Cefaleia (Enxaqueca)
Introdução e Epidemiologia
A enxaqueca, também conhecida como migrânea, é uma desordem neurológica primária, o que significa que não é causada por outra doença ou condição estrutural. É definida por crises recorrentes de cefaleia com características bem definidas: intensidade de moderada a severa, caráter tipicamente unilateral e pulsátil. A enxaqueca é uma das condições médicas mais prevalentes e incapacitantes em todo o mundo, figurando entre as principais causas de anos vividos com incapacidade (YLDs - Years Lived with Disability), segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Sua prevalência é significativamente maior no sexo feminino, com uma proporção de aproximadamente 3 mulheres para cada homem. A condição afeta predominantemente indivíduos durante seus anos mais produtivos, entre 25 e 55 anos, gerando um impacto socioeconômico substancial devido ao absenteísmo e à queda de produtividade (presenteísmo). É crucial notar que a enxaqueca não é uma condição exclusiva de adultos; ela é também comum em crianças e adolescentes, embora sua apresentação clínica possa variar.
Raciocínio Clínico
O termo "cefaleia primária" é fundamental. Ao se deparar com um paciente com cefaleia, o primeiro passo do raciocínio é diferenciar entre cefaleias primárias (enxaqueca, cefaleia tensional, cefaleia em salvas) e secundárias (causadas por tumores, infecções, hemorragias, etc.). A história clínica detalhada e um exame neurológico normal são as ferramentas mais poderosas para diagnosticar uma enxaqueca e descartar causas secundárias mais graves.
Fisiopatologia
A compreensão da fisiopatologia da enxaqueca evoluiu de uma teoria puramente vascular (vasoconstrição seguida de vasodilatação) para um modelo neurovascular complexo, no qual o cérebro é o principal protagonista. Os mecanismos centrais são a hiperexcitabilidade cortical e a ativação do sistema trigeminovascular.
- Depressão Alastrante Cortical (Cortical Spreading Depression - CSD): Este fenômeno é considerado o substrato neurofisiológico da aura migranosa. Trata-se de uma onda de intensa despolarização neuronal e glial que se propaga lentamente pelo córtex cerebral (a uma velocidade de 2-5 mm/min), seguida por um período prolongado de supressão da atividade neuronal. Essa onda de despolarização causa as manifestações neurológicas transitórias da aura (visuais, sensitivas, etc.).
- Ativação do Sistema Trigeminovascular: A CSD, ou outros gatilhos em pacientes sem aura, ativa as terminações nervosas perivasculares do nervo trigêmeo que inervam os vasos sanguíneos das meninges (dura-máter).
- Inflamação Neurogênica Estéril: A ativação trigeminal provoca a liberação de neuropeptídeos vasoativos, sendo o Peptídeo Relacionado ao Gene da Calcitonina (CGRP) o mais importante e estudado. O CGRP é um potente vasodilatador e medeia um processo de inflamação estéril (sem células inflamatórias) nos vasos meníngeos. Essa inflamação e a vasodilatação são responsáveis por sensibilizar as fibras de dor, gerando a cefaleia pulsátil característica da enxaqueca.
- Sensibilização Central: A dor persistente e intensa leva à sensibilização de neurônios de segunda e terceira ordem no tronco cerebral (núcleo caudal do trigêmeo) e no tálamo. Essa sensibilização central explica fenômenos como a alodínia cutânea (percepção de dor a estímulos normalmente não dolorosos, como pentear o cabelo ou usar óculos) e a cronificação da dor.
Armadilhas do ENARE
Questões sobre fisiopatologia podem focar no papel central do CGRP. Lembre-se: o CGRP é o principal mediador da dor na enxaqueca. Seu bloqueio é o alvo das terapias mais modernas (anticorpos monoclonais e "gepantes"). A aura é causada pela Depressão Alastrante Cortical (CSD), e a dor é causada pela ativação do sistema trigeminovascular e inflamação neurogênica.
Apresentação Clínica e Exame Físico
Uma crise de enxaqueca clássica pode ser dividida em até quatro fases, embora nem todos os pacientes experimentem todas elas.
As Quatro Fases da Enxaqueca
- Pródromo: Ocorre em cerca de 60% dos pacientes, horas a até dois dias antes do início da dor. Os sintomas são variados e podem incluir:
- Alterações de humor (irritabilidade, euforia, depressão)
- Bocejos repetitivos
- Fadiga ou hiperatividade
- Rigidez cervical (nucalgia)
- "Fissuras" alimentares (desejo por alimentos específicos, como doces ou salgados)
- Poliúria
- Aura: Ocorre em cerca de 25-30% dos pacientes. Consiste em sintomas neurológicos focais, transitórios, que geralmente precedem a cefaleia em 5 a 60 minutos. A aura é tipicamente visual, mas pode ser sensitiva, motora ou de linguagem. Os sintomas se instalam de forma gradual.
