Arterite de Células Gigantes (Temporal)
A Arterite de Células Gigantes (ACG), também conhecida como Arterite Temporal, é a vasculite sistêmica mais comum em adultos com mais de 50 anos. Trata-se de uma condição inflamatória crônica que afeta predominantemente artérias de grande e médio calibre, com uma notável predileção pelos ramos cranianos que se originam do arco aórtico, como a artéria temporal superficial. Sua importância para a prática médica e para as provas de residência reside no seu potencial de causar complicações isquêmicas graves e irreversíveis, notadamente a cegueira.
Introdução & Epidemiologia
A ACG é definida como uma vasculite granulomatosa que afeta artérias de grande e médio calibre. Embora possa envolver a aorta e seus ramos principais (levando a uma sobreposição com a Arterite de Takayasu, diferenciada pela idade do paciente), sua manifestação clássica envolve os ramos da artéria carótida externa, especialmente a artéria temporal.
- Faixa Etária: É uma doença quase exclusiva de indivíduos com mais de 50 anos, com um pico de incidência entre 70 e 80 anos. A idade é um fator de risco tão marcante que o diagnóstico em pacientes com menos de 50 anos é considerado excepcional.
- Gênero: Há uma predominância feminina, com uma razão mulher:homem de aproximadamente 2-3:1.
- Etnia e Geografia: A incidência é significativamente maior em populações do norte da Europa, especialmente na Escandinávia, e em seus descendentes. É menos comum em populações asiáticas e africanas.
- Associação com Polimialgia Reumática (PMR): Existe uma associação extremamente forte entre ACG e PMR. Cerca de 40-60% dos pacientes com ACG têm sintomas de PMR, e aproximadamente 15-20% dos pacientes com PMR desenvolvem ACG. Ambas as condições podem ser vistas como diferentes espectros da mesma doença.
Raciocínio Clínico
Diante de um paciente idoso (> 50 anos) com cefaleia de início recente e elevação de provas de atividade inflamatória (VHS e/ou PCR), o diagnóstico de Arterite de Células Gigantes deve estar no topo da lista de diferenciais. A presença concomitante de dor e rigidez matinal em ombros e quadris (sintomas de PMR) reforça ainda mais essa suspeita.
Fisiopatologia
A fisiopatologia da ACG é complexa e mediada pelo sistema imune, especificamente por uma resposta imune celular desregulada. O processo inflamatório é desencadeado por um antígeno ainda não totalmente elucidado, que ativa as células dendríticas na camada adventícia da parede arterial.
- Ativação Imune: As células dendríticas ativadas recrutam e ativam linfócitos T CD4+. Essas células se diferenciam predominantemente em subpopulações Th1 e Th17.
- Produção de Citocinas: As células Th1 produzem Interferon-gama (IFN-γ), que ativa macrófagos na parede do vaso. As células Th17 produzem Interleucina-17 (IL-17), que recruta neutrófilos. A Interleucina-6 (IL-6) é uma citocina central, responsável tanto pela diferenciação das células T quanto pela produção de reagentes de fase aguda no fígado (como a Proteína C Reativa), explicando os sintomas constitucionais e as alterações laboratoriais.
- Formação do Granuloma: Os macrófagos ativados se fundem para formar as características células gigantes multinucleadas, que, juntamente com os linfócitos, formam granulomas na parede do vaso. Este processo inflamatório é tipicamente uma panarterite, envolvendo todas as três camadas da parede arterial (íntima, média e adventícia).
- Consequências Vasculares: A inflamação leva à proliferação de miofibroblastos na camada íntima (hiperplasia intimal) e à degradação da lâmina elástica. O resultado combinado é o espessamento da parede do vaso, a estenose progressiva do lúmen e, eventualmente, a oclusão vascular, causando isquemia nos tecidos irrigados pela artéria afetada.
Apresentação Clínica & Exame Físico
O quadro clínico da ACG é variado, mas geralmente se manifesta com uma combinação de sintomas cranianos, sistêmicos e, por vezes, de grandes vasos.
