintomáticos.
Testes Microbiológicos
- Teste Rápido de Detecção de Antígeno (RADT): É um imunoensaio que detecta antígenos da parede celular do S. pyogenes a partir de um swab de orofaringe. O resultado fica pronto em minutos. Possui alta especificidade (>95%), o que significa que um resultado positivo confirma a infecção. No entanto, sua sensibilidade é variável (70-90%). Portanto, em crianças e adolescentes (população de maior risco para febre reumática), um resultado negativo no RADT deve ser confirmado com uma cultura de orofaringe. Em adultos, devido ao menor risco de complicações, um RADT negativo é geralmente suficiente para descartar a infecção.
- Cultura de Orofaringe: É o padrão-ouro para o diagnóstico. Um swab da orofaringe e das amígdalas é semeado em ágar-sangue. O resultado leva de 24 a 48 horas. Sua sensibilidade e especificidade são próximas de 100%.
Tratamento e Manejo
Faringite Viral
O tratamento é exclusivamente sintomático e de suporte. As medidas incluem:
- Analgesia e Antitérmicos: Paracetamol ou Dipirona são as primeiras escolhas. Anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), como o Ibuprofeno, também são muito eficazes para a dor.
- Hidratação: Ingestão adequada de líquidos para evitar desidratação.
- Repouso: Conforme a necessidade do paciente.
- Medidas locais: Gargarejos com soluções salinas mornas podem proporcionar alívio temporário.
Faringite por EBHGA (Confirmada)
O tratamento com antibióticos é mandatório. Os objetivos são:
- Reduzir a duração e a gravidade dos sintomas.
- Diminuir a transmissibilidade da infecção (o paciente deixa de ser contagioso após 24h do início do antibiótico).
- Prevenir as complicações supurativas (abscessos).
- Prevenir a febre reumática aguda (objetivo principal).
Esquemas Antibióticos:
| Antibiótico | Dose e Duração | Comentários |
|---|---|---|
| Penicilina G Benzatina | Dose única, intramuscular. - < 27 kg: 600.000 UI - ≥ 27 kg: 1.200.000 UI |
Tratamento de escolha. Garante a adesão, pois é dose única. É dolorosa. |
| Amoxicilina | 50 mg/kg/dia (máx. 1g/dia), 1 ou 2 vezes ao dia, por 10 dias. | Excelente alternativa oral. Sabor mais palatável que a penicilina V e posologia mais cômoda. |
| Penicilina V Potássica | 250 mg (crianças) ou 500 mg (adolescentes/adultos), 2-3 vezes ao dia, por 10 dias. | Alternativa oral clássica. Menor custo, mas sabor ruim e necessidade de múltiplas doses diárias. |
| Azitromicina (Para alérgicos à Penicilina) | 12 mg/kg/dia (máx. 500 mg), 1 vez ao dia, por 5 dias. | Opção para alérgicos. As taxas de resistência do EBHGA aos macrolídeos estão aumentando. |
| Cefalexina (Para alérgicos à Penicilina - sem reação anafilática) | 25-50 mg/kg/dia, 2 vezes ao dia, por 10 dias. | Boa opção para alérgicos não-anafiláticos, devido à baixa reatividade cruzada. |
Complicações e Prognóstico
As complicações da faringite por EBHGA são a principal razão para o tratamento antibiótico e são divididas em supurativas e não supurativas.
Complicações Supurativas
Resultam da disseminação da infecção para estruturas adjacentes.
- Abscesso Periamigdaliano (ou Peritonsilar): A complicação mais comum. Acúmulo de pus entre a cápsula amigdaliana e o músculo constritor superior da faringe. O quadro clínico inclui febre alta, odinofagia intensa, trismo (dificuldade de abrir a boca), voz anasalada ou "de batata quente" e desvio da úvula para o lado contralateral ao abscesso. O tratamento requer drenagem (punção ou incisão) e antibioticoterapia.
- Abscesso Retrofaríngeo: Mais comum em crianças pequenas. Infecção do espaço retrofaríngeo. Causa dor cervical, rigidez de nuca, estridor e pode comprometer a via aérea. O diagnóstico é feito com tomografia computadorizada do pescoço. Requer drenagem cirúrgica e antibioticoterapia venosa.
- Outras: Otite média aguda, sinusite, mastoidite.
Complicações Não Supurativas (Imunomediadas)
- Febre Reumática Aguda (FRA): Ocorre 2-4 semanas após a faringite não tratada (ou inadequadamente tratada). É uma doença inflamatória sistêmica que afeta principalmente o coração (cardite), articulações (poliartrite migratória), pele (eritema marginado, nódulos subcutâneos) e sistema nervoso central (Coreia de Sydenham). O diagnóstico é feito pelos critérios de Jones. A cardite reumática pode levar a lesões valvares permanentes. O tratamento adequado da faringite estreptocócica, iniciado em até 9 dias do início dos sintomas, previne a ocorrência de FRA.
- Glomerulonefrite Difusa Aguda Pós-Estreptocócica (GNDA): Ocorre 1-3 semanas após uma faringite (ou 3-6 semanas após uma infecção de pele - piodermite) por cepas nefritogênicas do S. pyogenes. Caracteriza-se pela tríade de edema, hipertensão e hematúria (urina "cor de coca-cola"). É causada pela deposição de imunocomplexos nos glomérulos. Importante: o tratamento da faringite com antibióticos NÃO previne a GNDA.
Raciocínio Clínico: ENARE_2023_Q82
O objetivo primário e inquestionável do tratamento da faringoamigdalite estreptocócica é a prevenção da febre reumática. Embora o antibiótico alivie os sintomas e previna complicações supurativas, a prevenção da FRA e suas sequelas cardíacas crônicas é a justificativa de saúde pública mais importante para o diagnóstico e tratamento corretos desta condição.
Populações Especiais
Faringite Recorrente e Indicação de Amigdalectomia
A faringite recorrente é definida como múltiplos episódios de faringite aguda em um curto período. A indicação de amigdalectomia (tonsilectomia) é controversa e deve ser individualizada, baseando-se em critérios clínicos rigorosos, como os Critérios de Paradise:
| Critérios de Paradise para Amigdalectomia | |
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| Frequência dos Episódios: | |
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| E cada episódio deve ser clinicamente significativo, com pelo menos um dos seguintes: | |
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Outras indicações para amigdalectomia incluem um episódio de abscesso periamigdaliano, suspeita de neoplasia ou hipertrofia amigdaliana causando apneia obstrutiva do sono.
Portadores Assintomáticos de EBHGA
Cerca de 10-15% das crianças em idade escolar podem ser portadoras crônicas assintomáticas do S. pyogenes na orofaringe. Esses indivíduos têm uma colonização pela bactéria, mas não desenvolvem resposta imune ou inflamatória. Eles possuem baixo risco de transmitir a bactéria e um risco praticamente nulo de desenvolver complicações como a febre reumática. Portanto, a triagem e o tratamento de portadores assintomáticos não são recomendados de rotina.
