Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE)
A Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) é uma das afecções mais comuns do trato gastrointestinal, representando uma parcela significativa das consultas em gastroenterologia e atenção primária. Sua relevância para as provas de residência, como o ENARE, reside em sua alta prevalência e no espectro de suas manifestações, que vão desde sintomas típicos e manejáveis até complicações graves como o adenocarcinoma de esôfago.
Introdução e Epidemiologia
A DRGE é definida, segundo o Consenso de Montreal, como uma condição que se desenvolve quando o refluxo do conteúdo gástrico para o esôfago causa sintomas incômodos e/or complicações. Essa definição é crucial, pois abrange tanto pacientes com sintomas clássicos (DRGE sintomática) quanto aqueles que desenvolvem lesões na mucosa esofágica (esofagite de refluxo) ou outras complicações, mesmo com sintomas menos proeminentes.
A prevalência da DRGE é particularmente alta nos países ocidentais, afetando de 10% a 20% da população. No Brasil, estudos apontam uma prevalência semelhante, em torno de 12%, o que corresponde a milhões de indivíduos. A condição tem um impacto substancial na qualidade de vida dos pacientes, interferindo no sono, na produtividade no trabalho e nas atividades diárias. Além disso, representa um custo significativo para os sistemas de saúde, devido à necessidade de consultas médicas, exames diagnósticos e uso crônico de medicamentos.
Fisiopatologia
A barreira antirrefluxo na junção esofagogástrica (JEG) é um mecanismo complexo que envolve o esfíncter esofágico inferior (EEI), o diafragma crural e a anatomia do ângulo de His. A falha dessa barreira é o evento central na fisiopatologia da DRGE. Vários mecanismos podem contribuir para essa falha:
- Relaxamentos Transitórios do Esfíncter Esofágico Inferior (RTEEI): Este é o principal mecanismo na maioria dos pacientes com DRGE, especialmente naqueles sem esofagite grave. Os RTEEI são relaxamentos do EEI que ocorrem independentemente da deglutição, mediados por um reflexo vagal. Embora sejam um evento fisiológico, em pacientes com DRGE, eles são mais frequentes e permitem o refluxo de conteúdo gástrico.
- Hipotonia do Esfíncter Esofágico Inferior (EEI): Um EEI com pressão de repouso cronicamente baixa (geralmente < 10 mmHg) é incapaz de conter a pressão intragástrica, facilitando o refluxo. Fatores como certos alimentos (gorduras, chocolate, menta), bebidas (álcool, café) e medicamentos (bloqueadores do canal de cálcio, nitratos, benzodiazepínicos) podem reduzir a pressão do EEI.
- Fatores Anatômicos (Hérnia de Hiato): A presença de uma hérnia de hiato por deslizamento é um dos principais fatores contribuintes. A hérnia desloca o EEI para o tórax, dissociando-o do diafragma crural. Isso elimina o efeito de "pinça" do diafragma durante a inspiração e cria um reservatório de ácido acima do diafragma, que pode ser facilmente refluxado para o esôfago.
- Atraso no Esvaziamento Gástrico: Condições como gastroparesia aumentam o volume e a pressão intragástrica, elevando a probabilidade de refluxo.
- Falha no "Clearance" (Depuração) Esofágico: Em condições normais, o esôfago remove o material refluído através de duas vias: a peristalse esofágica (clearance de volume) e a neutralização do ácido residual pela saliva deglutida, que é rica em bicarbonato (clearance químico). Distúrbios de motilidade esofágica e hipossalivação (comum em idosos ou fumantes) prolongam o tempo de contato do ácido com a mucosa, aumentando o risco de lesão.
Raciocínio Clínico
É fundamental entender que a DRGE não é uma doença única, mas um espectro. Um paciente pode ter RTEEI como principal mecanismo e apresentar sintomas sem lesão endoscópica (Doença do Refluxo Não Erosiva - DRNE). Outro pode ter uma grande hérnia de hiato e um EEI hipotônico, resultando em esofagite erosiva grave. A identificação do mecanismo predominante pode guiar a terapia, especialmente a indicação cirúrgica.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica da DRGE é dividida em síndromes esofágicas e extraesofágicas.
Síndromes Esofágicas (Sintomas Típicos)
- Pirose (Azia): É o sintoma mais comum e característico. Descrito como uma sensação de queimação retroesternal que se irradia em direção ao pescoço. Tipicamente piora após as refeições (especialmente as volumosas ou gordurosas), ao se deitar ou ao se curvar.
- Regurgitação: Percepção do retorno do conteúdo gástrico ou esofágico para a boca ou hipofaringe, sem esforço de vômito. Pode ter um gosto ácido ou amargo.
Síndromes Extraesofágicas (Sintomas Atípicos)
Essas manifestações ocorrem por mecanismos de microaspiração do conteúdo refluído ou por reflexos vagais mediados pela acidificação do esôfago distal.
