Tricomoníase
A tricomoníase é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) de alta prevalência e um tema recorrente nas provas de residência, especialmente no ENARE. Seu reconhecimento clínico, diagnóstico diferencial e manejo, incluindo o tratamento do(s) parceiro(s), são pontos-chave que exigem domínio do candidato.
Introdução e Epidemiologia
A tricomoníase é definida como uma infecção da mucosa genital causada pelo protozoário flagelado, anaeróbio e unicelular Trichomonas vaginalis. É a IST não viral mais comum em todo o mundo, com a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimando milhões de novos casos anualmente. Sua prevalência é maior em populações com acesso limitado a serviços de saúde e em indivíduos com múltiplos parceiros sexuais.
Fatores de Risco
Os principais fatores de risco para a aquisição da tricomoníase estão diretamente ligados ao comportamento sexual e a fatores socioeconômicos. Incluem:
- Múltiplos parceiros sexuais
- História prévia de outras ISTs
- Não utilização de métodos de barreira (preservativos)
- Baixo nível socioeconômico e educacional
- Uso de drogas ilícitas
- Parceiro sexual com uretrite não gonocócica
Co-infecções Comuns
A presença de tricomoníase aumenta a suscetibilidade a outras ISTs e frequentemente coexiste com elas. As co-infecções mais comuns são:
- Vaginose Bacteriana (VB): A alteração do pH vaginal na tricomoníase favorece o crescimento de bactérias associadas à VB.
- Gonorreia e Clamídia: Compartilham os mesmos fatores de risco sexuais.
- Vírus do Papiloma Humano (HPV): A inflamação local pode facilitar a aquisição do HPV.
- Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV): A tricomoníase é um importante fator de risco para a aquisição e transmissão do HIV.
Fisiopatologia
A infecção ocorre quando o Trichomonas vaginalis é introduzido no trato geniturinário, geralmente durante a relação sexual. O protozoário utiliza seus flagelos para se mover ativamente pela vagina e uretra.
O mecanismo patogênico central envolve a aderência do protozoário às células do epitélio escamoso da vagina e do colo do útero. Uma vez aderido, o T. vaginalis causa dano citotóxico direto às células epiteliais, liberando enzimas e proteínas que levam à lise celular. Este processo desencadeia uma intensa resposta inflamatória do hospedeiro, com recrutamento de neutrófilos e outras células imunes para o local.
Essa resposta inflamatória é a responsável direta pela maioria dos sinais e sintomas clínicos:
- Leucorreia: O corrimento purulento (amarelo-esverdeado) é composto por células epiteliais lisadas, neutrófilos, transudato inflamatório e os próprios protozoários.
- Prurido e Eritema: Resultam da liberação de mediadores inflamatórios na vulva e vagina.
- Colpite Macular ("Colo em Morango"): As hemorragias puntiformes características são resultado da dilatação capilar e de micro-hemorragias na mucosa cervical devido à inflamação focal intensa.
- Elevação do pH Vaginal: O T. vaginalis consome carboidratos e aminoácidos, produzindo amônia e outras substâncias que elevam o pH vaginal para valores tipicamente acima de 4.5, alterando a flora vaginal normal e favorecendo co-infecções como a vaginose bacteriana.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica da tricomoníase é variável, podendo ir de completamente assintomática (especialmente em homens, que atuam como reservatórios) a um quadro agudo e exuberante. Nas mulheres, o período de incubação varia de 4 a 28 dias.
Sintomas Clássicos
- Corrimento Vaginal: É a queixa mais comum. Classicamante descrito como amarelo-esverdeado, abundante, de aspecto fino, bolhoso ou espumoso (aerado) e com odor fétido, muitas vezes comparado a peixe podre (semelhante ao da vaginose bacteriana).
- Prurido Vulvar e Irritação: Sintoma muito frequente, podendo ser intenso.
- Disúria: Dor ou ardor ao urinar, geralmente por inflamação da uretra ou irritação vulvar pela urina.
- Dispareunia: Dor durante a relação sexual.
- Dor pélvica baixa: Menos comum, mas pode ocorrer.
Achados do Exame Físico
Ao exame especular, os achados são cruciais para o diagnóstico presuntivo.
- Conteúdo Vaginal: Visualização do corrimento característico, muitas vezes acumulado no fundo de saco posterior.