Sintomas Clássicos (Cranianos)
- Cefaleia: É o sintoma mais comum (~70-90% dos casos). Caracteristicamente, é uma cefaleia nova ou com um padrão diferente das cefaleias prévias do paciente. Geralmente é localizada na região temporal, mas pode ser generalizada. A dor pode ser intensa, latejante ou em queimação.
- Claudicação da Mandíbula: É um sintoma altamente específico (~70% de especificidade). O paciente refere dor ou fadiga nos músculos da mastigação (masseter, temporal) ao comer, que alivia com o repouso. É um sinal de isquemia desses músculos.
- Hipersensibilidade do Couro Cabeludo: Dor ou desconforto ao tocar o couro cabeludo, pentear o cabelo ou deitar a cabeça no travesseiro.
Sintomas Visuais (Emergência Médica)
O envolvimento ocular é a complicação mais temida e exige ação imediata. A perda visual é tipicamente súbita, indolor e irreversível.
- Amaurose Fugaz: Perda visual monocular transitória, descrita como uma "cortina descendo sobre o olho". É um sinal de alerta crítico que precede a perda visual permanente.
- Neuropatia Óptica Isquêmica Anterior (NOIA): É a causa mais comum de cegueira na ACG. Resulta da oclusão das artérias ciliares posteriores curtas, que irrigam a cabeça do nervo óptico.
- Diplopia: Visão dupla, que pode ocorrer devido à isquemia dos músculos extraoculares ou dos nervos cranianos que os inervam (III, IV, VI).
Sintomas Constitucionais
São muito comuns e podem ser a única manifestação da doença em alguns pacientes ("ACG oculta").
- Febre (geralmente baixa, mas pode ser alta e ser investigada como febre de origem indeterminada)
- Fadiga e mal-estar
- Anorexia e perda de peso
Associação com Polimialgia Reumática (PMR)
Caracteriza-se por dor e rigidez matinal (duração > 30 minutos) de início agudo ou subagudo, afetando a cintura escapular (pescoço, ombros) e/ou a cintura pélvica (quadris, coxas). A dor é tipicamente bilateral e simétrica.
Exame Físico
- Artérias Temporais: Podem estar espessadas, nodulares, dolorosas à palpação ou com pulso diminuído ou ausente. A ausência desses achados não exclui o diagnóstico.
- Exame Oftalmológico: A fundoscopia na NOIA pode revelar um disco óptico pálido e edemaciado.
- Grandes Vasos: Procurar por sopros nas artérias subclávias, axilares ou carótidas e verificar a simetria dos pulsos e da pressão arterial nos membros superiores.
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico é uma combinação de suspeita clínica, achados laboratoriais e confirmação histopatológica ou por imagem.
Achados Laboratoriais
- Provas de Atividade Inflamatória: São a marca registrada da doença.
- Velocidade de Hemossedimentação (VHS): Tipicamente muito elevada, frequentemente > 100 mm/h. Uma VHS normal torna o diagnóstico menos provável, mas não o exclui (cerca de 5-10% dos casos podem ter VHS normal).
- Proteína C Reativa (PCR): Também se encontra elevada e é considerada por alguns autores como um marcador mais sensível que a VHS.
- Hemograma: Anemia de doença crônica (normocítica e normocrômica) e trombocitose reativa são achados comuns.
Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2024
A Velocidade de Hemossedimentação (VHS) elevada é um achado laboratorial característico e fundamental que aumenta significativamente a probabilidade diagnóstica de arterite de células gigantes. Em uma questão de prova que apresente um idoso com cefaleia nova, a VHS marcadamente elevada é o gatilho para o raciocínio diagnóstico e para a instituição imediata do tratamento.
Biópsia da Artéria Temporal (BAT)
É o padrão-ouro para o diagnóstico.
