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Carcinoma Espinocelular de Língua

O Carcinoma Espinocelular (CEC), também conhecido como carcinoma de células escamosas, é a neoplasia maligna mais comum da cavidade oral, representando mais de 90% dos casos. A língua, especificamente suas bordas laterais, é o sítio mais frequentemente acometido. O seu diagnóstico e manejo são tópicos de alta relevância para as provas de residência, exigindo do candidato o conhecimento sobre fatores de risco, apresentação clínica, métodos diagnósticos e princípios terapêuticos.

Introdução e Epidemiologia

O CEC de língua é uma doença com impacto significativo na qualidade de vida, afetando funções vitais como fala, deglutição e respiração. A epidemiologia clássica aponta para uma maior incidência em homens, com idade superior a 50 anos, embora um aumento no número de casos em mulheres e pacientes mais jovens venha sendo observado.

Fatores de Risco Principais

  • Tabagismo: É o principal fator de risco isolado. O risco é dose-dependente e tempo-dependente. Inclui todas as formas de tabaco: cigarros, charutos, cachimbos e tabaco sem fumaça (como o fumo de rolo). Os carcinógenos presentes no tabaco, como as nitrosaminas e os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, induzem mutações no DNA das células epiteliais.
  • Etilismo: O consumo pesado e crônico de álcool é outro fator de risco fundamental. O álcool não é um carcinógeno direto, mas atua como um solvente, aumentando a permeabilidade da mucosa oral aos carcinógenos do tabaco. Além disso, seu metabólito, o acetaldeído, tem propriedades mutagênicas.
  • Efeito Sinérgico Tabaco-Álcool: A associação de tabagismo e etilismo aumenta o risco de desenvolver CEC de cavidade oral de forma multiplicativa, não apenas aditiva. Um indivíduo que é tabagista e etilista pesado pode ter um risco até 15 vezes maior do que a população geral.
  • Papilomavírus Humano (HPV): Embora mais fortemente associado ao câncer de orofaringe (base da língua, tonsilas, palato mole), o HPV, especialmente o subtipo de alto risco HPV-16, tem sido identificado como um fator de risco emergente para um subgrupo de cânceres de cavidade oral. Estes tumores tendem a ocorrer em pacientes mais jovens e sem os fatores de risco clássicos.
  • Outros Fatores:
    • Irritação Crônica: Má higiene oral, dentes quebrados ou próteses mal ajustadas que causam trauma crônico na mucosa.
    • Dieta: Baixa ingestão de frutas e vegetais.
    • Imunossupressão: Pacientes transplantados ou com HIV.
    • Condições Pré-malignas: Leucoplasia (lesão branca) e eritroplasia (lesão vermelha) são as lesões precursoras mais comuns. A eritroplasia tem um potencial de malignização muito maior.

Raciocínio Clínico

Diante de um paciente com uma lesão suspeita na língua, a primeira etapa da anamnese deve ser uma investigação detalhada sobre os hábitos de vida. Perguntas diretas sobre a quantidade e a duração do consumo de cigarros e álcool são mandatórias. A presença desses fatores de risco eleva exponencialmente o índice de suspeição para CEC.

Patofisiologia

A carcinogênese do CEC de língua é um processo multifatorial e de múltiplos passos, envolvendo o acúmulo de alterações genéticas e epigenéticas que transformam o epitélio escamoso normal em uma neoplasia invasiva. Existem duas vias patogenéticas principais e distintas.

Via Associada ao Tabaco e Álcool

Esta é a via clássica. A exposição crônica aos mutagênicos presentes no fumo e ao acetaldeído leva a danos no DNA. O evento genético mais comum e precoce nesta via é a mutação do gene supressor de tumor TP53. A perda de função da proteína p53, conhecida como "guardiã do genoma", compromete a capacidade da célula de reparar o DNA danificado ou de iniciar a apoptose (morte celular programada). Com a continuação da exposição, outras alterações genéticas se acumulam, como a inativação de outros genes supressores de tumor (ex: p16INK4a) e a ativação de oncogenes (ex: ciclina D1), resultando em proliferação celular descontrolada, instabilidade genômica e, finalmente, invasão e metástase.