- Paredes Vaginais: Podem estar hiperemiadas e edemaciadas.
- Colo Uterino: O achado mais específico, embora presente em apenas 10-30% dos casos, é a colpite macular, também conhecida como "colo em framboesa" ou "colo em morango". Caracteriza-se por múltiplas petéquias ou hemorragias puntiformes na superfície do colo, que se tornam mais evidentes após a limpeza do muco cervical.
Conceito-Chave Validado pelo ENARE (ENARE 2020)
A capacidade de diagnosticar clinicamente a tricomoníase a partir de uma vinheta é fundamental. A descrição de um corrimento amarelo-esverdeado, bolhoso/espumoso, associado a petéquias no colo uterino ("colo em morango"), é altamente sugestiva de tricomoníase e deve levar o candidato à resposta correta. Este quadro clínico é um dos mais clássicos da ginecologia e frequentemente cobrado.
Diagnóstico Laboratorial
Embora a suspeita clínica seja forte, a confirmação laboratorial é recomendada para um diagnóstico definitivo.
| Método | Descrição | Vantagens | Desvantagens |
|---|---|---|---|
| Teste de Amplificação de Ácidos Nucleicos (NAAT) | Detecta o material genético (DNA ou RNA) do T. vaginalis. Pode ser realizado em secreção vaginal, endocervical ou urina. | Padrão-ouro. Altíssima sensibilidade (>95%) e especificidade. | Custo mais elevado e menor disponibilidade em alguns serviços. |
| Exame a Fresco (Microscopia) | Uma gota da secreção vaginal é misturada com uma gota de solução salina (NaCl 0,9%) em uma lâmina e observada ao microscópio. | Rápido, barato, disponível no consultório. O diagnóstico é feito pela visualização de protozoários móveis, flagelados e piriformes. | Baixa sensibilidade (50-70%). Depende da viabilidade do organismo e da experiência do observador. Um resultado negativo não exclui a infecção. |
| Cultura | Inoculação da secreção em meio de cultura específico (meio de Diamond). | Alta sensibilidade (75-95%) e especificidade. Útil em casos de suspeita de resistência. | Resultado demorado (até 7 dias), caro e não amplamente disponível. |
| Teste de pH Vaginal | Medição do pH do conteúdo vaginal com fita reagente. | Rápido e barato. | Inespecífico. Na tricomoníase, o pH é tipicamente > 4.5, mas este achado também está presente na vaginose bacteriana e na vaginite atrófica. |
| Citologia Oncótica (Papanicolau) | Pode identificar incidentalmente o T. vaginalis. | Nenhuma (não é um teste diagnóstico para esta finalidade). | Baixa sensibilidade e especificidade. Um achado positivo deve ser confirmado por outro método. |
Raciocínio Clínico
Na prática, em um serviço com recursos limitados, o diagnóstico é frequentemente feito com base na clínica e no exame a fresco. No entanto, para as provas, é essencial saber que o NAAT é o padrão-ouro. Se uma questão apresentar uma paciente com clínica sugestiva e exame a fresco negativo, a conduta correta é prosseguir com um teste mais sensível (NAAT) ou, na impossibilidade, tratar empiricamente com base na forte suspeita clínica, especialmente se houver fatores de risco.
Tratamento e Manejo
O tratamento da tricomoníase é simples, eficaz e visa a cura microbiológica, o alívio dos sintomas e a prevenção da transmissão e de complicações.
Terapia Farmacológica
O tratamento de escolha é feito com derivados nitroimidazólicos. Os esquemas recomendados pelo Ministério da Saúde do Brasil e pelo CDC são:
- Metronidazol 2g, via oral, em dose única. (Esquema preferencial pela maior adesão).
- Tinidazol 2g, via oral, em dose única. (Alternativa com perfil de efeitos colaterais semelhante ou ligeiramente melhor).
- Metronidazol 500mg, via oral, 2 vezes ao dia, por 7 dias. (Esquema alternativo, com eficácia semelhante à dose única, podendo ser preferido em casos de falha terapêutica inicial ou em gestantes sintomáticas).
O tratamento tópico com cremes ou óvulos de metronidazol não é eficaz e não deve ser utilizado como monoterapia, pois não atinge níveis terapêuticos na uretra e nas glândulas parauretrais, que são reservatórios do protozoário.
