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Asma

A asma é uma das doenças respiratórias crônicas mais comuns em todo o mundo e um tema de alta prevalência nas provas de residência, incluindo o ENARE. Seu manejo adequado, baseado em diretrizes internacionais como a GINA (Global Initiative for Asthma), é fundamental para a prática médica. Este capítulo abordará de forma aprofundada a definição, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento da asma, com foco nos conceitos essenciais para o concurso.

Introdução & Epidemiologia

A asma é definida como uma doença heterogênea, geralmente caracterizada por inflamação crônica das vias aéreas. É definida pela história de sintomas respiratórios como sibilos, dispneia, opressão torácica e tosse, que variam ao longo do tempo e em intensidade, juntamente com uma limitação variável do fluxo aéreo expiratório.

Esta definição moderna, proposta pela GINA, destaca três características centrais:

  1. Inflamação Crônica: Este é o pilar fisiopatológico da doença. A inflamação está presente mesmo quando o paciente está assintomático e é a principal responsável pela hiper-responsividade brônquica.
  2. Sintomas Respiratórios Variáveis: A flutuação dos sintomas é uma marca registrada da asma. Um paciente pode estar completamente bem em um dia e ter uma crise grave no outro. Os sintomas frequentemente pioram à noite ou nas primeiras horas da manhã.
  3. Limitação Variável do Fluxo Aéreo: A obstrução brônquica, que causa os sintomas, não é fixa. Ela pode reverter espontaneamente ou com o uso de medicamentos broncodilatadores.

A prevalência da asma é alta globalmente, afetando cerca de 300 milhões de pessoas. No Brasil, estima-se que aproximadamente 20 milhões de pessoas tenham asma, representando um problema significativo de saúde pública, com altos custos associados a atendimentos de emergência, hospitalizações e absenteísmo escolar e no trabalho.

Raciocínio Clínico

A palavra-chave na definição de asma é "variabilidade". Tanto os sintomas quanto a obstrução do fluxo aéreo variam com o tempo. Se um paciente relata dispneia constante e progressiva, sem períodos de melhora, outros diagnósticos, como DPOC ou fibrose pulmonar, devem ser considerados com mais força. A história de "dias bons e dias ruins" é altamente sugestiva de asma.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da asma é complexa e envolve uma interação entre predisposição genética e fatores ambientais. Os três componentes fundamentais são a inflamação das vias aéreas, a obstrução intermitente do fluxo aéreo e a hiper-responsividade brônquica.

Inflamação das Vias Aéreas

A inflamação na asma é predominantemente do tipo 2, mediada por linfócitos T-helper 2 (Th2). As principais células e mediadores envolvidos são:

  • Eosinófilos: São as células inflamatórias mais características da asma alérgica. São recrutados para as vias aéreas pela interleucina-5 (IL-5) e liberam proteínas que causam dano epitelial e promovem a hiper-responsividade brônquica.
  • Mastócitos: Quando ativados por alérgenos (via IgE), liberam mediadores pré-formados como histamina, leucotrienos e prostaglandinas, que causam broncoconstrição aguda, aumento da permeabilidade vascular (edema) e produção de muco.
  • Linfócitos T (Th2): Orquestram a resposta inflamatória através da produção de citocinas-chave:
    • IL-4: Estimula a produção de IgE pelos linfócitos B.
    • IL-5: Promove o recrutamento e a ativação de eosinófilos.
    • IL-13: Contribui para a produção de muco e a fibrose subepitelial.

Obstrução Intermitente do Fluxo Aéreo

A limitação do fluxo aéreo na asma é causada por uma combinação de três fatores:

  1. Broncoconstrição: Contração da musculatura lisa brônquica, que é o principal mecanismo da crise aguda e o alvo dos medicamentos de alívio (broncodilatadores).
  2. Edema da Parede Brônquica: O extravasamento de plasma devido ao aumento da permeabilidade vascular contribui para o estreitamento da via aérea.
  3. Tampões de Muco (Mucus Plugging): Há hiperplasia das células caliciformes e hipersecreção de muco espesso, que pode obstruir parcial ou totalmente o lúmen das vias aéreas de pequeno e médio calibre.

Hiper-responsividade Brônquica (HRB)

A HRB é uma característica fisiológica da asma, definida como uma resposta broncoconstritora exagerada a uma ampla variedade de estímulos, que seriam inócuos para indivíduos saudáveis. Exemplos de estímulos incluem alérgenos, ar frio e seco, exercício físico, irritantes químicos e infecções virais. A inflamação crônica é o principal fator que leva à HRB.

