Esofagite Eosinofílica (EoE)
A Esofagite Eosinofílica (EoE) é uma condição crônica, de base imunoalérgica, que tem ganhado notoriedade nas últimas décadas. Anteriormente considerada rara, hoje é reconhecida como uma das principais causas de disfagia e impactação alimentar em adultos jovens e uma causa importante de sintomas gastrointestinais superiores em crianças. Sua relevância para o ENARE reside na necessidade de diferenciá-la de outras condições esofágicas, especialmente da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE), e de conhecer sua abordagem diagnóstica e terapêutica específica.
Introdução e Epidemiologia
Definição
A Esofagite Eosinofílica é definida como uma doença crônica, imune/antígeno-mediada, caracterizada clinicamente por sintomas de disfunção esofágica e histologicamente por uma inflamação predominantemente eosinofílica. A presença de 15 ou mais eosinófilos por campo de grande aumento (CGA) em biópsias esofágicas é o marco histológico para o diagnóstico, na ausência de outras causas de eosinofilia esofágica.
Epidemiologia
- Prevalência Crescente: A prevalência e a incidência da EoE vêm aumentando significativamente em todo o mundo, não apenas por maior reconhecimento, mas possivelmente por um aumento real na sua ocorrência. Afeta tanto crianças quanto adultos.
- Perfil do Paciente: A EoE tem uma predileção por indivíduos do sexo masculino (proporção de 3:1 em relação ao feminino) e é mais comum em pacientes jovens e de meia-idade, com pico de diagnóstico entre 30 e 50 anos.
- Associação com Atopia: Existe uma forte e bem estabelecida associação entre a EoE e outras condições atópicas. Mais de 50% dos pacientes com EoE apresentam comorbidades como asma, rinite alérgica, dermatite atópica (eczema) ou alergias alimentares IgE-mediadas. Essa associação é um pilar para o raciocínio clínico.
Raciocínio Clínico
Ao se deparar com um paciente jovem, do sexo masculino, com queixa de disfagia para sólidos ("comida entalando") e uma história pessoal ou familiar de asma ou rinite, a Esofagite Eosinofílica deve estar no topo da lista de diagnósticos diferenciais. A falha de resposta aos Inibidores da Bomba de Prótons (IBPs) para sintomas de "azia" ou "refluxo" reforça ainda mais essa suspeita.
Fisiopatologia
A fisiopatologia da EoE é compreendida como uma resposta alérgica de hipersensibilidade mista (envolvendo mecanismos IgE e não-IgE mediados) a antígenos, principalmente alimentares, mas também aeroalérgenos. O esôfago, que normalmente não possui eosinófilos, torna-se o órgão-alvo de uma cascata inflamatória.
Cascata Inflamatória
- Gatilho Antigênico: Alérgenos alimentares (leite, trigo, ovo, soja sendo os mais comuns) ou, menos frequentemente, aeroalérgenos (pólen) entram em contato com a mucosa esofágica.
- Resposta Imune Th2: As células apresentadoras de antígenos ativam linfócitos T helper do tipo 2 (Th2). Essas células orquestram a resposta inflamatória, liberando citocinas-chave:
- Interleucina-13 (IL-13): Promove a expressão de eotaxina-3 pelas células epiteliais esofágicas. A eotaxina-3 é um potente quimioatraente específico para eosinófilos.
- Interleucina-5 (IL-5): É fundamental para a produção, maturação, recrutamento, ativação e sobrevida dos eosinófilos na medula óssea e nos tecidos periféricos, incluindo o esôfago.
- Interleucina-4 (IL-4): Contribui para a diferenciação de linfócitos B e produção de IgE.
- Infiltração e Ativação Eosinofílica: Atraídos pela eotaxina-3, os eosinófilos migram massivamente para o epitélio esofágico. Uma vez no local, eles degranulam, liberando proteínas citotóxicas como a proteína básica principal (MBP), a proteína catiônica eosinofílica (ECP) e a neurotoxina derivada de eosinófilos (EDN).
Remodelamento Tecidual
A inflamação crônica e a liberação de mediadores citotóxicos levam a um processo de remodelamento tecidual. A liberação de fatores de crescimento, como o Fator de Crescimento Transformador beta (TGF-β), estimula a proliferação de fibroblastos e a deposição de colágeno na lâmina própria e submucosa. Esse processo resulta em:
- Fibrose: Leva à perda de complacência e elasticidade do esôfago.
- Hiperplasia da camada basal: Espessamento do epitélio.
- Formação de estenoses e anéis: Consequências diretas da fibrose, causando os sintomas mecânicos da doença.
- Dismotilidade esofágica: A inflamação e a fibrose prejudicam a função neuromuscular normal do esôfago.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica da EoE varia significativamente com a idade, refletindo a progressão do remodelamento tecidual ao longo do tempo.
Adultos
- Disfagia para sólidos (90% dos casos): É o sintoma cardinal. Os pacientes frequentemente relatam que alimentos sólidos, especialmente carnes, pães ou arroz, "ficam presos" ou descem lentamente. Muitos desenvolvem estratégias adaptativas, como cortar a comida em pedaços muito pequenos, mastigar excessivamente ou beber grandes quantidades de líquido para "empurrar" o alimento.