- Aura Visual (mais comum): Escotomas cintilantes (pontos brilhantes), espectros de fortificação (linhas em ziguezague que se expandem), visão em túnel ou perda visual transitória.
- Aura Sensitiva: Parestesias (formigamento ou dormência) que tipicamente começam em uma mão, sobem pelo braço e podem envolver a face e a língua (marcha queiro-oral).
- Aura de Linguagem: Disfasia ou afasia transitória.
- Aura Motora (rara): Fraqueza unilateral (hemiparesia), caracterizando a enxaqueca hemiplégica.
- Cefaleia: Esta é a fase mais incapacitante. As características são cruciais para o diagnóstico:
- Localização: Tipicamente unilateral (hemicraniana), embora possa ser bilateral ou se generalizar.
- Qualidade: Pulsátil ou latejante.
- Intensidade: Moderada a severa, impedindo ou dificultando atividades de rotina.
- Agravamento: A dor piora com atividades físicas rotineiras, como subir escadas ou caminhar.
- Sintomas Associados: Náuseas (muito comuns, >80%), vômitos, fotofobia (sensibilidade à luz) e fonofobia (sensibilidade ao som). Osmophobia (sensibilidade a odores) também pode ocorrer.
- Duração: De 4 a 72 horas em adultos, se não tratada ou tratada sem sucesso.
- Pósdromo: Após a resolução da cefaleia, o paciente pode se sentir "de ressaca", com fadiga, dificuldade de concentração, sensibilidade no couro cabeludo e alterações de humor por até 24-48 horas.
Exame Físico
O exame físico e neurológico em um paciente com enxaqueca é completamente normal no período intercrítico (entre as crises). Durante uma crise, o paciente pode parecer pálido, em sofrimento, preferindo um quarto escuro e silencioso. Pode haver sensibilidade à palpação do couro cabeludo (alodínia). A presença de qualquer déficit neurológico focal persistente (fora do período da aura) é um sinal de alarme ("red flag") e exige investigação para causas secundárias.
Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2022
Cenário Clínico: Uma criança ou adolescente chega ao pronto-socorro com queixa de cefaleia. A mãe relata que, antes da dor começar, o filho se queixou de "ver luzes piscando" ou "linhas tortas na frente dos olhos" e sentiu um formigamento na mão que subiu para o rosto. Após cerca de 20 minutos, esses sintomas desapareceram e iniciou-se uma dor de cabeça forte, latejante, com náuseas e vontade de ficar no escuro. Diagnóstico: Este quadro é altamente sugestivo de Enxaqueca com Aura. É fundamental reconhecer os sintomas visuais (escotomas cintilantes, espectros de fortificação) e sensitivos (parestesias com marcha) como manifestações clássicas da aura, que precedem a cefaleia. A natureza transitória e a resolução completa da aura antes ou durante o início da dor são características essenciais.
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico da enxaqueca é eminentemente clínico, baseado em uma anamnese detalhada e na exclusão de outras causas através de um exame neurológico normal. Os critérios diagnósticos da Classificação Internacional de Cefaleias, 3ª edição (ICHD-3), são o padrão-ouro.
Critérios Diagnósticos (ICHD-3 - Resumido)
| Enxaqueca Sem Aura | Enxaqueca Com Aura |
|---|---|
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A. Pelo menos 5 crises preenchendo os critérios B-D. B. Duração de 4-72 horas (não tratada ou tratada sem sucesso). C. A cefaleia tem pelo menos duas das seguintes características:
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A. Pelo menos 2 crises preenchendo os critérios B e C. B. Um ou mais dos seguintes sintomas de aura totalmente reversíveis: visual, sensitivo, de fala/linguagem, motor, de tronco cerebral, retiniano. C. Pelo menos três das seguintes seis características:
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Quando Investigar com Neuroimagem?
A neuroimagem (Tomografia Computadorizada ou, preferencialmente, Ressonância Magnética de crânio) não é necessária para pacientes com história típica de enxaqueca e exame neurológico normal. Ela deve ser considerada na presença de sinais de alarme ("red flags").
Sinais de Alarme (Red Flags) em Cefaleia - Mnemônico SNOOP10
- Systemic Symptoms: Febre, calafrios, perda de peso, imunossupressão, neoplasia.