Via Associada ao HPV

Esta via é mais característica dos tumores de orofaringe, mas pode ocorrer na língua. A infecção persistente por um subtipo de alto risco do HPV (principalmente HPV-16) leva à integração do DNA viral no genoma da célula hospedeira. O vírus então expressa duas oncoproteínas-chave:

  • Oncoproteína E6: Liga-se à proteína p53 e a direciona para a degradação proteossomal. O resultado é o mesmo da mutação do TP53: a célula perde sua capacidade de parar o ciclo celular ou induzir apoptose em resposta a danos.
  • Oncoproteína E7: Liga-se e inativa a proteína do retinoblastoma (pRb). A pRb normalmente funciona como um "freio" no ciclo celular, impedindo a progressão da fase G1 para a S. Sua inativação pela E7 libera esse freio, levando à proliferação celular contínua.

É crucial notar que os tumores HPV-positivos geralmente mantêm o gene TP53 do tipo selvagem (não mutado) e têm um perfil genômico mais estável, o que contribui para sua maior sensibilidade à radioterapia e quimioterapia e, consequentemente, um melhor prognóstico.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A apresentação clínica do CEC de língua pode ser variada, mas existem sinais e sintomas clássicos que devem levantar alta suspeita.

Sintomas e Sinais

  • Lesão Persistente: A queixa mais comum é uma úlcera que não cicatriza há mais de 2-3 semanas. A lesão é tipicamente endurecida (indurada) à palpação, com bordas elevadas e irregulares, e pode ter um fundo necrótico.
  • Massa Exofítica: A lesão pode se apresentar como uma massa vegetante, friável, que sangra facilmente ao toque.
  • Localização: O local mais comum é a borda lateral do terço médio da língua oral (os dois terços anteriores e móveis da língua). Lesões no ventre da língua também são comuns. Lesões na base da língua (terço posterior) são anatomicamente parte da orofaringe e tendem a ser diagnosticadas mais tardiamente.
  • Dor (Odinofagia): Inicialmente, a lesão pode ser indolor. A dor é um sintoma mais tardio, podendo irradiar para o ouvido do mesmo lado (otalgia referida).
  • Outros Sintomas de Alarme: Disfagia (dificuldade para engolir), disartria (dificuldade na articulação das palavras), sangramento, halitose e trismo (dificuldade de abrir a boca, indicando invasão da musculatura mastigatória).
  • Linfadenopatia Cervical: A presença de um ou mais linfonodos cervicais aumentados, endurecidos e fixos é um sinal de doença regional avançada e um fator prognóstico de extrema importância. Os níveis mais comumente acometidos são o I, II e III.

Armadilhas do ENARE

A otalgia referida é um sintoma clássico e frequentemente cobrado. Um paciente com fatores de risco para câncer de cabeça e pescoço que se queixa de dor de ouvido, mas tem um exame otológico normal, deve ser submetido a um exame completo da cavidade oral, orofaringe, hipofaringe e laringe. A dor é referida através de ramos do nervo trigêmeo (nervo lingual) e glossofaríngeo.

Exame Físico

O exame físico deve ser meticuloso e sistemático.