- Impactação Alimentar (até 50% dos casos): É uma emergência médica e, muitas vezes, o evento que leva ao diagnóstico. O paciente apresenta uma obstrução completa do esôfago por um bolo alimentar, resultando em dor torácica súbita, incapacidade de engolir saliva (sialorreia) e necessidade de remoção endoscópica.
- Dor torácica não cardíaca: Pode ser o sintoma predominante em alguns pacientes, mimetizando angina.
- Azia (Pirose) refratária a IBP: Muitos pacientes são inicialmente diagnosticados e tratados como DRGE, mas não apresentam melhora dos sintomas com altas doses de inibidores da bomba de prótons.
- Regurgitação: Menos comum que na DRGE.
Crianças
Em crianças, os sintomas são mais inespecíficos e variam conforme a faixa etária:
- Lactentes e pré-escolares: Dificuldades alimentares, recusa alimentar, vômitos, irritabilidade e baixo ganho de peso (falha de crescimento).
- Crianças maiores e adolescentes: Dor abdominal, vômitos, e progressivamente, sintomas mais semelhantes aos dos adultos, como disfagia e dor torácica.
Exame Físico
O exame físico direcionado ao sistema gastrointestinal é tipicamente normal. No entanto, é crucial procurar por sinais de condições atópicas associadas, que podem aumentar o índice de suspeita, como eczema na pele, respiração sibilante (asma) ou mucosa nasal pálida e edemaciada (rinite alérgica).
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico de EoE é clinicopatológico, exigindo a combinação de sintomas clínicos, achados endoscópicos e, fundamentalmente, a confirmação histológica.
Endoscopia Digestiva Alta (EDA) com Biópsias
A EDA é o procedimento de escolha. Embora o esôfago possa ter aparência normal em até 10-30% dos casos, achados característicos são frequentemente encontrados e devem ser ativamente procurados:
- Anéis esofágicos fixos (múltiplos): Dão ao esôfago uma aparência corrugada ou anelada, conhecida como "traquealização" do esôfago.
- Exsudatos ou placas esbranquiçadas: Pequenos pontos ou placas brancas aderidas à mucosa, que correspondem a acúmulos de eosinófilos (microabscessos eosinofílicos).
- Sulcos lineares ou estrias longitudinais: Sulcos verticais que percorrem o esôfago.
- Edema e friabilidade da mucosa: A mucosa perde o brilho e se torna frágil, podendo rasgar facilmente ao toque do endoscópio (sinal do "papel crepom").
- Estenoses ou estreitamentos: Áreas de calibre reduzido, geralmente no esôfago médio ou proximal.
Armadilhas do ENARE
Uma questão pode descrever um achado endoscópico de "esôfago traquealizado" em um paciente com disfagia. Este termo é quase patognomônico de Esofagite Eosinofílica e deve direcionar o candidato para este diagnóstico, mesmo antes da confirmação histológica ser mencionada.
Estudo Histopatológico
As biópsias são obrigatórias para o diagnóstico, mesmo com endoscopia de aparência normal. A inflamação pode ser irregular ("em placas").
- Protocolo de Biópsia: Devem ser coletadas múltiplas biópsias (pelo menos 6), de diferentes níveis do esôfago (proximal e distal), para aumentar a sensibilidade diagnóstica.
- Critério Diagnóstico: O marco histológico é a presença de ≥15 eosinófilos por campo de grande aumento (CGA ou HPF) no pico de contagem.
- Outros achados: Hiperplasia da camada basal, alongamento das papilas, fibrose da lâmina própria e microabscessos eosinofílicos.
Tratamento e Manejo
Os objetivos do tratamento são duplos: alcançar a remissão clínica (alívio dos sintomas) e a remissão histológica (redução da inflamação eosinofílica para prevenir o remodelamento e as complicações a longo prazo). A abordagem é frequentemente resumida como os "3 Ds": Drogas, Dieta e Dilatação.
Drogas (Fármacos)
- Inibidores da Bomba de Prótons (IBPs): São considerados a terapia de primeira linha. Administrados em dose dupla (e.g., omeprazol 40 mg 2x/dia) por 8 semanas. Cerca de 30-50% dos pacientes com EoE respondem clínica e histologicamente aos IBPs. Este subgrupo, anteriormente chamado de "Eosinofilia Esofágica Responsiva a IBP (EE-IBP)", é hoje considerado um fenótipo da EoE. O mecanismo de ação vai além da supressão ácida, envolvendo um efeito anti-inflamatório direto na via da eotaxina-3.
- Corticosteroides Tópicos Deglutidos: Para pacientes que não respondem aos IBPs, esta é a terapia de escolha. A ideia é aplicar o corticoide diretamente na mucosa esofágica, minimizando a absorção sistêmica.
- Fluticasona: Utiliza-se o spray de um inalador dosimetrado (bombinha de asma), sem espaçador. O paciente aciona o jato na boca e o deglute.
