Trombofilias na Gestação
As trombofilias representam um grupo de desordens da hemostasia que predispõem à ocorrência de trombose. Durante a gestação, um estado fisiologicamente pró-trombótico, a presença de uma trombofilia subjacente amplifica significativamente o risco de eventos tromboembólicos venosos (TEV) e complicações obstétricas mediadas pela placenta. O manejo adequado dessas condições é essencial para garantir desfechos maternos e fetais favoráveis e é um tema recorrente em provas de residência, incluindo o ENARE.
Introdução & Epidemiologia
Definição: Trombofilia é uma condição, herdada ou adquirida, que aumenta a predisposição de um indivíduo para a formação de coágulos sanguíneos (trombose), predominantemente no sistema venoso. A gestação e o puerpério são, por si só, fatores de risco para tromboembolismo, e a presença de uma trombofilia subjacente eleva esse risco de 5 a 50 vezes, dependendo do tipo específico.
Principais Trombofilias Hereditárias
- Fator V de Leiden (FVL): É a trombofilia hereditária mais comum na população caucasiana. Resulta de uma mutação pontual no gene do Fator V (substituição de uma arginina por uma glutamina na posição 506), tornando-o resistente à clivagem e inativação pela Proteína C Ativada (APC). Isso leva a uma produção excessiva de trombina. A maioria dos portadores é heterozigota.
- Mutação do Gene da Protrombina (G20210A): A segunda trombofilia hereditária mais comum. Uma mutação no gene da protrombina leva a níveis elevados de protrombina (Fator II) no plasma, aumentando a geração de trombina e, consequentemente, o risco de trombose.
- Deficiência de Proteína C: A Proteína C é uma anticoagulante natural dependente da vitamina K que, quando ativada, inativa os Fatores Va e VIIIa. Sua deficiência resulta em um estado pró-coagulante.
- Deficiência de Proteína S: A Proteína S atua como um cofator para a Proteína C Ativada. Sua deficiência, portanto, prejudica a inativação dos Fatores Va e VIIIa. É importante notar que os níveis de Proteína S diminuem fisiologicamente durante a gestação.
- Deficiência de Antitrombina (AT): A Antitrombina é um potente inibidor da trombina (Fator IIa) e de outros fatores de coagulação (como o Xa). Sua deficiência é rara, mas está associada a um risco muito elevado de trombose.
Principal Trombofilia Adquirida em Obstetrícia
- Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide (SAF): É a trombofilia adquirida de maior importância na obstetrícia. Caracteriza-se pela presença de autoanticorpos (anticoagulante lúpico, anticorpos anticardiolipina e anti-β2 glicoproteína I) associados a eventos trombóticos (arteriais ou venosos) e/ou morbidade gestacional específica.
Fisiopatologia
A gestação normal induz um estado de hipercoagulabilidade fisiológica, uma adaptação evolutiva para minimizar o risco de hemorragia no parto. Essas alterações incluem:
- Aumento dos Fatores de Coagulação: Aumento dos níveis de fibrinogênio (Fator I), Fator VII, Fator VIII, Fator X e Fator de von Willebrand.
- Redução dos Anticoagulantes Naturais: Diminuição significativa dos níveis de Proteína S.
- Redução da Fibrinólise: Aumento dos níveis do inibidor do ativador do plasminogênio (PAI-1 e PAI-2), diminuindo a quebra de coágulos.
- Estase Venosa: Compressão da veia cava inferior e veias pélvicas pelo útero gravídico, o que lentifica o fluxo sanguíneo nos membros inferiores.
As trombofilias, sejam elas hereditárias ou adquiridas, exacerbam dramaticamente esse estado pró-trombótico basal. No caso das trombofilias hereditárias, o defeito genético específico (ex: resistência à Proteína C no FVL) desequilibra ainda mais a balança hemostática em favor da coagulação.