- Indicação: Deve ser realizada em todos os pacientes com suspeita de ACG, idealmente dentro de 1 a 2 semanas após o início dos corticoides (a terapia não deve ser adiada para a realização da biópsia). Os achados histológicos podem persistir por várias semanas.
- Técnica: Recomenda-se a excisão de um segmento de pelo menos 1-2 cm de comprimento, pois a inflamação pode ser segmentar ("lesões em salto" ou skip lesions). A biópsia deve ser, preferencialmente, do lado sintomático.
- Achados Histológicos: Infiltrado inflamatório mononuclear na parede do vaso (panarterite), frequentemente com formação de granulomas e presença de células gigantes multinucleadas. Fragmentação da lâmina elástica interna também é um achado característico.
Métodos de Imagem
A imagem tem ganhado espaço como uma alternativa não invasiva à biópsia.
- Ultrassonografia Doppler Colorida: Pode revelar um espessamento hipoecoico e circunferencial da parede da artéria temporal, conhecido como "sinal do halo". Este sinal tem alta especificidade e sensibilidade quando realizado por um operador experiente. É o método de imagem de primeira linha para o diagnóstico.
- Outros Métodos (para avaliação de grandes vasos): Angio-TC, Angio-RM e PET-CT são úteis para detectar o envolvimento da aorta e de seus ramos principais (aortite).
| Critério | Descrição |
|---|---|
| 1. Idade de início ≥ 50 anos | Desenvolvimento dos sintomas ou achados com 50 anos ou mais. |
| 2. Cefaleia de início recente | Início de um novo tipo de dor de cabeça localizada ou com qualidade diferente das prévias. |
| 3. Anormalidade da artéria temporal | Hipersensibilidade à palpação da artéria temporal ou pulsação diminuída, não relacionada à aterosclerose. |
| 4. VHS elevada | VHS ≥ 50 mm/h pelo método de Westergren. |
| 5. Biópsia arterial anormal | Amostra de biópsia arterial mostrando vasculite caracterizada por infiltrado de células mononucleares ou inflamação granulomatosa, geralmente com células gigantes multinucleadas. |
| Nota: A presença de 3 ou mais dos 5 critérios confere uma sensibilidade de 93,5% e uma especificidade de 91,2% para a classificação de um paciente como tendo ACG. Estes são critérios de classificação, não de diagnóstico, mas são amplamente utilizados na prática clínica e em provas. | |
Tratamento e Manejo
O tratamento da ACG é uma emergência médica. O objetivo principal é prevenir a perda visual e outras complicações isquêmicas.
Armadilhas do ENARE
A maior armadilha é atrasar o tratamento para aguardar a confirmação diagnóstica. A conduta correta é: alta suspeita clínica de ACG = iniciar corticoide imediatamente. A biópsia pode e deve ser programada para os dias seguintes. Uma questão pode tentar induzir o candidato a escolher "solicitar biópsia" como primeira conduta; a resposta correta será sempre "iniciar corticoterapia em altas doses".
Terapia Inicial
- ACG sem complicações visuais/neurológicas:
- Prednisona oral: 1 mg/kg/dia (dose usual de 40-60 mg/dia). A dose deve ser mantida até a resolução dos sintomas e normalização das provas inflamatórias (geralmente 2-4 semanas).
- ACG com sintomas visuais (amaurose fugaz, diplopia) ou perda visual estabelecida:
- Pulsoterapia com Metilprednisolona endovenosa: 500 mg a 1 g por dia, por 3 dias consecutivos. O objetivo é "resgatar" qualquer visão que ainda seja recuperável e prevenir o acometimento do olho contralateral. Após o pulso, o paciente transiciona para a prednisona oral em altas doses.
Terapia de Manutenção e Desmame
Após a remissão inicial, inicia-se um desmame lento e gradual da prednisona, que pode durar de 1 a 2 anos. O desmame é guiado pela resposta clínica e pela monitorização seriada da VHS e/ou PCR.