- Neurologic Symptoms: Alteração do nível de consciência, papiledema, sinais focais (exceto aura típica), meningismo.
- Onset: Súbito, "em trovoada" (thunderclap headache) - pensar em hemorragia subaracnóidea.
- Older Age: Início de uma nova cefaleia após os 50 anos - pensar em arterite de células gigantes, neoplasia.
- Pattern Change: Mudança significativa na frequência, intensidade ou características de uma cefaleia crônica.
- Positional: Cefaleia que piora ao deitar ou levantar.
- Precipitated by Valsalva: Desencadeada por tosse, espirro ou esforço.
- Papilledema: Edema de papila ao fundo de olho (sinal de hipertensão intracraniana).
- Progressive: Cefaleia que piora progressivamente ao longo de dias ou semanas.
- Pregnancy/Puerperium: Início de nova cefaleia na gestação ou puerpério.
Tratamento e Manejo
O manejo da enxaqueca é multifacetado e se divide em tratamento agudo (abortivo) das crises e tratamento preventivo (profilático), além de medidas não farmacológicas.
Tratamento Agudo (Abortivo)
O objetivo é interromper a crise de forma rápida e eficaz, com mínimos efeitos adversos. A abordagem deve ser estratificada pela intensidade da dor.
- Crises Leves a Moderadas:
- AINEs (Anti-inflamatórios não esteroides): Ibuprofeno (400-800 mg), Naproxeno (500-550 mg), Diclofenaco (50-100 mg). São a primeira linha.
- Analgésicos Simples: Paracetamol (1000 mg), Dipirona (1000 mg). Menos eficazes que os AINEs, mas podem ser usados.
- Crises Moderadas a Severas:
- Triptanos (Agonistas serotoninérgicos 5-HT1B/1D): São a terapia específica para enxaqueca. Exemplos: Sumatriptano (50-100 mg VO; 6 mg SC), Rizatriptano (10 mg VO), Naratriptano (2,5 mg VO). Eles atuam causando vasoconstrição dos vasos meníngeos dilatados e inibindo a liberação de CGRP.
Contraindicações dos Triptanos: Doença arterial coronariana, AVC ou AIT prévios, hipertensão arterial não controlada, enxaqueca hemiplégica ou basilar.
- Novas Classes:
- Gepantes (Antagonistas do receptor de CGRP): Rimegepant, Ubrogepant. Opção para pacientes que não respondem ou têm contraindicação aos triptanos. Vantagem: menor risco cardiovascular.
- Ditanos (Agonistas seletivos 5-HT1F): Lasmiditan. Atua centralmente sem causar vasoconstrição, sendo uma alternativa para pacientes com risco cardiovascular.
- Triptanos (Agonistas serotoninérgicos 5-HT1B/1D): São a terapia específica para enxaqueca. Exemplos: Sumatriptano (50-100 mg VO; 6 mg SC), Rizatriptano (10 mg VO), Naratriptano (2,5 mg VO). Eles atuam causando vasoconstrição dos vasos meníngeos dilatados e inibindo a liberação de CGRP.
- Medicações Adjuvantes:
- Antieméticos: Metoclopramida (10 mg IV/IM/VO) ou Domperidona (10 mg VO). Além de tratar náuseas e vômitos, possuem efeito pró-cinético que melhora a absorção dos analgésicos. A metoclopramida também tem um leve efeito abortivo próprio.
Tratamento Preventivo (Profilático)
Indicado quando as crises são frequentes (geralmente ≥ 4 dias de cefaleia/mês), muito incapacitantes, ou quando o tratamento agudo é ineficaz, contraindicado ou usado em excesso. O objetivo é reduzir a frequência, intensidade e duração das crises.