Fisiopatologia da SAF na Gestação
Na SAF, a fisiopatologia é mais complexa e não se limita à trombose. Os anticorpos antifosfolípides (aPL) são direcionados contra complexos de fosfolípides e proteínas plasmáticas (como a β2-glicoproteína I). Acredita-se que os desfechos adversos ocorram por múltiplos mecanismos:
- Trombose da Vasculatura Placentária: Os aPL podem causar trombose nos vasos deciduais e vilositários, levando à má perfusão, infartos placentários e insuficiência placentária.
- Disfunção do Trofoblasto: Os aPL podem se ligar diretamente às células trofoblásticas, inibindo sua proliferação, diferenciação e capacidade invasiva, essenciais para uma placentação adequada.
- Ativação do Complemento: A ligação dos aPL à placenta pode ativar a via do complemento, gerando uma resposta inflamatória local que danifica o tecido placentário e contribui para a perda fetal.
Raciocínio Clínico
Entender a fisiopatologia é crucial. A gestação é um "teste de estresse" hemostático. Uma mulher com Fator V de Leiden pode nunca ter tido uma trombose, mas ao engravidar, a combinação do estado pró-coagulante da gestação com sua trombofilia de base pode ser suficiente para desencadear um evento de TEV. Na SAF, o problema vai além da trombose sistêmica, afetando diretamente a interface materno-fetal, o que explica a forte associação com perdas gestacionais e insuficiência placentária.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A suspeita de trombofilia em uma gestante surge a partir de uma anamnese detalhada, buscando por indicadores pessoais e familiares. O exame físico pode ser normal ou revelar sinais de TEV agudo ou crônico.
Manifestações Clínicas e História
- História Pessoal de Tromboembolismo Venoso (TEV): Ocorrência de trombose venosa profunda (TVP) ou embolia pulmonar (EP), especialmente se o evento foi espontâneo (sem fator de risco claro como cirurgia ou imobilização), recorrente, em idade jovem (< 50 anos) ou em locais atípicos (ex: veias cerebrais, mesentéricas).
- História Familiar de TEV: Presença de TEV em um ou mais parentes de primeiro grau, principalmente se em idade jovem.
- Morbidade Gestacional (Critérios Clínicos para SAF):
- Perdas gestacionais recorrentes: Três ou mais perdas gestacionais consecutivas e inexplicadas com menos de 10 semanas de gestação.
- Perda fetal tardia: Uma ou mais mortes de um feto morfologicamente normal com 10 ou mais semanas de gestação.
- Parto prematuro por insuficiência placentária: Um ou mais nascimentos de um neonato morfologicamente normal antes de 34 semanas devido a pré-eclâmpsia grave, eclâmpsia ou sinais de insuficiência placentária (ex: restrição de crescimento intrauterino - RCIU).
Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado pelo Exame
As provas frequentemente testam os critérios diagnósticos da SAF. Um ponto crucial, cobrado no ENARE 2023 (Q69), é que uma única perda fetal com 10 ou mais semanas de gestação é um critério clínico suficiente para a investigação de SAF. Muitos candidatos confundem este critério com a necessidade de perdas recorrentes, que se aplica apenas a abortamentos com menos de 10 semanas. Memorize: 1 perda ≥ 10 semanas = critério clínico para SAF.
Exame Físico
O exame físico é direcionado para a busca de sinais de TEV. Na suspeita de TVP de membro inferior, procurar por:
- Edema assimétrico de panturrilha (> 3 cm de diferença na circunferência)
- Dor à palpação do trajeto venoso
- Empastamento muscular
- Sinal de Homans (dor na panturrilha à dorsiflexão do pé - pouco sensível e específico)
- Aumento da temperatura local e rubor
Na suspeita de EP, os sinais podem ser taquipneia, taquicardia, hipoxemia e, em casos graves, hipotensão e sinais de sobrecarga de ventrículo direito.