  1. Inspeção: Com boa iluminação e o uso de uma espátula, inspecionar toda a cavidade oral: lábios, mucosa jugal, assoalho da boca, gengivas, palato duro e mole, e todas as superfícies da língua (dorso, ventre e bordas laterais).
  2. Palpação: A palpação é a parte mais importante do exame. Utilizando uma luva, deve-se realizar a palpação bimanual da lesão e da língua. Com o dedo indicador de uma mão dentro da boca sobre a lesão e os dedos da outra mão externamente sob o assoalho da boca, é possível avaliar a característica principal da malignidade: a induração e a profundidade da invasão.
  3. Avaliação Cervical: Palpar sistematicamente todas as cadeias linfonodais do pescoço, anotando a localização, tamanho, consistência (pétrea, endurecida, elástica), mobilidade e presença de coalescência dos linfonodos.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024, Q22)

É preciso reconhecer os fatores de risco (tabagismo, etilismo) e as características clínicas (úlcera irregular, endurecida, não cicatrizada) do carcinoma espinocelular de língua, que levantam a suspeita diagnóstica.

Avaliação Diagnóstica

Uma vez que a suspeita clínica é estabelecida, a confirmação diagnóstica e o estadiamento são os próximos passos cruciais para definir o tratamento e o prognóstico.

Biópsia da Lesão

A biópsia é o padrão-ouro e obrigatória para o diagnóstico histopatológico.

  • Técnica: A biópsia incisional é o procedimento de escolha. Um pequeno fragmento em cunha é removido da borda da lesão, incluindo uma porção de tecido normal adjacente e, fundamentalmente, tecido mais profundo para avaliar a invasão estromal. A biópsia excisional (remoção de toda a lesão) não é recomendada no momento do diagnóstico, pois pode comprometer as margens cirúrgicas do tratamento definitivo. A biópsia por "punch" também é uma alternativa viável.
  • Análise: O material é enviado para exame anatomopatológico, que confirmará o diagnóstico de CEC, seu grau de diferenciação (bem, moderadamente ou pouco diferenciado) e pode avaliar a presença de invasão perineural ou angiolinfática.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024, Q22)

A biópsia é o passo inicial e fundamental para o diagnóstico e estadiamento do carcinoma espinocelular de língua.

Estadiamento (TNM)

Após a confirmação histológica, o estadiamento é realizado para determinar a extensão da doença. Utiliza-se o sistema TNM da AJCC (American Joint Committee on Cancer).

  • T (Tumor Primário): Avalia o tamanho e a extensão do tumor. A profundidade de invasão (PDI) é um critério crítico no estadiamento T do CEC oral, pois se correlaciona fortemente com o risco de metástase linfonodal.
  • N (Linfonodos Regionais - Nodes): Avalia a presença, tamanho, número e localização de metástases nos linfonodos cervicais.
  • M (Metástase a Distância): Avalia a presença de metástases em outros órgãos, sendo os pulmões o sítio mais comum.

Os exames de imagem são essenciais para o estadiamento clínico:

  • Tomografia Computadorizada (TC) com contraste do pescoço e face: Excelente para avaliar a extensão do tumor primário, a invasão de estruturas ósseas (mandíbula) e para detectar linfonodos metastáticos cervicais, mesmo os não palpáveis.
  • Ressonância Magnética (RM): Superior à TC para delinear a extensão em partes moles, como a infiltração da musculatura intrínseca da língua, base da língua e invasão perineural.
  • TC de Tórax ou PET-CT (Tomografia por Emissão de Pósitrons): Utilizados para o estadiamento a distância, principalmente em doenças localmente avançadas (estádios III e IV) ou na presença de múltiplos linfonodos cervicais positivos.

Tratamento e Manejo

O tratamento do CEC de língua é complexo e deve ser definido por uma equipe multidisciplinar, incluindo cirurgião de cabeça e pescoço, radio-oncologista, oncologista clínico, patologista, fonoaudiólogo e nutricionista.

Doença em Estágio Inicial (I e II)

O tratamento de escolha é a cirurgia com intenção curativa.

  • Ressecção do Tumor Primário: Realiza-se uma glossectomia parcial, com o objetivo de obter margens cirúrgicas livres de neoplasia (idealmente > 5 mm).
  • Abordagem do Pescoço (N0 clínico): A língua possui uma rica drenagem linfática, e o risco de metástases ocultas (não detectáveis clinicamente ou por imagem) é significativo, especialmente com profundidade de invasão > 4 mm. Portanto, o esvaziamento cervical seletivo eletivo (geralmente dos níveis I a III) é frequentemente realizado em conjunto com a ressecção do tumor primário para estadiar e tratar o pescoço.