- Manifestações Pulmonares: Tosse crônica, asma (especialmente de início tardio e não alérgica), e crises de broncoespasmo.
- Manifestações Otorrinolaringológicas: Laringite posterior (laringite de refluxo), rouquidão, pigarro crônico, globus faríngeo (sensação de "bola na garganta").
- Outras: Erosão do esmalte dentário, dor torácica não cardiogênica (um importante diagnóstico diferencial do infarto agudo do miocárdio).
Sinais de Alarme
A presença de qualquer um dos seguintes sinais ou sintomas exige investigação imediata, primariamente com endoscopia digestiva alta (EDA), para excluir complicações ou malignidade.
- Disfagia: Dificuldade para engolir. Sugere estenose péptica ou adenocarcinoma.
- Odinofagia: Dor ao engolir. Sugere esofagite grave ou úlcera esofágica.
- Perda de peso inexplicada: Levanta suspeita de malignidade.
- Sangramento Gastrointestinal: Hematêmese (vômito com sangue), melena (fezes pretas) ou anemia ferropriva.
- Início dos sintomas após os 50 anos.
- História familiar de câncer de esôfago ou estômago.
O exame físico na DRGE não complicada é geralmente normal. Pode haver sensibilidade à palpação epigástrica, mas este é um achado inespecífico. Em casos de manifestações extraesofágicas, o exame direcionado pode revelar alterações (ex: chiados na ausculta pulmonar, eritema laríngeo na laringoscopia).
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE_2020_Q10)
A hérnia de hiato por deslizamento (Tipo I) é o tipo mais comum de hérnia hiatal (correspondendo a >95% dos casos) e é o fator anatômico que mais frequentemente se associa aos sintomas de refluxo gastroesofágico. Ela ocorre quando a junção esofagogástrica e uma porção do estômago deslizam para o tórax através do hiato diafragmático. As hérnias paraesofágicas (Tipos II, III e IV) são menos comuns e estão mais associadas a complicações mecânicas como volvo e encarceramento.
Investigação Diagnóstica
A abordagem diagnóstica depende da apresentação clínica.
Diagnóstico Clínico e Prova Terapêutica
Em pacientes jovens com sintomas típicos de pirose e regurgitação, e sem sinais de alarme, o diagnóstico é presuntivo. Uma prova terapêutica com um Inibidor de Bomba de Prótons (IBP) em dose plena por 4 a 8 semanas é uma estratégia aceita. A melhora significativa dos sintomas corrobora o diagnóstico de DRGE.
Endoscopia Digestiva Alta (EDA)
A EDA não é necessária para o diagnóstico inicial em todos os pacientes. Suas principais indicações são:
- Presença de sinais de alarme.
- Falha na resposta ao tratamento empírico com IBP.
- Sintomas de longa data (> 5-10 anos) para rastreamento de Esôfago de Barrett, especialmente em homens brancos, com mais de 50 anos, obesos e tabagistas.
- Avaliação pré-operatória antes de uma cirurgia antirrefluxo.
A EDA permite visualizar a mucosa esofágica, identificar esofagite (classificada por Los Angeles), estenoses, e o Esôfago de Barrett, além de permitir a realização de biópsias.
| Grau | Descrição Endoscópica |
|---|---|
| A | Uma ou mais quebras mucosas com menos de 5 mm de extensão. |
| B | Uma ou mais quebras mucosas com mais de 5 mm de extensão, mas não confluentes entre os topos de duas pregas mucosas. |
| C | Quebras mucosas confluentes, mas não circunferenciais. |
| D | Quebras mucosas circunferenciais. |
pHmetria Esofágica de 24 horas
Este é o padrão-ouro para o diagnóstico da DRGE. Consiste na inserção de um cateter fino via nasal com um sensor de pH posicionado 5 cm acima do EEI. O exame quantifica o tempo em que o pH esofágico fica abaixo de 4. É indicado quando:
- O diagnóstico de DRGE é incerto, especialmente em pacientes com sintomas atípicos (tosse crônica, laringite) e EDA normal.
- Há persistência dos sintomas apesar do tratamento com IBP em dose otimizada.
- É necessária a confirmação do refluxo anormal antes da cirurgia antirrefluxo.
A impedancio-pHmetria é uma variação que detecta o refluxo de qualquer conteúdo (ácido, não-ácido ou gasoso), sendo útil em pacientes com sintomas persistentes em uso de IBP.
Manometria Esofágica
A manometria avalia a motilidade do esôfago e a função do EEI. Não diagnostica DRGE, mas é essencial na avaliação pré-operatória da cirurgia antirrefluxo para:
- Excluir distúrbios de motilidade como acalasia, que contraindicam a fundoplicatura completa.
- Localizar precisamente o EEI para o correto posicionamento da sonda de pHmetria.
Tratamento e Manejo
O tratamento da DRGE é escalonado, começando com medidas comportamentais e progredindo para terapia farmacológica e, em casos selecionados, cirurgia.
