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Coqueluche (Pertussis)

A coqueluche, também conhecida como "tosse comprida", é uma infecção respiratória aguda altamente contagiosa, causada pela bactéria Gram-negativa Bordetella pertussis. É uma doença imunoprevenível, mas que continua a ser um importante problema de saúde pública global, com surtos cíclicos e uma mudança no perfil epidemiológico, afetando cada vez mais adolescentes e adultos devido à perda da imunidade vacinal ao longo do tempo. Para o ENARE, é fundamental compreender suas fases clínicas, o diagnóstico diferencial, o manejo terapêutico e, principalmente, as estratégias de prevenção.

Introdução e Epidemiologia

A coqueluche é uma doença de notificação compulsória no Brasil. Caracteriza-se por uma tosse seca, paroxística, que pode levar a complicações graves, especialmente em lactentes jovens não vacinados ou com esquema vacinal incompleto. A transmissão ocorre por meio de gotículas de secreção respiratória eliminadas por um indivíduo infectado ao tossir, espirrar ou falar.

O perfil epidemiológico da coqueluche tem se modificado nas últimas décadas. Antes da vacinação em massa, era predominantemente uma doença da infância. Atualmente, observa-se um fenômeno de ressurgimento em vários países, incluindo o Brasil, com dois picos de incidência:

  • Lactentes menores de 1 ano: Grupo de maior risco para formas graves e óbito. A maioria dos casos ocorre em bebês com menos de 6 meses, que ainda não completaram o esquema vacinal primário.
  • Adolescentes e Adultos: Tornaram-se os principais reservatórios e fontes de transmissão da B. pertussis para os lactentes. Isso ocorre devido à diminuição da imunidade conferida tanto pela vacina quanto pela infecção natural ao longo dos anos (waning immunity). Nesses grupos, a doença frequentemente se apresenta de forma atípica, como uma tosse persistente, sendo subdiagnosticada.

A doença ocorre em ciclos epidêmicos a cada 3-5 anos, mesmo em populações com alta cobertura vacinal.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da coqueluche é diretamente ligada à produção de uma série de toxinas e fatores de virulência pela B. pertussis. O processo infeccioso pode ser dividido em etapas:

  1. Adesão: Após a inalação, a bactéria adere especificamente às células epiteliais ciliadas do trato respiratório (traqueia e brônquios) através de adesinas como a hemaglutinina filamentosa e a pertactina.
  2. Multiplicação e Produção de Toxinas: A bactéria se multiplica localmente e libera múltiplas toxinas que causam dano tecidual e os sintomas sistêmicos da doença. As principais toxinas são:
    • Toxina Pertussis (TP): É a principal toxina e um componente chave das vacinas acelulares. Ela causa ADP-ribosilação de proteínas G inibitórias, levando a um aumento do AMP cíclico intracelular. Isso resulta em efeitos sistêmicos, sendo o mais característico uma linfocitose acentuada, pois a toxina impede a migração dos linfócitos da corrente sanguínea para os tecidos linfoides.
    • Citotoxina Traqueal: Um fragmento do peptidoglicano da parede celular bacteriana que é diretamente tóxico para as células epiteliais ciliadas. Ela causa a extrusão dessas células e a paralisia dos cílios remanescentes (ciliostase).
    • Toxina Adenilato Ciclase/Hemolisina: Penetra nas células fagocíticas (neutrófilos, macrófagos) e as inibe, prejudicando a primeira linha de defesa do hospedeiro.
  3. Manifestação Clínica: A destruição do epitélio ciliar (ciliostase) prejudica o mecanismo de limpeza das vias aéreas (clearance mucociliar). O acúmulo de muco, detritos celulares e bactérias provoca uma inflamação intensa e a irritação que desencadeia a tosse severa e paroxística característica da doença.

Raciocínio Clínico

Por que a coqueluche causa uma tosse tão violenta e incontrolável? A resposta está na fisiopatologia. A B. pertussis não invade a corrente sanguínea; ela age localmente, destruindo o "tapete" ciliar que limpa as vias aéreas. Sem esse mecanismo, o corpo tenta expelir o muco e os detritos acumulados através do reflexo mais potente que possui: a tosse. A inflamação e a irritação são tão intensas que o reflexo se torna exagerado e paroxístico, levando a múltiplos episódios de tosse em uma única expiração, seguidos pela inspiração forçada contra uma glote semi-fechada (o guincho).

Apresentação Clínica e Exame Físico

A apresentação clássica da coqueluche é dividida em três estágios distintos. A duração e a intensidade de cada fase podem variar com a idade e o estado vacinal do paciente.

Estágio 1: Fase Catarral (Duração: 1-2 semanas)

  • Sintomas: Indistinguível de uma infecção de via aérea superior (IVAS) comum. Apresenta-se com coriza, espirros, febre baixa ou ausente, lacrimejamento e uma tosse leve e irritativa.
  • Importância Clínica: Esta é a fase de maior transmissibilidade da doença. O diagnóstico raramente é feito aqui, pois os sintomas são inespecíficos.

