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Difteria

A difteria é uma doença infecciosa aguda, toxinoproduzida, causada por bacilos gram-positivos da espécie Corynebacterium diphtheriae. Embora rara em países com alta cobertura vacinal, continua sendo uma ameaça em regiões com falhas na imunização, representando um tema clássico e de alto impacto em provas de residência, como o ENARE, devido à sua gravidade e à necessidade de reconhecimento e manejo rápidos.

Introdução e Epidemiologia

A difteria é definida como uma doença bacteriana aguda, cujo quadro clínico é primariamente mediado por uma potente exotoxina. A bactéria coloniza a nasofaringe ou, menos comumente, a pele. Apenas as cepas de C. diphtheriae que foram lisogenizadas por um bacteriófago portador do gene tox são capazes de produzir a toxina diftérica e causar a doença grave.

A principal ferramenta de controle e prevenção é a imunização ativa através da vacina DTP (tríplice bacteriana, contra difteria, tétano e coqueluche) e seus reforços. A introdução da vacinação em massa no século XX transformou a difteria de uma das principais causas de mortalidade infantil em uma doença rara. No entanto, surtos continuam a ocorrer globalmente em populações não vacinadas ou sub-vacinadas. A queda nas taxas de vacinação, seja por movimentos antivacina, desinformação ou interrupção de serviços de saúde (como visto durante a pandemia de COVID-19), leva a um risco real de ressurgimento da doença. O Brasil, através do Programa Nacional de Imunizações (PNI), oferece um esquema vacinal robusto, mas a vigilância epidemiológica é constante para identificar e controlar casos importados ou surtos em bolsões de baixa cobertura.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da difteria é um exemplo clássico de doença mediada por toxina. O processo pode ser dividido em etapas locais e sistêmicas:

  1. Colonização: O C. diphtheriae se estabelece na mucosa do trato respiratório superior, geralmente na faringe e amígdalas.
  2. Produção de Exotoxina: As cepas toxigênicas produzem a exotoxina diftérica, uma proteína composta por duas subunidades (A e B).
    • Subunidade B (Binding): Liga-se a receptores específicos na superfície de células humanas, permitindo a entrada da toxina na célula por endocitose.
    • Subunidade A (Active): Uma vez dentro da célula, a subunidade A é clivada e liberada no citoplasma. Ela catalisa a ribosilação do ADP do Fator de Elongação 2 (EF-2), uma molécula essencial para a translocação do RNA mensageiro nos ribossomos.
  3. Inibição da Síntese Proteica: A inativação do EF-2 interrompe completamente a síntese de proteínas, levando à morte celular (necrose).
  4. Formação da Pseudomembrana: A necrose do epitélio respiratório local, combinada com a exsudação de fibrina, leucócitos, eritrócitos e as próprias bactérias, forma uma camada espessa, acinzentada e firmemente aderida: a pseudomembrana. A tentativa de remover esta membrana causa sangramento, pois ela está entrelaçada com o tecido necrosado subjacente.
  5. Efeitos Sistêmicos: A toxina é absorvida pela corrente sanguínea e se dissemina pelo corpo, afetando órgãos que expressam seus receptores, principalmente o coração, o sistema nervoso e os rins. O dano a esses órgãos-alvo é responsável pelas complicações mais graves e tardias da doença.

Raciocínio Clínico

Compreender que a doença é causada por uma toxina é fundamental para o tratamento. O antibiótico mata a bactéria, impedindo a produção de mais toxina. O soro antidiftérico (antitoxina) neutraliza a toxina que já está circulando no sangue, mas não consegue reverter o dano celular já estabelecido pela toxina que já se ligou às células. Isso explica a urgência em administrar a antitoxina: cada minuto de atraso permite que mais toxina se ligue irreversivelmente aos tecidos.

Apresentação Clínica e Exame Físico

O quadro clínico da difteria faríngea, a forma mais comum e grave, tem um início gradual. Os sintomas iniciais são inespecíficos e incluem mal-estar, dor de garganta, febre baixa (geralmente < 38,5°C) e anorexia. Em 2 a 3 dias, o quadro evolui para a sua forma característica.