Investigação Diagnóstica
A decisão de investigar uma trombofilia deve ser criteriosa, pois o rastreamento universal na população obstétrica geral não é recomendado. A testagem é indicada apenas em cenários clínicos específicos onde o resultado influenciará o manejo.
Indicações para Investigação de Trombofilias
- História pessoal de TEV não provocado ou associado a fator de risco estrogênico (uso de contraceptivos orais, gestação).
- Parente de primeiro grau com trombofilia de alto risco conhecida (Deficiência de Antitrombina, Proteína C ou S; homozigose para FVL ou Mutação da Protrombina).
- História obstétrica que preenche os critérios clínicos para SAF (perda fetal tardia, perdas recorrentes precoces, parto prematuro por insuficiência placentária grave).
Diagnóstico da Síndrome Antifosfolípide (SAF)
O diagnóstico da SAF requer a presença de pelo menos um critério clínico e um critério laboratorial, conforme os Critérios de Sydney Revisados.
| Critérios Clínicos | Critérios Laboratoriais |
|---|---|
|
1. Trombose Vascular: Um ou mais episódios de trombose arterial, venosa ou de pequenos vasos, em qualquer tecido ou órgão. 2. Morbidade Gestacional: a) Uma ou mais mortes inexplicadas de feto morfologicamente normal com ≥ 10 semanas de gestação. OU b) Um ou mais nascimentos prematuros de neonato morfologicamente normal com < 34 semanas devido a eclâmpsia, pré-eclâmpsia grave ou insuficiência placentária. OU c) Três ou mais abortamentos espontâneos consecutivos e inexplicados com < 10 semanas de gestação. |
(Positividade em 2 ou mais ocasiões, com pelo menos 12 semanas de intervalo) 1. Anticoagulante Lúpico (AL): Presente no plasma. 2. Anticorpo Anticardiolipina (aCL): IgG e/ou IgM em títulos médios ou altos (> 40 GPL ou MPL, ou > percentil 99). 3. Anticorpo Anti-β2 Glicoproteína I (aβ2GPI): IgG e/ou IgM em títulos > percentil 99. |
Raciocínio Clínico
Por que a necessidade de repetir o exame laboratorial após 12 semanas? Anticorpos antifosfolípides podem surgir transitoriamente durante infecções ou pelo uso de certos medicamentos. A persistência do anticorpo por mais de 12 semanas confirma que se trata de uma condição autoimune crônica, caracterizando a SAF.
Tratamento e Manejo
O manejo depende da trombofilia específica, da história pessoal/familiar de TEV e da história obstétrica. O objetivo é prevenir a primeira ocorrência ou a recorrência de TEV materno e melhorar os desfechos gestacionais.
Manejo da SAF na Gestação
Para gestantes com diagnóstico de SAF Obstétrica (baseado em morbidade gestacional prévia), o tratamento padrão-ouro para melhorar os desfechos da gravidez é a terapia combinada:
- Ácido Acetilsalicílico (AAS) em baixa dose: 100 mg/dia, iniciado idealmente antes da concepção ou assim que a gravidez for confirmada. Mantido até próximo ao termo.
- Heparina em dose profilática: Geralmente heparina de baixo peso molecular (HBPM), como a Enoxaparina 40 mg, subcutânea, uma vez ao dia. Iniciada ao se confirmar a viabilidade da gestação (batimentos cardíacos fetais) e mantida durante toda a gestação e por 6 semanas no puerpério.