Estágio 2: Fase Paroxística (Duração: 2-6 semanas, podendo se estender)

  • Sintomas: É a fase que define a doença. A tosse piora progressivamente e se torna paroxística.
    • Paroxismos de tosse: Crises súbitas e incontroláveis de tosse, com 5 a 15 episódios de tosse rápida e curta durante uma única expiração, sem que o paciente consiga inspirar entre eles.
    • Guincho inspiratório (Whoop): Ao final do paroxismo, o paciente realiza uma inspiração forçada e profunda contra uma glote estreitada, produzindo um som agudo característico. Atenção: O guincho pode estar ausente em lactentes muito jovens (que podem apresentar apneia) e em adolescentes/adultos.
    • Vômito pós-tussígeno: É um achado muito comum e sugestivo, ocorrendo após as crises de tosse devido à intensidade do esforço.
    • Sinais associados: Durante as crises, o paciente pode apresentar cianose, prostração, exaustão, petéquias na face e hemorragia subconjuntival devido ao aumento da pressão intratorácica.
  • Exame Físico: Entre as crises de tosse, o paciente pode parecer bem e a ausculta pulmonar costuma ser normal.

Estágio 3: Fase de Convalescença (Duração: semanas a meses)

  • Sintomas: Os paroxismos de tosse diminuem gradualmente em frequência e intensidade. A tosse pode persistir por meses e ser exacerbada por outros irritantes ou infecções respiratórias. É a origem do nome popular "tosse dos 100 dias".
Referência Rápida: Fases Clínicas da Coqueluche
Fase Duração Características Principais Transmissibilidade
Catarral 1-2 semanas Sintomas de IVAS (coriza, tosse leve, febre baixa). Máxima
Paroxística 2-6 semanas Paroxismos de tosse, guincho inspiratório, vômito pós-tussígeno, cianose. Diminuindo
Convalescença Semanas a meses Melhora gradual da tosse, que pode persistir por longo período. Mínima ou ausente (após 5 dias de antibiótico)

Armadilhas do ENARE

A apresentação clínica da coqueluche varia com a idade. Uma questão pode descrever um lactente de 2 meses com episódios de engasgo, cianose e apneia, sem a tosse clássica ou o guincho. Essa é uma apresentação típica e grave em lactentes jovens. Em adolescentes e adultos, a única manifestação pode ser uma tosse seca e persistente por mais de 2 semanas, sem paroxismos. A ausência dos achados "clássicos" não exclui o diagnóstico.

Diagnóstico Laboratorial

O diagnóstico da coqueluche é baseado na suspeita clínica e confirmado por exames laboratoriais. A escolha do teste depende do tempo de início dos sintomas.

  • PCR (Reação em Cadeia da Polimerase): É o padrão-ouro para o diagnóstico.
    • Amostra: Aspirado ou swab de nasofaringe.
    • Sensibilidade: Máxima nas primeiras 3 a 4 semanas de tosse, quando a carga bacteriana é maior. Após esse período, a sensibilidade diminui drasticamente.
    • Vantagem: Rápido e altamente sensível e específico.
  • Cultura:
    • Amostra: Swab de nasofaringe, semeado em meio de cultura específico (Regan-Lowe ou Bordet-Gengou).
    • Sensibilidade: Menor que a do PCR, especialmente se o paciente já iniciou antibioticoterapia ou após as duas primeiras semanas de doença. É mais útil para fins de vigilância epidemiológica (obtenção de isolados para análise).
  • Sorologia (IgG anti-toxina pertussis):
    • Indicação: Útil para diagnóstico em fases mais tardias da doença (após 4 semanas de tosse), quando o PCR já é negativo.
    • Limitação: A interpretação pode ser difícil em pacientes vacinados recentemente ou com infecção prévia. Geralmente requer amostras pareadas (fase aguda e convalescente) para demonstrar soroconversão.
  • Hemograma: Embora inespecífico, um achado clássico e muito sugestivo em crianças não vacinadas é a leucocitose (15.000-100.000/mm³) com linfocitose absoluta predominante. Este achado é causado pela ação da Toxina Pertussis.

Tratamento e Manejo

O manejo da coqueluche envolve medidas de suporte, antibioticoterapia e prevenção da transmissão.

Antibioticoterapia

Os antibióticos são indicados para todos os casos suspeitos ou confirmados. Seus objetivos são:

  1. Erradicar a bactéria da nasofaringe, tornando o paciente não infeccioso em aproximadamente 5 dias e, assim, reduzindo a transmissão.
  2. Amenizar a gravidade e a duração dos sintomas, mas apenas se iniciados precocemente, na fase catarral. Se iniciados na fase paroxística, têm pouco ou nenhum efeito na evolução clínica da tosse, mas ainda são essenciais para controlar a disseminação.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE_2024_Q58)

O tratamento de escolha para a coqueluche (causada pela Bordetella pertussis) é com antibióticos da classe dos macrolídeos. A Azitromicina é frequentemente a primeira escolha devido à sua posologia mais cômoda (dose única diária por 5 dias) e melhor perfil de tolerabilidade gastrointestinal.