Remodelamento das Vias Aéreas

Em pacientes com asma crônica e mal controlada, a inflamação persistente pode levar a alterações estruturais permanentes ou semipermanentes, conhecidas como remodelamento. Essas alterações incluem:

  • Fibrose subepitelial (espessamento da membrana basal reticular).
  • Hipertrofia e hiperplasia da musculatura lisa brônquica.
  • Hiperplasia das glândulas submucosas e células caliciformes.
  • Aumento da vascularização (angiogênese).

O remodelamento pode resultar em uma obstrução do fluxo aéreo que não é totalmente reversível, levando a uma perda acelerada da função pulmonar ao longo do tempo.

Apresentação Clínica & Exame Físico

O diagnóstico da asma é primariamente clínico, baseado em uma história detalhada e consistente. Os sintomas clássicos formam uma tríade: sibilos, dispneia e tosse.

Sintomas

  • Padrão dos Sintomas: Os sintomas são tipicamente episódicos. O paciente pode ter longos períodos assintomáticos entre as crises.
  • Padrão Diurno: É muito característica a piora dos sintomas à noite ou no início da manhã. Isso se deve a variações circadianas nos níveis de cortisol (menores à noite) e no tônus vagal (maior à noite), que favorecem a broncoconstrição.
  • Gatilhos (Triggers): A identificação de fatores desencadeantes é fundamental. Os mais comuns são:
    • Alérgenos: Ácaros da poeira doméstica, pelos de animais, pólens, fungos.
    • Infecções: Infecções virais do trato respiratório superior são um gatilho muito comum, especialmente em crianças.
    • Exercício físico: Particularmente em ambiente frio e seco.
    • Irritantes: Fumaça de cigarro (ativa e passiva), poluição do ar, odores fortes.
    • Mudanças climáticas: Exposição ao ar frio.
    • Medicamentos: Aspirina e outros AINEs (em pacientes com Doença Respiratória Exacerbada por Aspirina - DREA), beta-bloqueadores.
  • Tosse Crônica: Em alguns pacientes, a tosse pode ser o único sintoma, uma condição conhecida como "asma variante com tosse".

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024)

O diagnóstico clínico de asma pode ser feito com base em um quadro de tosse seca, chiado no peito e dispneia aos esforços com piora noturna. A presença dessa combinação de sintomas, especialmente com a variabilidade e o padrão noturno, tem alta especificidade para o diagnóstico de asma, mesmo antes da confirmação espirométrica.

Exame Físico

O exame físico no paciente com asma pode variar drasticamente dependendo do estado de controle da doença.

  • Entre as crises: O exame físico pulmonar pode ser completamente normal.
  • Durante uma exacerbação:
    • Ausculta Pulmonar: O achado mais característico são os sibilos expiratórios difusos. Em crises graves, os sibilos podem ser inspiratórios e expiratórios ou, em casos de obstrução gravíssima, podem estar ausentes ("tórax silencioso"), um sinal de péssimo prognóstico.
    • Fase Expiratória Prolongada: A expiração se torna mais longa que a inspiração (relação I:E > 1:2).
    • Sinais de Esforço Respiratório: Taquipneia, uso de musculatura acessória (tiragem intercostal, supraclavicular, batimento de asa de nariz), e respiração com lábios semicerrados.
    • Outros Sinais: Taquicardia, pulso paradoxal (queda da pressão arterial sistólica > 10 mmHg durante a inspiração) em casos graves.

Investigação Diagnóstica

Embora a suspeita seja clínica, o diagnóstico de asma deve, sempre que possível, ser confirmado por provas de função pulmonar que demonstrem a limitação variável do fluxo aéreo.

Espirometria com Prova Broncodilatadora

É o exame padrão-ouro para o diagnóstico de asma em pacientes com 5 anos de idade ou mais.

