Complicações da Via Aérea Artificial (Intubação/Traqueostomia)
Introduction & Indications for Artificial Airway
A via aérea artificial é um procedimento invasivo que estabelece um conduto direto para a traqueia, contornando as vias aéreas superiores. É uma das intervenções mais críticas na medicina de emergência e terapia intensiva. As duas modalidades principais são a intubação endotraqueal (orotraqueal ou nasotraqueal) e a traqueostomia.
- Intubação Endotraqueal (IOT): É o método de escolha para o estabelecimento rápido e de curto prazo de uma via aérea definitiva. Consiste na passagem de um tubo através da boca (orotraqueal) ou nariz (nasotraqueal), passando pelas cordas vocais até a traqueia. É o procedimento padrão em emergências, anestesias e no manejo inicial de pacientes críticos.
- Traqueostomia (TQT): É um procedimento cirúrgico que cria uma abertura na parede anterior da traqueia (estoma), onde uma cânula é inserida. É indicada para pacientes que necessitam de suporte ventilatório prolongado, oferecendo maior conforto, menor necessidade de sedação, facilidade na higiene brônquica e menor resistência das vias aéreas em comparação com a IOT.
As indicações para o estabelecimento de uma via aérea artificial podem ser agrupadas em três categorias principais:
- Falência Respiratória: Incapacidade do sistema respiratório em manter a troca gasosa adequada.
- Hipoxêmica: PaO₂ < 60 mmHg apesar da oferta de O₂ suplementar. Exemplos: Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), pneumonia grave, edema agudo de pulmão.
- Hipercápnica: PaCO₂ > 50 mmHg com acidose (pH < 7,30). Exemplos: exacerbação de DPOC, crise de asma grave, doenças neuromusculares (miastenia gravis, Guillain-Barré), overdose de sedativos.
- Proteção da Via Aérea: Incapacidade do paciente de manter a via aérea pérvia e protegê-la contra aspiração de conteúdo gástrico ou orofaríngeo.
- Rebaixamento do Nível de Consciência: A indicação clássica é uma pontuação na Escala de Coma de Glasgow (GCS) ≤ 8.
- Obstrução Mecânica: Hematoma cervical em expansão, anafilaxia com angioedema, queimaduras de vias aéreas, trauma maxilofacial extenso, tumores.
- Necessidade de Ventilação Mecânica Prolongada: Pacientes que não conseguem ser desmamados do ventilador em um período de 7 a 14 dias são candidatos à conversão de IOT para TQT. A traqueostomia facilita o desmame, reduz o espaço morto, melhora a mobilização de secreções e diminui o risco de lesões laríngeas associadas à IOT prolongada.
Raciocínio Clínico
Por que a Escala de Coma de Glasgow ≤ 8 é um ponto de corte tão importante para a intubação? Pacientes com GCS ≤ 8 perdem os reflexos protetores da via aérea, como o reflexo de tosse e o reflexo de deglutição. Isso os coloca em altíssimo risco de broncoaspiração de saliva, secreções ou conteúdo gástrico, uma complicação que pode levar a pneumonia aspirativa grave e morte. A intubação, neste caso, não é apenas para ventilar, mas primariamente para "selar" e proteger a traqueia.
Pathophysiology of Airway Injury
A presença de um dispositivo artificial na via aérea, embora salvadora, não é isenta de riscos. A lesão pode ocorrer por múltiplos mecanismos que atuam desde o momento da inserção até semanas após a sua remoção.
Mecanismos de Lesão:
- Trauma Mecânico Direto: Ocorre durante o procedimento de intubação. O laringoscópio pode causar lacerações nos lábios, língua e faringe, além de fraturas ou avulsões dentárias. A passagem do tubo endotraqueal pode traumatizar as cordas vocais, causando edema, hematomas, lacerações ou, mais raramente, a luxação das cartilagens aritenoides.
- Necrose por Pressão do Balonete (Cuff): Este é o mecanismo fisiopatológico central para as complicações tardias mais graves, como a estenose traqueal.
- Fisiologia: O cuff é insuflado para vedar a traqueia, prevenindo o vazamento de ar e a broncoaspiração.
- Isquemia: A pressão de perfusão capilar da mucosa traqueal é de aproximadamente 25-35 mmHg (ou 30-50 cmH₂O). Se a pressão exercida pelo cuff na parede da traqueia exceder essa pressão capilar, o fluxo sanguíneo para a mucosa é interrompido.