| Classe de Medicamento | Exemplos e Doses Iniciais | Comentários |
|---|---|---|
| Betabloqueadores | Propranolol (20-40 mg/dia), Metoprolol (50 mg/dia) | Primeira linha. Útil em pacientes com hipertensão ou ansiedade. Evitar em asmáticos. |
| Antidepressivos Tricíclicos | Amitriptilina (10-25 mg/noite) | Primeira linha. Útil em pacientes com insônia ou depressão comórbida. Efeitos colaterais: sonolência, boca seca, ganho de peso. |
| Anticonvulsivantes | Topiramato (25 mg/noite), Ácido Valproico (250-500 mg/dia) | Topiramato pode causar parestesias e perda de peso. Ácido Valproico é teratogênico (contraindicado em mulheres em idade fértil sem contracepção eficaz). |
| Bloqueadores de Canal de Cálcio | Flunarizina (5-10 mg/noite) | Muito usada no Brasil. Pode causar sonolência, ganho de peso e sintomas extrapiramidais com uso prolongado. |
| Anticorpos Monoclonais anti-CGRP | Erenumab, Fremanezumab, Galcanezumab (Injeções SC mensais ou trimestrais) | Terapia alvo, muito eficaz e com poucos efeitos colaterais. Alto custo. Indicada para casos refratários. |
Manejo Não Farmacológico
É a base do tratamento e deve ser recomendado a todos os pacientes. Inclui:
- Identificação e Manejo de Gatilhos: Estresse, privação ou excesso de sono, jejum prolongado, certos alimentos (vinho tinto, queijos envelhecidos, chocolate), alterações hormonais, estímulos luminosos. Manter um diário de cefaleia é útil.
- Higiene do Estilo de Vida: Manter horários regulares de sono e alimentação, hidratação adequada.
- Atividade Física Regular: Exercícios aeróbicos (caminhada, natação) têm efeito profilático comprovado.
- Técnicas de Manejo de Estresse: Terapia cognitivo-comportamental (TCC), biofeedback, mindfulness, yoga.
Complicações e Prognóstico
- Enxaqueca Crônica: É a complicação mais comum. Definida como cefaleia ocorrendo em ≥ 15 dias por mês, por mais de 3 meses, dos quais pelo menos 8 dias têm características de enxaqueca. Frequentemente associada à cefaleia por uso excessivo de medicamentos.
- Cefaleia por Uso Excessivo de Medicamentos (CUEM): Ocorre pelo uso frequente de medicações agudas (ex: >10-15 dias/mês). O próprio analgésico passa a perpetuar a cefaleia, criando um ciclo vicioso. O tratamento envolve a retirada do agente ofensor e a otimização da profilaxia.
- Risco de AVC Isquêmico: Pacientes com enxaqueca com aura têm um risco relativo aproximadamente duas vezes maior de AVC isquêmico. O risco é maior em mulheres jovens, tabagistas e que usam contraceptivos orais combinados.
- Estado Migranoso (Status Migrainosus): Uma crise de enxaqueca debilitante que dura mais de 72 horas.
O prognóstico da enxaqueca é variável. É uma condição crônica com períodos de exacerbação e remissão. A frequência e a intensidade das crises tendem a diminuir com a idade, especialmente em mulheres após a menopausa.
Populações Especiais
População Pediátrica
A apresentação da enxaqueca em crianças pode ser diferente da dos adultos:
- Duração: As crises podem ser mais curtas (às vezes durando apenas 1-2 horas).
- Localização: A dor é mais frequentemente bilateral (frontal ou temporal) do que unilateral.
- Sintomas Associados: Sintomas gastrointestinais (náuseas, vômitos, dor abdominal) e autonômicos (palidez, sudorese) são mais proeminentes.
- Síndromes Periódicas da Infância: São consideradas precursoras da enxaqueca e incluem vômitos cíclicos, enxaqueca abdominal e vertigem paroxística benigna da infância.
Gestação
A enxaqueca, especialmente a sem aura, tende a melhorar durante a gestação, com uma redução significativa das crises no segundo e terceiro trimestres. O manejo requer cuidados especiais:
- Tratamento Agudo: Paracetamol é a primeira escolha. AINEs devem ser evitados no terceiro trimestre (risco de fechamento prematuro do ducto arterioso). Triptanos são considerados relativamente seguros se o benefício superar o risco, mas devem ser usados com cautela.
- Tratamento Preventivo: A maioria dos profiláticos (ácido valproico, topiramato) é contraindicada. Betabloqueadores (metoprolol, propranolol) podem ser considerados em casos selecionados. Medidas não farmacológicas são a base do tratamento.
Enxaqueca Menstrual
É uma forma comum de enxaqueca sem aura, na qual as crises ocorrem em estreita relação temporal com a menstruação (geralmente do dia -2 ao +3 do ciclo). As crises costumam ser mais intensas, longas e refratárias ao tratamento agudo. O manejo pode incluir:
- Mini-profilaxia: Uso de AINEs (ex: Naproxeno 550 mg 2x/dia) ou um triptano de meia-vida longa (ex: Naratriptano) nos dias perimenstruais.
- Manejo Hormonal: Uso de contraceptivos hormonais de forma contínua para suprimir a menstruação ou uso de adesivos de estrogênio no período perimenstrual para evitar a queda hormonal abrupta que serve de gatilho.