Doença em Estágio Avançado (III e IV)

O tratamento requer uma abordagem multimodal.

  • Cirurgia seguida de Radioterapia (RT) ou Quimiorradioterapia (QRT) Adjuvante: A cirurgia é mais extensa (glossectomias maiores, ressecções mandibulares) e sempre acompanhada de esvaziamento cervical radical ou seletivo. A terapia adjuvante é indicada na presença de fatores de mau prognóstico, como margens comprometidas, múltiplos linfonodos positivos ou extensão extracapsular do linfonodo.
  • Quimiorradioterapia Primária: Em casos de tumores irressecáveis ou quando a cirurgia resultaria em morbidade funcional inaceitável, a QRT pode ser usada como tratamento primário. O agente quimioterápico mais utilizado é a cisplatina.

Complicações e Prognóstico

O tratamento do CEC de língua, embora potencialmente curativo, está associado a uma morbidade significativa.

Complicações do Tratamento

  • Cirurgia: Alterações na fala (disartria), na deglutição (disfagia) com risco de aspiração, e deformidades estéticas.
  • Radioterapia: Mucosite (inflamação dolorosa da mucosa), xerostomia (boca seca por dano às glândulas salivares), disgeusia (alteração do paladar) e, a longo prazo, o risco de osteorradionecrose da mandíbula.

Prognóstico

O prognóstico é diretamente relacionado ao estágio da doença no momento do diagnóstico.

  • Fator Prognóstico Mais Importante: A presença de metástase em linfonodos cervicais (N+) é o fator isolado de pior prognóstico, reduzindo a sobrevida em aproximadamente 50%.
  • Sobrevida em 5 anos:
    • Estágio I: > 80%
    • Estágio II: 60-70%
    • Estágio III: 40-50%
    • Estágio IV: < 30%
  • Recorrência: O risco de recorrência local, regional ou a distância é significativo, exigindo um acompanhamento oncológico rigoroso nos primeiros 5 anos após o tratamento.

Populações Especiais

Tumores HPV-Positivos

Como mencionado, estes tumores são mais comuns na orofaringe (base da língua) e têm características distintas. Ocorrem em pacientes mais jovens, muitas vezes sem os fatores de risco clássicos. Biologicamente, são mais sensíveis à radioterapia e quimioterapia, conferindo um prognóstico significativamente melhor em comparação com os tumores HPV-negativos de mesmo estágio. Esta distinção é fundamental e a pesquisa de p16 (um marcador substituto para a infecção por HPV) é rotina na avaliação de tumores de orofaringe.

Pacientes Idosos ou com Comorbidades

O manejo em pacientes com estado de performance baixo ou com múltiplas comorbidades é um desafio. Tratamentos agressivos como grandes cirurgias ou QRT podem não ser tolerados. Nesses casos, a decisão terapêutica é individualizada, podendo-se optar por tratamentos menos invasivos, como radioterapia exclusiva ou cuidados paliativos, com foco no controle dos sintomas e na qualidade de vida.

Reabilitação Pós-Tratamento

A reabilitação é uma parte integral do cuidado. A equipe multidisciplinar é essencial.

  • Fonoaudiologia: A terapia de fala e deglutição é crucial para maximizar a função e minimizar o risco de aspiração. Deve ser iniciada precocemente.
  • Nutrição: Muitos pacientes necessitam de suporte nutricional, incluindo a passagem de sonda nasoenteral ou gastrostomia (GTT) para garantir a ingesta calórica adequada durante e após o tratamento.
  • Fisioterapia: Ajuda a manejar complicações do esvaziamento cervical, como dor e limitação do movimento do ombro.
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