- Consequências: A isquemia prolongada leva à inflamação, ulceração e necrose da mucosa. Com o tempo, a cicatrização desse tecido necrosado resulta em fibrose e deposição de tecido de granulação, levando à estenose traqueal. Se a necrose se aprofundar e atingir os anéis cartilaginosos, pode ocorrer condrite e enfraquecimento da parede, resultando em traqueomalácia.
- Inflamação e Infecção por Corpo Estranho: O tubo é um corpo estranho que provoca uma reação inflamatória crônica na mucosa. Além disso, ele interfere nos mecanismos de defesa naturais da via aérea:
- Bypass dos Filtros Naturais: O tubo contorna o nariz e a faringe, que aquecem, umidificam e filtram o ar inspirado.
- Prejuízo da Depuração Mucociliar: A presença do tubo impede o "tapete" ciliar de mover as secreções para cima, levando ao seu acúmulo.
- Formação de Biofilme: Bactérias colonizam rapidamente a superfície do tubo, formando um biofilme que serve como um reservatório persistente para infecções, sendo o principal fator de risco para a Pneumonia Associada à Ventilação (PAV).
Armadilhas do ENARE
A pressão do cuff é um tema recorrente. O valor ideal a ser mantido é entre 20 e 30 cmH₂O. Pressões abaixo de 20 cmH₂O aumentam o risco de microaspiração e PAV. Pressões acima de 30 cmH₂O causam isquemia da mucosa e aumentam drasticamente o risco de estenose traqueal e fístulas. A monitorização com um manômetro específico (cuffômetro) é o padrão-ouro e uma medida preventiva essencial.
Early Complications (During/Immediately After)
As complicações precoces estão diretamente relacionadas ao ato da inserção da via aérea artificial ou ocorrem nas primeiras horas após o procedimento ou sua remoção.
Complicações Durante a Inserção:
| Complicação | Descrição | Manejo/Prevenção |
|---|---|---|
| Trauma de Via Aérea | Lesões em lábios, dentes, língua, faringe, epiglote e cordas vocais. Luxação de aritenoide. | Técnica de laringoscopia cuidadosa, bom posicionamento do paciente. |
| Intubação Esofágica | Inserção do tubo no esôfago. É uma emergência catastrófica se não reconhecida, levando a hipóxia e óbito. | Confirmação primária com ausculta (epigástrio e 5 pontos no tórax) e confirmação definitiva com capnografia quantitativa (padrão-ouro). |
| Intubação Seletiva | Progressão do tubo para um dos brônquios principais (geralmente o direito, por ser mais verticalizado), ventilando apenas um pulmão. Causa atelectasia do pulmão não ventilado e risco de barotrauma no pulmão ventilado. | Ausculta pulmonar bilateral simétrica e confirmação por radiografia de tórax (ponta do tubo 2-4 cm acima da carina). |
| Hipotensão e Arritmias | Hipotensão devido aos fármacos indutores (propofol, midazolam). Arritmias por estímulo simpático (taquicardia, hipertensão) ou vagal (bradicardia). | Pré-oxigenação adequada, otimização volêmica pré-procedimento, escolha de agentes indutores hemodinamicamente estáveis (e.g., etomidato, quetamina). |
| Laringoespasmo | Fechamento reflexo e vigoroso das cordas vocais, impedindo a ventilação. | Aprofundamento da sedação/anestesia, ventilação com pressão positiva, e em casos refratários, uso de bloqueador neuromuscular. |
Complicações Pós-Extubação Imediata:
- Estridor Laríngeo: Som inspiratório agudo e de alta frequência causado por edema da laringe e das cordas vocais. É um sinal de obstrução significativa da via aérea superior. O manejo inclui nebulização com adrenalina, uso de corticoides sistêmicos e, se houver falha ou piora, reintubação imediata.
- Broncoaspiração: Ocorre devido à disfunção temporária da deglutição e dos reflexos protetores após a remoção do tubo.
Late Complications (Days to Weeks)
As complicações tardias resultam da presença prolongada do tubo endotraqueal ou da cânula de traqueostomia, sendo frequentemente mais graves e de manejo mais complexo.