Esquemas de Antibioticoterapia para Coqueluche
Antibiótico População Dose e Duração
Azitromicina (1ª Escolha) Lactentes < 6 meses
Lactentes > 6 meses e Crianças
Adultos
10 mg/kg/dia, 1x/dia, por 5 dias
10 mg/kg no D1 (máx 500mg), seguido de 5 mg/kg/dia do D2 ao D5 (máx 250mg)
500 mg no D1, seguido de 250 mg/dia do D2 ao D5
Claritromicina Lactentes > 1 mês, Crianças e Adultos 15 mg/kg/dia, dividido em 2 doses, por 7 dias (máx 1g/dia)
Sulfametoxazol-Trimetoprim (SMX-TMP) (Alternativa) Lactentes > 2 meses, Crianças e Adultos (alérgicos a macrolídeos) 8 mg/kg/dia de TMP, dividido em 2 doses, por 14 dias

Nota: A Eritromicina era classicamente utilizada, mas está associada a maior risco de estenose hipertrófica de piloro em neonatos e maior intolerância gastrointestinal. O SMX-TMP é contraindicado em menores de 2 meses.

Medidas de Suporte

São a base do tratamento, especialmente em lactentes, que frequentemente necessitam de hospitalização para:

  • Monitorização cardiorrespiratória (risco de apneia e bradicardia).
  • Oxigenoterapia para manter a saturação adequada.
  • Aspiração de secreções para manter a via aérea pérvia.
  • Hidratação e suporte nutricional, pois a tosse e os vômitos podem levar à desidratação e perda de peso.
  • Manter um ambiente calmo, evitando estímulos que possam desencadear os paroxismos (fumaça, poeira, etc.).

Importante: Sedativos, antitussígenos e broncodilatadores não são recomendados, pois não demonstraram eficácia e podem ser prejudiciais.

Isolamento

O paciente deve ser mantido em precauções de gotículas até completar 5 dias de antibioticoterapia eficaz.

Complicações e Prognóstico

As complicações são mais frequentes e graves em lactentes menores de 6 meses.

  • Em lactentes:
    • Apneia: A complicação mais comum e potencialmente fatal neste grupo.
    • Pneumonia: Pode ser causada pela própria B. pertussis ou por uma coinfecção bacteriana secundária.
    • Convulsões: Geralmente secundárias à hipóxia ou à encefalopatia.
    • Encefalopatia pertussis: Complicação rara, mas devastadora, que pode levar a dano neurológico permanente ou morte.
    • Hipertensão pulmonar: Uma complicação grave com alta mortalidade.
    • Morte: A maioria dos óbitos por coqueluche ocorre em lactentes não vacinados.
  • Em crianças maiores, adolescentes e adultos:
    • Mecânicas (devido à força da tosse): Fraturas de costela, pneumotórax, hérnias (inguinal, umbilical), hemorragia subconjuntival, incontinência urinária, síncope pós-tussígena.
    • Outras: Perda de peso, distúrbios do sono, otite média aguda.

Prevenção

A prevenção é a estratégia mais importante e se baseia na vacinação e na quimioprofilaxia de contatos.

Vacinação

A vacinação é a pedra angular do controle da coqueluche. O Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil oferece:

  • Esquema Primário Infantil: Vacina Pentavalente (DTPw-Hib-HB), que contém o componente pertussis de células inteiras, administrada aos 2, 4 e 6 meses de idade.
  • Reforços: Vacina DTP (tríplice bacteriana), administrada aos 15 meses e aos 4 anos de idade.
  • Adolescentes e Adultos: Vacina dTpa (tríplice bacteriana acelular do tipo adulto), recomendada como reforço, especialmente para profissionais de saúde, pais e cuidadores de lactentes.

Estratégias Especiais de Prevenção

  • Vacinação da Gestante: Medida de altíssima importância. Recomenda-se a administração de uma dose da vacina dTpa a cada gestação, idealmente entre a 20ª e a 36ª semana. O objetivo é a produção de anticorpos maternos que são transferidos passivamente ao feto pela placenta, conferindo proteção ao recém-nascido nos primeiros meses de vida, antes que ele possa iniciar seu próprio esquema vacinal.
  • Estratégia Cocoon (Casulo): Consiste em vacinar com dTpa todas as pessoas que terão contato próximo e prolongado com um recém-nascido (pais, irmãos, avós, babás, profissionais de saúde). O objetivo é criar uma "barreira" de proteção ao redor do bebê.

Quimioprofilaxia de Contatos

Recomenda-se a administração de um curso completo de antibiótico (geralmente azitromicina) para todos os contatos próximos de um caso confirmado de coqueluche, independentemente do estado vacinal. Isso é crucial para interromper a cadeia de transmissão, especialmente em domicílios com lactentes ou gestantes.

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