Achados do Exame Físico:

  • Pseudomembrana: Este é o achado cardinal. Caracteriza-se por ser uma placa espessa, de coloração branco-acinzentada ou até esverdeada, com aspecto de "couro". Ela é firmemente aderente à mucosa subjacente (amígdalas, úvula, palato mole, faringe posterior). A tentativa de sua remoção com um abaixador de língua ou espátula resulta em sangramento. Isso a diferencia das placas purulentas da faringite estreptocócica, que são facilmente removíveis.
  • Edema Cervical ("Pescoço Taurino" ou "Bull Neck"): Em casos graves, a toxina causa linfadenopatia cervical pronunciada e edema extenso dos tecidos moles do pescoço. O pescoço torna-se maciçamente inchado, perdendo seus contornos normais. Este achado é um sinal de mau prognóstico e está associado a um alto risco de obstrução das vias aéreas.
  • Outros Sinais: Hálito adocicado e fétido é frequentemente descrito. O paciente pode apresentar voz anasalada devido à paralisia do palato mole.

Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2024

O reconhecimento do quadro clínico clássico da difteria é um ponto de alta frequência em provas. A tríade de placas pseudomembranosas aderentes em amígdalas que sangram à manipulação, edema cervical intenso ("pescoço taurino") e o consequente risco de asfixia mecânica por obstrução da via aérea é a imagem mental que o candidato deve ter para suspeitar imediatamente da doença e iniciar o manejo de emergência.

Outras Formas Clínicas:

  • Difteria Laríngea: Pode ser uma extensão da forma faríngea ou ocorrer isoladamente. Causa rouquidão, tosse "de cachorro" e estridor, mimetizando uma laringotraqueíte viral (crupe), mas com maior toxicidade sistêmica. É extremamente perigosa devido ao risco de obstrução aguda da via aérea.
  • Difteria Nasal: Geralmente mais branda, manifesta-se com uma secreção nasal serossanguinolenta ou purulenta, muitas vezes unilateral, com formação de uma membrana esbranquiçada no septo nasal.
  • Difteria Cutânea: Mais comum em climas tropicais e em populações com más condições de higiene. Apresenta-se como uma úlcera crônica, que não cicatriza, coberta por uma membrana acinzentada. A absorção sistêmica da toxina é menos comum, mas pode ocorrer.

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico da difteria é eminentemente clínico. A suspeita deve surgir a partir da história e dos achados do exame físico, especialmente a presença da pseudomembrana característica. O tratamento NUNCA deve ser adiado para aguardar a confirmação laboratorial.

A confirmação laboratorial é realizada para fins epidemiológicos e para confirmar o diagnóstico. O procedimento é:

  1. Coleta da Amostra: Deve-se coletar material da orofaringe e/ou nasofaringe com um swab, idealmente de uma área sob a borda da pseudomembrana. A coleta deve ser feita antes do início da antibioticoterapia, se possível.
  2. Cultura: A amostra é semeada em meios de cultura específicos, como o meio de Löffler (que promove o crescimento do bacilo) e o ágar telureto de potássio (meio de Tinsdale), onde o C. diphtheriae forma colônias pretas com um halo marrom.
  3. Teste de Toxigenicidade (Teste de Elek): Após o isolamento da bactéria, é crucial determinar se a cepa é produtora de toxina. O teste de Elek é um teste de imunoprecipitação in vitro que detecta a produção da exotoxina. A PCR para o gene tox também pode ser utilizada.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode apresentar um caso de faringite com placas e perguntar a conduta. Se houver descrição de febre alta, exsudato purulento facilmente removível e ausência de edema cervical importante, a principal hipótese é faringite estreptocócica. Contudo, se o enunciado mencionar febre baixa, mal-estar, uma placa aderente que sangra e edema cervical, a resposta correta será a suspeita de difteria e a conduta de emergência (internação, antitoxina e antibiótico), mesmo antes de qualquer teste. A principal armadilha é atrasar o tratamento para pedir um "teste rápido" ou cultura.

Tratamento e Manejo

A difteria é uma emergência médica que exige hospitalização imediata, preferencialmente em unidade de terapia intensiva, e isolamento respiratório por gotículas. O tratamento é baseado em três pilares:

1. Soro Antidiftérico (SAD) - Antitoxina

É a medida mais importante para reduzir a mortalidade. O SAD é uma imunoglobulina heteróloga (de origem equina) que neutraliza a toxina diftérica circulante, impedindo que ela se ligue a novas células.

  • Indicação: Deve ser administrado o mais rápido possível em todo caso de suspeita clínica, sem aguardar confirmação laboratorial.
  • Teste de Sensibilidade: Por ser um soro heterólogo, há risco de reações de hipersensibilidade (anafilaxia). Um teste de sensibilidade intradérmico ou conjuntival deve ser realizado antes da administração da dose completa, com material de reanimação prontamente disponível.
  • Dose: A dose varia conforme a gravidade e a localização da doença (ex: 20.000 a 40.000 UI para doença nasal ou faríngea limitada; 80.000 a 120.000 UI para doença grave com "pescoço taurino"). É administrado por via intravenosa.