  • Procedimento: O paciente realiza uma espirometria basal. Em seguida, inala um broncodilatador de curta ação (SABA), como 400 mcg de salbutamol. Após 15-20 minutos, a espirometria é repetida.
  • Diagnóstico de Obstrução: A presença de um distúrbio ventilatório obstrutivo é definida por uma relação VEF1/CVF (Volume Expiratório Forçado no 1º segundo / Capacidade Vital Forçada) abaixo do limite inferior da normalidade (ou, de forma simplificada, < 0,75-0,80 em adultos e < 0,90 em crianças).
  • Critério de Reversibilidade (Positividade da Prova): Uma resposta broncodilatadora significativa, que confirma a reversibilidade da obstrução, é definida por um aumento no VEF1 ≥ 12% E ≥ 200 mL em relação ao valor basal. Ambos os critérios (percentual e absoluto) devem ser preenchidos.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode apresentar um resultado de espirometria com um aumento de 15% no VEF1, mas um aumento em volume de apenas 150 mL. Muitos candidatos marcariam como prova positiva baseando-se apenas na porcentagem. Lembre-se: ambos os critérios, percentual (≥12%) e absoluto (≥200 mL), são necessários para confirmar a reversibilidade significativa em adultos.

Monitoramento do Pico de Fluxo Expiratório (PFE ou Peak Expiratory Flow - PEF)

O PFE é medido com um aparelho portátil e de baixo custo. Embora não seja ideal para o diagnóstico inicial, é uma ferramenta útil para:

  • Monitoramento Domiciliar: Pacientes podem registrar seus valores de PFE pela manhã e à noite para documentar a variabilidade. Uma variabilidade diurna de PFE > 10% em adultos é sugestiva de asma.
  • Manejo de Crises: O PFE ajuda a objetivar a gravidade de uma crise e a guiar o plano de ação do paciente.

Testes de Broncoprovocação

Estes testes são indicados quando a suspeita clínica de asma é alta, mas a espirometria com prova broncodilatadora é normal ou inconclusiva. O objetivo é induzir a broncoconstrição de forma controlada.

  • Método: O paciente inala doses crescentes de um agente broncoconstritor (ex: metacolina). A função pulmonar (VEF1) é medida após cada dose.
  • Resultado Positivo: O teste é considerado positivo se houver uma queda no VEF1 ≥ 20% em relação ao basal, com uma baixa concentração do agente inalado. Um teste negativo tem alto valor preditivo negativo, praticamente excluindo o diagnóstico de asma.

Tratamento e Manejo

O objetivo do tratamento da asma não é apenas aliviar os sintomas, mas sim alcançar e manter o controle da doença, prevenindo exacerbações e a perda de função pulmonar. O manejo é baseado em um ciclo contínuo de avaliar, ajustar o tratamento e revisar a resposta.

A abordagem farmacológica segue um modelo de tratamento escalonado (stepwise), onde a intensidade da terapia é ajustada de acordo com o nível de controle da doença.

Medicamentos Farmacológicos

Os medicamentos para asma são divididos em duas categorias principais:

  1. Medicamentos de Alívio (Relievers): Usados para alívio rápido dos sintomas agudos. A GINA atualmente recomenda o uso de uma combinação de corticoide inalatório (ICS) com formoterol (um LABA de início de ação rápido) como o medicamento de alívio preferencial.
    • ICS-Formoterol: Budesonida-formoterol ou Beclometasona-formoterol.
    • SABA (Beta-2 Agonistas de Curta Ação): Salbutamol, Fenoterol. O uso isolado de SABA para alívio não é mais recomendado pela GINA, pois seu uso frequente está associado a maior risco de exacerbações e morte, por não tratar a inflamação subjacente.
  2. Medicamentos de Controle (Controllers): Usados diariamente, a longo prazo, para controlar a inflamação crônica.
    • Corticoides Inalatórios (ICS): São a pedra angular do tratamento de controle. Exemplos: Budesonida, Fluticasona, Beclometasona. Efeitos colaterais locais incluem candidíase oral (monilíase) e disfonia, que podem ser minimizados com o uso de espaçadores e bochechos com água após o uso.
    • Beta-2 Agonistas de Longa Ação (LABA): Salmeterol, Formoterol. Sempre usados em combinação com um ICS, nunca como monoterapia.
    • Antagonistas de Receptores de Leucotrienos (LTRA): Montelucaste. Opção de controle, geralmente menos eficaz que os ICS, mas útil em fenótipos específicos (ex: asma associada à rinite alérgica).
    • Imunobiológicos: Para asma grave tipo 2 não controlada. Exemplos: Omalizumabe (anti-IgE), Mepolizumabe (anti-IL5), Benralizumabe (anti-receptor de IL5).

Abordagem Escalonada (GINA - Resumido)

A GINA propõe duas trilhas de tratamento, mas a Trilha 1 (preferencial) utiliza a combinação ICS-formoterol tanto para controle quanto para alívio.