1. Modificações no Estilo de Vida
- Perda de peso: A medida isolada mais eficaz para pacientes com sobrepeso ou obesidade.
- Elevação da cabeceira da cama: Elevar a cabeceira em 15-20 cm com blocos (não apenas com travesseiros) para usar a gravidade a favor do esvaziamento esofágico.
- Modificações dietéticas: Evitar alimentos que relaxam o EEI (gorduras, chocolate, álcool, menta) ou que irritam a mucosa (cítricos, tomate, café, pimenta). Evitar refeições volumosas e não se deitar por 2-3 horas após comer.
- Cessação do tabagismo.
2. Terapia Farmacológica
- Antiácidos e Alginatos: Para alívio rápido e sob demanda de sintomas leves e infrequentes. Neutralizam o ácido gástrico ou formam uma barreira de espuma protetora.
- Antagonistas dos Receptores H2 (ex: famotidina): Bloqueiam a produção de ácido estimulada pela histamina. São menos potentes que os IBPs e podem desenvolver taquifilaxia (perda de efeito com o uso contínuo). Úteis para sintomas leves ou como terapia noturna.
- Inibidores da Bomba de Prótons (IBPs - ex: omeprazol, pantoprazol, esomeprazol): São a pedra angular do tratamento. Bloqueiam a via final comum da secreção ácida (a bomba de H+/K+-ATPase). Devem ser tomados 30-60 minutos antes da primeira refeição do dia para máxima eficácia. São superiores aos antagonistas H2 na cicatrização da esofagite e no alívio dos sintomas.
Armadilhas do ENARE
Questões sobre o uso crônico de IBPs são cada vez mais comuns. Esteja ciente das associações (não necessariamente causalidade) descritas na literatura: aumento do risco de infecções entéricas (Clostridioides difficile), pneumonia comunitária, fraturas ósseas (por má absorção de cálcio), hipomagnesemia, nefrite intersticial aguda e demência. A recomendação atual é usar a menor dose eficaz pelo menor tempo necessário.
3. Tratamento Cirúrgico (Fundoplicatura)
A cirurgia antirrefluxo, mais comumente a fundoplicatura à Nissen (360°) por via laparoscópica, é uma opção para casos selecionados. As indicações incluem:
- Falha do tratamento clínico (sintomas refratários).
- Pacientes jovens que necessitam de terapia crônica com IBP e desejam uma alternativa definitiva.
- Presença de complicações como regurgitação volumosa não controlada com medicação.
- Presença de uma grande hérnia de hiato sintomática.
A cirurgia reconstrói a barreira antirrefluxo criando uma válvula com o fundo gástrico ao redor do esôfago distal.
Complicações e Prognóstico
A DRGE crônica e não tratada pode levar a complicações significativas:
- Esofagite Erosiva: Inflamação e erosões da mucosa esofágica, podendo causar dor e sangramento.
- Estenose Péptica: Cicatrização e fibrose decorrentes da inflamação crônica, levando ao estreitamento do lúmen esofágico e causando disfagia progressiva para sólidos.
- Esôfago de Barrett: É a complicação mais temida. Trata-se de uma metaplasia intestinal, onde o epitélio escamoso normal do esôfago distal é substituído por epitélio colunar com células caliciformes. É uma lesão pré-maligna que aumenta o risco de adenocarcinoma de esôfago em 30 a 40 vezes. Pacientes com Barrett necessitam de vigilância endoscópica periódica com biópsias.
- Adenocarcinoma de Esôfago: A incidência deste câncer tem aumentado drasticamente no mundo ocidental, paralelamente ao aumento da prevalência de DRGE e obesidade.
Populações Especiais
Gestantes
A DRGE é extremamente comum na gravidez devido a fatores hormonais (progesterona relaxa o EEI) e mecânicos (aumento da pressão intra-abdominal). O tratamento é escalonado:
- Modificações no estilo de vida.
- Antiácidos (preferir os à base de cálcio ou magnésio).
- Sucralfato.
- Antagonistas H2 (ranitidina era a preferida; famotidina é uma alternativa).
- IBPs (omeprazol é o mais estudado, considerado seguro quando indicado).
Lactentes
O refluxo fisiológico é comum e benigno na maioria dos lactentes ("regurgitador feliz"). A DRGE patológica é suspeitada na presença de baixo ganho de peso, irritabilidade excessiva, recusa alimentar ou sintomas respiratórios. O manejo inicial é conservador (medidas posturais, espessamento das fórmulas). A terapia farmacológica é reservada para casos graves.
Idosos
Nesta população, a DRGE pode ter apresentações atípicas e há um maior risco de complicações graves (esofagite, estenose, Barrett). É preciso ter atenção redobrada aos sinais de alarme e aos potenciais efeitos adversos e interações medicamentosas dos IBPs.