Terapias Adjuvantes
- Aspirina em baixa dose (AAS): 75-100 mg/dia é recomendada para todos os pacientes, pois parece reduzir o risco de eventos isquêmicos (cegueira e AVC).
- Agentes Poupa-dores de Corticoide:
- Tocilizumabe: Um anticorpo monoclonal contra o receptor da IL-6. É o principal agente biológico aprovado para ACG. É indicado para pacientes com doença refratária, recidivas frequentes ou alto risco de toxicidade por corticoides. Permite um desmame mais rápido e eficaz do corticoide.
- Metotrexato: Pode ser considerado como uma opção de segunda linha.
Complicações e Prognóstico
As complicações podem ser divididas entre as causadas pela doença e as causadas pelo tratamento.
Complicações da Doença
- Cegueira: A complicação mais temida, geralmente permanente e irreversível. Ocorre em cerca de 15-20% dos pacientes não tratados.
- Acidente Vascular Cerebral (AVC): Pode ocorrer por vasculite das artérias vertebrais ou carótidas.
- Aortopatia (complicação tardia): Pacientes com ACG têm um risco aumentado de desenvolver aneurismas (principalmente de aorta torácica) e dissecção de aorta, mesmo anos após a remissão da doença.
- Outras: Neuropatias cranianas, surdez, necrose do couro cabeludo ou da língua (raro).
Complicações do Tratamento (Corticoterapia Prolongada)
- Osteoporose e fraturas de fragilidade
- Diabetes mellitus
- Hipertensão arterial
- Catarata e glaucoma
- Aumento do risco de infecções
- Necrose avascular da cabeça do fêmur
- Miopatia, ganho de peso, alterações de humor
Populações Especiais e Manejo a Longo Prazo
O manejo a longo prazo foca em minimizar a toxicidade do tratamento e monitorar as complicações tardias da doença.
- Profilaxia da Osteoporose: Todos os pacientes que iniciam corticoterapia de longa duração devem receber suplementação de cálcio e vitamina D. A terapia com bisfosfonatos (e.g., alendronato) deve ser iniciada na maioria dos pacientes.
- Proteção Gástrica: O uso de inibidores da bomba de prótons (IBP) pode ser considerado em pacientes com alto risco de sangramento gastrointestinal.
- Monitoramento de Recidivas: As recidivas são comuns durante o desmame do corticoide e se manifestam pelo retorno dos sintomas e/ou re-elevação da VHS/PCR. A conduta é aumentar a dose de prednisona para a última dose que controlou a doença e reiniciar um desmame mais lento.
- Rastreamento de Aortopatia: Recomenda-se a realização de um exame de imagem da aorta (Angio-TC ou Angio-RM) no momento do diagnóstico ou logo após, com seguimento periódico (a cada 1-3 anos, dependendo dos achados iniciais) para rastrear o desenvolvimento de aneurismas.
| Componente | Ação Chave |
|---|---|
| Suspeita Clínica | Idoso (>50 anos) com cefaleia nova, claudicação mandibular, sintomas visuais, PMR e/ou VHS/PCR elevados. |
| Ação Imediata | Iniciar corticoide em alta dose. NÃO esperar por exames confirmatórios. |
| Dose do Corticoide | Sem sintomas visuais: Prednisona 1 mg/kg/dia (40-60 mg). Com sintomas visuais: Metilprednisolona IV 1g/dia por 3 dias, seguida de prednisona oral. |
| Confirmação Diagnóstica | Biópsia da artéria temporal (padrão-ouro) ou Ultrassom Doppler com "sinal do halo". Realizar em até 2 semanas após início do corticoide. |
| Terapia Adjuvante | AAS em baixa dose para todos. Tocilizumabe para casos refratários/recidivantes ou para poupar corticoide. |
| Manejo a Longo Prazo | Desmame lento do corticoide (1-2 anos). Profilaxia para osteoporose. Rastreamento de aortopatia com exames de imagem. |