  • Passo 1-2 (Asma Leve): Pacientes com sintomas infrequentes. Tratamento com ICS-formoterol em baixa dose, conforme a necessidade (para alívio dos sintomas).
  • Passo 3 (Asma Leve-Moderada): Sintomas na maioria dos dias ou despertar noturno ≥1 vez/semana. Tratamento de manutenção com ICS-formoterol em baixa dose (diariamente) + ICS-formoterol para alívio.
  • Passo 4 (Asma Moderada-Grave): Sintomas diários, despertar noturno e baixa função pulmonar. Tratamento de manutenção com ICS-formoterol em dose média + ICS-formoterol para alívio.
  • Passo 5 (Asma Grave): Pacientes não controlados no Passo 4. Manutenção com ICS-formoterol em dose alta, adicionar um anticolinérgico de longa ação (LAMA, ex: Tiotrópio) e encaminhar para avaliação de fenótipo e possível terapia com imunobiológicos.

Complicações e Prognóstico

Complicações Agudas

  • Exacerbação Grave: Crise de asma que requer intervenção médica urgente. Sinais de gravidade incluem: dispneia em repouso, incapacidade de completar frases, PFE < 50% do previsto, taquipneia (>30 irpm), taquicardia (>120 bpm).
  • Estado de Mal Asmático (Status Asthmaticus): Exacerbação grave e refratária ao tratamento inicial com broncodilatadores. É uma emergência médica com risco de vida.
  • Sinais de Risco Iminente de Morte: Confusão mental, sonolência, exaustão, cianose, bradicardia e tórax silencioso (ausência de sibilos devido ao fluxo aéreo mínimo).

Complicações a Longo Prazo

  • Remodelamento Brônquico: Como já descrito, leva a uma obstrução fixa do fluxo aéreo.
  • Declínio da Função Pulmonar: Perda acelerada do VEF1 ao longo dos anos se a doença não for bem controlada.

Prognóstico

Com diagnóstico precoce, tratamento adequado e boa adesão, a maioria dos pacientes com asma pode levar uma vida normal e ativa. O prognóstico é excelente. Fatores de mau prognóstico incluem tabagismo, baixa adesão ao tratamento, exacerbações frequentes e início da doença com função pulmonar já reduzida.

Populações Especiais

Asma na Pediatria

O diagnóstico em crianças < 5 anos é desafiador e majoritariamente clínico, pois a espirometria não é factível. As infecções virais são o principal gatilho de crises. O tratamento também é escalonado, com ICS em baixa dose sendo a terapia de controle preferencial. O uso de espaçadores com os inaladores dosimetrados (bombinhas) é essencial para garantir a entrega adequada da medicação.

Asma na Gestação

Aplica-se a "regra dos terços": um terço das gestantes melhora, um terço piora e um terço permanece estável. O mais importante é manter o controle da asma. A asma mal controlada oferece mais risco ao feto (hipóxia, baixo peso ao nascer, prematuridade) do que os medicamentos. A maioria das medicações para asma, incluindo SABA, ICS (Budesonida é a mais estudada) e LABA, é considerada segura na gravidez.

Broncoconstrição Induzida pelo Exercício (BIE)

Ocorre durante ou após a atividade física. Pode ser a única manifestação da asma. O tratamento envolve o uso de SABA ou ICS-formoterol 15 minutos antes do exercício, além de um bom aquecimento. Se os sintomas forem frequentes, deve-se iniciar ou otimizar a terapia de controle diária.

Asma Ocupacional

É causada pela exposição a agentes sensibilizantes no ambiente de trabalho (ex: farinha de trigo em padeiros, isocianatos em pintores). A história é a chave: os sintomas melhoram nos fins de semana e feriados e pioram com o retorno ao trabalho. O tratamento ideal é o afastamento completo da exposição.

Asma no Idoso e Sobreposição Asma-DPOC (ACO)

O diagnóstico em idosos pode ser confundido com DPOC ou insuficiência cardíaca. A história de sintomas na infância e a presença de atopia favorecem asma, enquanto uma história de tabagismo pesado favorece DPOC. A Sobreposição Asma-DPOC (ACO) é uma entidade reconhecida em pacientes que apresentam características de ambas as doenças (ex: tabagista com história de atopia e grande reversibilidade na espirometria). Esses pacientes geralmente têm pior prognóstico e se beneficiam do tratamento com a combinação ICS-LABA.

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