2. Antibioticoterapia

O objetivo do antibiótico é erradicar o C. diphtheriae para:

  • Interromper a produção de mais toxina.
  • Prevenir a transmissão da bactéria para outras pessoas.

Os esquemas recomendados são:

  • Penicilina G Procaína: 600.000 UI, IM, a cada 12 horas para pacientes >10kg (ou 12.500 a 25.000 UI/kg/dose para crianças).
  • Eritromicina (estearato): 500 mg, VO, 6/6 horas (ou 40-50 mg/kg/dia para crianças). É a alternativa para alérgicos à penicilina.

O tratamento dura 14 dias. O isolamento respiratório pode ser descontinuado após duas culturas de vigilância negativas, colhidas com 24 horas de intervalo após o término do tratamento.

3. Cuidados de Suporte

  • Monitoramento das Vias Aéreas: Prioridade máxima. Pacientes com "pescoço taurino" ou difteria laríngea devem ser monitorados de perto para sinais de obstrução. Intubação orotraqueal ou traqueostomia de emergência podem ser necessárias.
  • Monitoramento Cardíaco: Realização de eletrocardiogramas (ECG) seriados para detectar arritmias ou bloqueios cardíacos decorrentes da miocardite.
  • Repouso no Leito: Essencial para reduzir o trabalho cardíaco durante o período de risco para miocardite.
  • Suporte Nutricional e Hidratação.

Complicações e Prognóstico

As complicações são as principais causas de morte e são diretamente relacionadas aos efeitos sistêmicos da toxina. As mais importantes são:

  • Obstrução de Vias Aéreas: A principal causa de morte na fase aguda, causada pela pseudomembrana e pelo edema maciço ("pescoço taurino").
  • Miocardite: Ocorre em até dois terços dos pacientes, geralmente surgindo entre a primeira e a segunda semana de doença. Manifesta-se com taquicardia desproporcional à febre, extrassístoles, bloqueios de ramo, bloqueio atrioventricular (incluindo BAVT) e insuficiência cardíaca. É a principal causa de morte tardia.
  • Neuropatia: Acomete cerca de 10% dos casos. Tipicamente, inicia-se com uma paralisia localizada (paralisia do palato mole, causando voz anasalada e regurgitação de líquidos), seguida por paralisia de nervos cranianos (oculomotor, ciliar) semanas depois. Uma polineuropatia sensitivo-motora simétrica e ascendente, semelhante a Guillain-Barré, pode ocorrer de 5 a 8 semanas após o início da doença. A recuperação neurológica geralmente é completa, mas lenta.
  • Insuficiência Renal: Menos comum, por necrose tubular aguda.

O prognóstico depende diretamente da precocidade do diagnóstico e da administração da antitoxina. A letalidade varia de 5% a 10%, mas pode ultrapassar 20% em crianças pequenas e adultos com mais de 40 anos, ou em casos com diagnóstico tardio.

Prevenção

A prevenção é a pedra angular do controle da difteria e se baseia em duas estratégias principais:

1. Imunização Ativa

A vacinação universal é a medida mais eficaz. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil estabelece o seguinte esquema:

Idade Vacina Componentes
2, 4 e 6 meses Pentavalente DTP + Hib + Hepatite B
15 meses DTP (1º reforço) Tríplice bacteriana celular
4 anos DTP (2º reforço) Tríplice bacteriana celular
Adolescentes e Adultos dT (dupla adulto) Reforço a cada 10 anos. Para gestantes e profissionais de saúde, uma dose deve ser com a dTpa (tríplice acelular do tipo adulto).

Importante: A imunidade diminui com o tempo, tornando os reforços na vida adulta cruciais.

2. Controle de Contatos

Diante de um caso suspeito ou confirmado, todos os contatos próximos (familiares, colegas de escola/trabalho, profissionais de saúde) devem ser identificados e manejados:

  1. Vigilância Clínica: Monitorar por 7 dias para o surgimento de sintomas.
  2. Coleta de Culturas: Coletar swabs de nasofaringe e orofaringe para cultura, independentemente do estado vacinal.
  3. Quimioprofilaxia: Administrar antibioticoprofilaxia para todos os contatos próximos, independentemente do resultado da cultura. O esquema de escolha é Eritromicina oral por 7 dias ou uma dose única de Penicilina G Benzatina IM.
  4. Verificação e Atualização Vacinal:
    • Contatos com esquema vacinal incompleto ou desconhecido devem iniciar ou completar a vacinação.
    • Contatos com esquema completo, mas cuja última dose foi há mais de 5 anos, devem receber uma dose de reforço.
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