Complicações Infecciosas:
- Sinusite: Comum em pacientes com intubação nasotraqueal, devido à obstrução da drenagem dos seios paranasais. Cursa com febre e leucocitose sem outro foco aparente.
- Pneumonia Associada à Ventilação (PAV): Definida como pneumonia que surge após 48 horas do início da ventilação mecânica invasiva. É a infecção hospitalar mais comum em UTIs, causada pela microaspiração de secreções colonizadas da orofaringe ao redor do cuff e pela formação de biofilme no tubo.
Complicações Estruturais Laringotraqueais:
- Ulceração e Granulomas: A irritação crônica pode levar a úlceras na mucosa e à formação de tecido de granulação, especialmente nas cordas vocais posteriores ou no local do estoma da traqueostomia. Podem causar rouquidão ou obstrução da via aérea.
- Paralisia de Corda Vocal: Lesão do nervo laríngeo recorrente por compressão do cuff ou trauma direto, resultando em rouquidão e risco de aspiração.
- Estenose Traqueal: Estreitamento fibrótico da luz traqueal. É uma das complicações mais temidas. Ocorre principalmente em dois locais: no nível do cuff (por isquemia) e no nível do estoma da TQT (por cicatrização anômala). Os pacientes tipicamente se apresentam com dispneia progressiva e estridor semanas a meses após a extubação.
- Traqueomalácia: Amolecimento e enfraquecimento da cartilagem traqueal devido à necrose isquêmica (condrite). Leva a um colapso dinâmico da via aérea, especialmente durante a tosse ou expiração forçada.
- Fístula Traqueoesofágica (FTE): Comunicação anormal entre a traqueia e o esôfago. Geralmente causada pela necrose por pressão combinada do cuff (anteriormente) e de uma sonda nasogástrica (posteriormente). Sinais clássicos incluem tosse durante a alimentação/deglutição, distensão gástrica durante a ventilação e pneumonias de repetição.
- Fístula Traqueo-Inominada: Uma emergência cirúrgica rara, mas frequentemente fatal. Ocorre quando a cânula de traqueostomia (especialmente se posicionada muito baixa) erode a parede anterior da traqueia e atinge a artéria braquiocefálica (inominada). A apresentação clássica é um "sangramento sentinela" (pequeno sangramento pulsátil pelo estoma) que precede uma hemorragia maciça e exsanguinante.
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022)
As complicações esperadas da intubação orotraqueal prolongada incluem estenose traqueal, fístulas (traqueoesofágica, traqueo-inominada) e granulomas. Questões de prova podem tentar confundir o candidato com complicações improváveis. Por exemplo, a lesão do nervo facial (VII par craniano) não é uma complicação diretamente relacionada à intubação orotraqueal, pois sua trajetória anatômica não é vulnerável durante o procedimento. As lesões nervosas mais prováveis são as do nervo laríngeo recorrente (ramo do vago, X par).
Diagnostic Workup of Complications
A investigação é guiada pela suspeita clínica baseada nos sintomas do paciente (e.g., estridor, dispneia, hemoptise, rouquidão).
| Suspeita Clínica | Ferramenta Diagnóstica Primária | Achados |
|---|---|---|
| Estenose Traqueal / Granuloma / Traqueomalácia | Broncoscopia (Flexível ou Rígida) | Visualização direta do estreitamento da luz, tecido de granulação ou colapso dinâmico da parede traqueal. Permite biópsias e, por vezes, tratamento (dilatação, laser). |
| Planejamento Cirúrgico da Estenose | Tomografia Computadorizada (TC) de Pescoço e Tórax | Mapeamento preciso da localização, extensão e gravidade da estenose. Essencial para o planejamento da ressecção e reconstrução traqueal. |
| Paralisia de Corda Vocal | Laringoscopia Direta | Visualização da imobilidade de uma ou ambas as cordas vocais. |
| Fístula Traqueoesofágica | Broncoscopia e/ou Endoscopia Digestiva Alta | Visualização direta do orifício fistuloso. Um estudo contrastado do esôfago (esofagograma) também pode ser útil. |
A broncoscopia é a ferramenta mais versátil, sendo o padrão-ouro para a avaliação da anatomia e dinâmica da via aérea pós-intubação.
Prevention & Management of Complications
A prevenção é a estratégia mais eficaz e se baseia em uma técnica meticulosa e cuidados contínuos.