Manejo do(s) Parceiro(s) Sexuais
Este é um ponto de extrema importância e frequentemente cobrado em provas.
- O tratamento simultâneo de todos os parceiros sexuais dos últimos 60 dias é obrigatório.
- O tratamento deve ser realizado independentemente da presença de sintomas ou do resultado de exames no parceiro, pois a infecção em homens é frequentemente assintomática.
- A falha em tratar o parceiro é a principal causa de recorrência da infecção.
Conceito-Chave Validado pelo ENARE (ENARE 2022)
O manejo correto da tricomoníase exige uma abordagem dupla: tratar a paciente E tratar seu(s) parceiro(s) sexual(is). Uma questão de prova que apresente apenas a opção de tratar a paciente, sem mencionar o parceiro, estará incompleta ou incorreta. A conduta adequada sempre envolve o tratamento do casal ou de todos os envolvidos, utilizando um dos esquemas de metronidazol ou tinidazol.
Orientações ao Paciente
- Abstinência sexual: Recomendar abstinência até que o tratamento seja concluído por todos os parceiros e ambos estejam assintomáticos (geralmente 7 dias após o término do tratamento).
- Álcool: Orientar a abstenção completa de bebidas alcoólicas durante o tratamento com metronidazol e por pelo menos 24-72 horas após a última dose, devido ao risco de efeito dissulfiram-símile (náuseas, vômitos, cólicas abdominais, cefaleia e rubor facial).
- Rastreio de outras ISTs: Oferecer testagem para outras ISTs, incluindo HIV, sífilis, gonorreia e clamídia.
Complicações e Prognóstico
Se não tratada, a tricomoníase pode levar a complicações significativas.
- Aumento do Risco de HIV: A inflamação e as micro-ulcerações na mucosa genital aumentam em 2 a 3 vezes o risco de aquisição e transmissão do HIV.
- Complicações na Gestação: A infecção está associada a desfechos obstétricos adversos, como ruptura prematura de membranas, parto prematuro e recém-nascido de baixo peso.
- Doença Inflamatória Pélvica (DIP): Há uma associação entre tricomoníase e o desenvolvimento de DIP, embora o papel causal direto ainda seja debatido.
- Infertilidade: Pode estar associada à infertilidade tubária (secundária à DIP) em mulheres e à diminuição da motilidade espermática em homens.
Com o tratamento adequado, o prognóstico é excelente, com taxas de cura superiores a 95%.
Populações Especiais
Gestantes e Lactantes
- Gestantes: O tratamento de gestantes sintomáticas é recomendado em qualquer trimestre para alívio dos sintomas e para reduzir o risco de desfechos adversos. O Metronidazol é considerado seguro na gestação (antiga categoria B pelo FDA). O esquema de dose única (2g) ou o de 7 dias (500mg 12/12h) podem ser utilizados.
- Lactantes: O metronidazol é excretado no leite materno. Recomenda-se que a lactante, após tomar a dose única de 2g, interrompa a amamentação por 12 a 24 horas (ordenhando e descartando o leite nesse período) para minimizar a exposição do lactente. Para o regime de 7 dias, a interrupção não é geralmente necessária devido às menores concentrações de pico.
Portadores Assintomáticos
O tratamento de indivíduos assintomáticos, incluindo homens, é fundamental para interromper a cadeia de transmissão e prevenir o desenvolvimento de complicações a longo prazo.
Infecção Persistente ou Recorrente
A causa mais comum de falha no tratamento é a reinfecção por um parceiro não tratado. A segunda causa é a não adesão ao tratamento. A resistência do T. vaginalis ao metronidazol é rara, mas pode ocorrer. Na suspeita de resistência (após excluir reinfecção e má adesão), o tratamento pode ser feito com doses mais altas ou regimes prolongados de metronidazol ou tinidazol, geralmente sob a orientação de um especialista.
Armadilhas do ENARE
Cuidado com o diagnóstico diferencial de corrimentos vaginais. A tricomoníase (amarelo-esverdeado, bolhoso, pH >4.5, prurido) pode ser confundida com a Vaginose Bacteriana (acinzentado, odor de peixe, pH >4.5, sem prurido) e a Candidíase (branco, espesso/grumoso, pH normal, prurido intenso). Saber diferenciar as características do corrimento, o pH e os sintomas associados é crucial para acertar as questões.