Manejo das Trombofilias Hereditárias
O manejo é estratificado pelo risco. A simples presença de uma trombofilia hereditária sem história de TEV não é indicação automática para anticoagulação.
| Cenário Clínico | Conduta Recomendada |
|---|---|
| Portadora assintomática (sem história pessoal de TEV) de trombofilia de baixo risco (ex: heterozigose para FVL ou Protrombina) | Vigilância clínica. Anticoagulação profilática pode ser considerada se houver outros fatores de risco (ex: imobilização, cirurgia, história familiar forte). |
| Portadora assintomática de trombofilia de alto risco (ex: deficiência de AT, homozigose para FVL) | Anticoagulação profilática durante a gestação e puerpério. |
| Qualquer trombofilia com história pessoal de um único TEV provocado (associado a fator de risco transitório) | Anticoagulação profilática durante a gestação e puerpério. |
| Qualquer trombofilia com história pessoal de TEV idiopático (não provocado) ou recorrente | Anticoagulação em dose terapêutica durante a gestação e puerpério. |
Complicações e Prognóstico
As trombofilias na gestação estão associadas a um espectro de complicações maternas e fetais.
Complicações Maternas
- Tromboembolismo Venoso (TEV): O risco de TVP e EP é a principal preocupação. O risco é aumentado durante toda a gestação e atinge seu pico no puerpério imediato.
Complicações Fetais e Placentárias
- Perda Gestacional Recorrente: Principalmente associada à SAF.
- Óbito Fetal: Risco aumentado, especialmente no terceiro trimestre, por insuficiência placentária.
- Pré-eclâmpsia: A disfunção endotelial e a má placentação associadas a algumas trombofilias (especialmente SAF) aumentam o risco de pré-eclâmpsia, muitas vezes de início precoce e grave.
- Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU): Resultante da insuficiência placentária crônica.
- Descolamento Prematuro de Placenta (DPP): A trombose decidual pode levar a sangramento e descolamento.
O prognóstico melhora significativamente com o diagnóstico correto e o manejo adequado. Em mulheres com SAF obstétrica, o tratamento com AAS e heparina eleva a taxa de nascidos vivos de menos de 20% para cerca de 70-80%.
Populações Especiais e Manejo Peri-parto
Diferença entre Dose Profilática e Terapêutica
É fundamental para as provas saber a diferença entre as doses de HBPM.
- Dose Profilática: Visa prevenir a ocorrência de um primeiro evento ou recorrência em pacientes de menor risco. Exemplo: Enoxaparina 40 mg SC, 1 vez ao dia.
- Dose Terapêutica (ou Plena): Visa tratar um evento trombótico agudo ou prevenir recorrência em pacientes de altíssimo risco. A dose é ajustada pelo peso. Exemplo: Enoxaparina 1 mg/kg SC, a cada 12 horas.
Manejo da Anticoagulação no Parto
O planejamento do parto é crucial para minimizar o risco de hemorragia materna e permitir a analgesia de neuroeixo (raquianestesia ou peridural).
- HBPM em Dose Profilática: Deve ser suspensa 12 horas antes do procedimento de neuroeixo ou do parto induzido/cesárea eletiva.
- HBPM em Dose Terapêutica: Deve ser suspensa 24 horas antes do procedimento de neuroeixo ou do parto.
- Reinício no Pós-parto: A heparina pode ser reiniciada 6-12 horas após o parto vaginal ou 12-24 horas após a cesariana, na ausência de sangramento significativo.
Manejo no Puerpério
O puerpério é o período de maior risco para TEV. A anticoagulação, quando indicada, deve ser mantida por pelo menos 6 semanas após o parto. Mulheres em uso de HBPM podem amamentar, pois a medicação não passa para o leite materno em quantidades significativas. A varfarina também é segura durante a amamentação e pode ser uma opção para anticoagulação a longo prazo no pós-parto, mas é teratogênica e contraindicada durante a gestação.
Armadilhas do ENARE
Questões podem apresentar um cenário de uma gestante em uso de Enoxaparina que entra em trabalho de parto espontâneo. A conduta dependerá do tempo desde a última dose. Se a última dose foi há menos de 12 horas (profilática) ou 24 horas (terapêutica), a analgesia de neuroeixo está contraindicada pelo risco de hematoma espinhal. A prova pode exigir que o candidato escolha entre analgesia sistêmica ou aguardar o tempo necessário para o bloqueio.