Estratégias de Prevenção:
- Técnica de Intubação: Realizar uma laringoscopia gentil e usar o tubo de tamanho apropriado (o menor que vede adequadamente a via aérea).
- Monitoramento da Pressão do Cuff: Manter a pressão entre 20-30 cmH₂O, verificando-a regularmente com um manômetro. Esta é, talvez, a medida isolada mais importante para prevenir lesões isquêmicas.
- Higiene Oral: Realizar higiene oral regular com antissépticos (e.g., clorexidina) para reduzir a colonização bacteriana e o risco de PAV.
- Posicionamento: Manter a cabeceira do leito elevada a 30-45 graus para diminuir o risco de refluxo e aspiração.
- Traqueostomia Precoce: Em pacientes com previsão de ventilação mecânica prolongada (> 7-14 dias), a conversão para traqueostomia pode reduzir o tempo de ventilação, a necessidade de sedação e o risco de lesões laríngeas.
Manejo das Complicações Estabelecidas:
- Estenose Traqueal: O tratamento depende da gravidade. Opções incluem dilatação endoscópica com balão, ressecção a laser ou colocação de stent (medidas paliativas). O tratamento definitivo para estenoses complexas é a ressecção do segmento estenótico com anastomose término-terminal.
- Fístula Traqueoesofágica: O tratamento é sempre cirúrgico, com fechamento da fístula e, frequentemente, interposição de um retalho muscular para evitar recidivas.
- Fístula Traqueo-Inominada: Emergência absoluta. O manejo inicial consiste em hiperinsuflar o cuff para tamponar o sangramento. Se não for eficaz, deve-se inserir um dedo pelo estoma e comprimir a artéria inominada contra o esterno. O paciente deve ser levado imediatamente ao centro cirúrgico para reparo vascular.
Weaning and Decannulation
A liberação da via aérea artificial é um processo gradual que envolve a retirada do suporte ventilatório (desmame) e, subsequentemente, a remoção do dispositivo (extubação ou decanulação).
Critérios para Iniciar o Desmame (Teste de Respiração Espontânea - TRE):
Antes de testar a capacidade do paciente de respirar sozinho, ele deve atender a certos pré-requisitos:
- Melhora ou resolução da causa da falência respiratória.
- Estabilidade hemodinâmica (sem necessidade de vasopressores ou em doses muito baixas).
- Nível de consciência adequado (desperto, cooperativo, capaz de proteger a via aérea).
- Troca gasosa satisfatória: PaO₂/FiO₂ > 150-200, com PEEP ≤ 5-8 cmH₂O e FiO₂ ≤ 40-50%.
- Ausência de febre ou distúrbios metabólicos graves.
O Teste de Respiração Espontânea (TRE) é realizado por 30 a 120 minutos, geralmente com o paciente respirando através de um tubo T ou com um baixo nível de pressão de suporte (PSV de 5-7 cmH₂O). O sucesso no TRE é um forte preditor de sucesso na extubação.
Extubação e Decanulação:
- Extubação: É a remoção do tubo endotraqueal após um TRE bem-sucedido. Antes de remover o tubo, é crucial avaliar a patência da via aérea superior, por exemplo, através do teste de vazamento do cuff (cuff leak test). A ausência de vazamento de ar após desinsuflar o cuff sugere edema laríngeo significativo e alto risco de falha da extubação.
- Decanulação: É a remoção da cânula de traqueostomia. É um processo mais lento. O paciente deve estar fora da ventilação mecânica, com tosse eficaz e capaz de manejar suas próprias secreções. A patência da via aérea é confirmada através da oclusão da cânula (capping trial) por períodos progressivamente mais longos. Se o paciente tolerar a oclusão por 24 horas sem desconforto respiratório, a decanulação é geralmente segura.
Raciocínio Clínico
A falha na extubação, definida como a necessidade de reintubação em 48-72 horas, é um evento grave com alta morbimortalidade. As principais causas são obstrução da via aérea superior (edema laríngeo), incapacidade de eliminar secreções (tosse fraca) e falência da musculatura respiratória. A ventilação não invasiva (VNI) pode ser usada em pacientes selecionados para prevenir a reintubação, especialmente naqueles com DPOC ou insuficiência cardíaca.