- Budesonida: Prepara-se uma suspensão viscosa misturando o conteúdo de uma ampola para nebulização com um adoçante artificial (e.g., sucralose) para aumentar a aderência à mucosa.
- Instruções ao Paciente: É crucial orientar o paciente a não comer ou beber por 30 a 60 minutos após a administração para maximizar o tempo de contato do fármaco com o esôfago. O efeito colateral mais comum é a candidíase esofágica, que geralmente responde bem ao tratamento antifúngico.
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024)
A abordagem terapêutica para esofagite eosinofílica refratária à restrição alimentar (ou a outras terapias de primeira linha como IBP) inclui o uso de esteroides tópicos por via oral, como fluticasona ou budesonida. Esta é a terapia medicamentosa padrão-ouro para controlar a inflamação na EoE não responsiva a IBP.
Dieta (Terapia Nutricional)
Como a EoE é desencadeada principalmente por alérgenos alimentares, a eliminação desses gatilhos é uma estratégia terapêutica eficaz.
- Dieta de Eliminação Empírica: A mais comum é a dieta de eliminação de seis alimentos (SFED), que exclui os alérgenos mais comuns: leite, trigo, ovo, soja, nozes/amendoim e peixes/frutos do mar. Após alcançar a remissão, os alimentos são reintroduzidos um a um, com controle endoscópico, para identificar o(s) gatilho(s) específico(s). Dietas mais simples (quatro ou dois alimentos) também podem ser tentadas.
- Dieta Elementar: Consiste em uma fórmula à base de aminoácidos. É a mais eficaz (>90% de taxa de remissão), mas sua palatabilidade muito ruim e alto custo limitam seu uso a casos graves e refratários, especialmente em crianças.
Dilatação Endoscópica
A dilatação é um tratamento mecânico, não anti-inflamatório, reservado para pacientes com estenoses fibróticas significativas e disfagia persistente, apesar do controle da inflamação.
- Técnica: Realizada com balões ou sondas (velas) de calibre progressivo.
- Objetivo: Aliviar a obstrução mecânica e melhorar a disfagia.
- Riscos: O esôfago na EoE é mais friável, havendo um risco aumentado (embora ainda baixo, <1%) de dor pós-procedimento, lacerações profundas ou perfuração. Por isso, a dilatação deve ser feita de forma gentil e gradual.
Complicações e Prognóstico
Complicações
- Estenose Esofágica: A complicação mais comum a longo prazo, resultado do remodelamento fibrótico.
- Impactação Alimentar: Uma consequência direta das estenoses e da dismotilidade.
- Perfuração Esofágica: Rara, pode ser espontânea (síndrome de Boerhaave-like) ou iatrogênica (durante a dilatação ou impactação).
Prognóstico
A EoE é uma condição crônica e recorrente que exige manejo a longo prazo. Não há cura, e a interrupção do tratamento geralmente leva à recidiva dos sintomas e da inflamação. No entanto, o prognóstico geral é bom. É importante ressaltar que, com base nos dados atuais, a Esofagite Eosinofílica não parece aumentar o risco de malignidade esofágica (adenocarcinoma ou carcinoma de células escamosas).
Populações Especiais e Diagnóstico Diferencial
Diferenciação entre EoE e DRGE
Este é um dos principais desafios clínicos e um tópico frequente em exames. Embora haja sobreposição de sintomas, existem diferenças cruciais.
| Característica | Esofagite Eosinofílica (EoE) | Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) |
|---|---|---|
| Sintoma Principal | Disfagia para sólidos, impactação alimentar | Pirose (azia), regurgitação |
| História de Atopia | Comum (>50%) | Não associada |
| Resposta ao IBP | Resposta em 30-50% (fenótipo EE-IBP) | Resposta na maioria dos casos |
| Achados Endoscópicos | Anéis, sulcos, exsudatos, traquealização | Erosões, úlceras, esôfago de Barrett (geralmente no esôfago distal) |
| Localização da Eosinofilia | Difusa (esôfago proximal e distal) | Predominantemente distal |
| Contagem de Eosinófilos | Tipicamente alta (≥15/CGA) | Tipicamente baixa (<15/CGA) |
Manejo em Populações Pediátricas vs. Adultos
- População Pediátrica: O foco principal é garantir o crescimento e desenvolvimento adequados. As terapias dietéticas, incluindo a dieta elementar, são usadas com mais frequência. A preocupação com os efeitos a longo prazo dos corticosteroides também influencia as escolhas terapêuticas.
- População Adulta: O manejo foca mais no alívio da disfagia e na prevenção da impactação alimentar. A dilatação endoscópica é uma ferramenta utilizada quase exclusivamente nesta população. A adesão a dietas restritivas pode ser mais desafiadora.
Monitoramento a Longo Prazo
Dado o caráter crônico da doença, o monitoramento é essencial. Pacientes, mesmo que assintomáticos sob tratamento, podem ter inflamação histológica persistente. Recomenda-se o acompanhamento periódico com endoscopia e biópsias para avaliar a resposta ao tratamento e ajustar a terapia conforme necessário, visando a remissão histológica para prevenir o remodelamento fibrótico a longo prazo.
