Toxoplasmose Durante a Gestação
A toxoplasmose é uma das infecções congênitas mais importantes e um tema recorrente nas provas de residência, especialmente no ENARE. Compreender sua epidemiologia, diagnóstico sorológico e manejo é fundamental. A infecção é causada pelo protozoário Toxoplasma gondii e faz parte do acrônimo clássico TORCH (Toxoplasmose, Outras, Rubéola, Citomegalovírus, Herpes).
Introdução & Epidemiologia
A toxoplasmose é uma zoonose de distribuição mundial, causada pelo protozoário intracelular obrigatório Toxoplasma gondii. Embora a infecção em indivíduos imunocompetentes seja geralmente assintomática ou leve, a infecção primária adquirida durante a gestação pode levar à transmissão transplacentária, resultando em infecção congênita com graves consequências para o feto.
Modos de Transmissão
O ser humano, um hospedeiro intermediário, pode se infectar por três vias principais:
- Ingestão de oocistos: Presentes nas fezes de felídeos (os hospedeiros definitivos). A contaminação ocorre através da ingestão de água, solo ou alimentos (como frutas e verduras mal lavadas) contaminados com fezes de gatos infectados. Os oocistos esporulam no ambiente e se tornam infectantes.
- Ingestão de cistos teciduais (bradicistos): Encontrados na carne crua ou malcozida de hospedeiros intermediários (principalmente porco, carneiro e boi). Esta é a via de transmissão mais comum em muitas regiões, incluindo o Brasil.
- Transmissão transplacentária (taquizoítos): Ocorre durante a fase aguda da infecção materna (primoinfecção), quando os taquizoítos (forma replicativa rápida) estão circulando no sangue e podem atravessar a barreira placentária, infectando o feto.
- Outras formas mais raras incluem transfusão de sangue e transplante de órgãos.
Prevalência e Relevância
A prevalência da toxoplasmose varia globalmente, sendo mais alta em países de clima tropical e com piores condições de saneamento e higiene alimentar. O Brasil é considerado uma área de alta prevalência. A soroprevalência em mulheres em idade fértil no país pode variar de 50% a 80%, dependendo da região. Isso significa que uma parcela significativa de gestantes (20-50%) é soronegativa e, portanto, suscetível à primoinfecção durante a gravidez, o que justifica a importância do rastreamento sorológico pré-natal.
Fisiopatologia
Ciclo de Vida do T. gondii
O ciclo de vida do parasita é complexo e envolve um hospedeiro definitivo e vários intermediários.
- Hospedeiro Definitivo (Felídeos): Gatos se infectam ao ingerir cistos teciduais presentes em presas (roedores, pássaros). No intestino do gato, ocorre a reprodução sexuada do parasita, resultando na formação de oocistos que são eliminados nas fezes.
- Ambiente: Os oocistos eliminados precisam de 1 a 5 dias no ambiente para esporular e se tornarem infectantes.
- Hospedeiro Intermediário (Humanos, outros mamíferos, aves): A infecção ocorre pela ingestão de oocistos esporulados ou cistos teciduais. No hospedeiro intermediário, os parasitas se transformam em taquizoítos, que se disseminam pelo corpo via sanguínea e linfática (fase aguda). Com a resposta imune do hospedeiro, os taquizoítos se convertem em bradicistos, formando cistos teciduais (fase crônica), que permanecem latentes por toda a vida do indivíduo, principalmente no cérebro, retina e músculos.
Transmissão Transplacentária e Patogênese Fetal
A transmissão para o feto ocorre quase exclusivamente quando a mãe adquire a infecção primária durante a gestação. Os taquizoítos circulantes na mãe infectam a placenta (placentite) e, a partir daí, podem atingir a circulação fetal. Uma vez no feto, os taquizoítos se disseminam amplamente, mostrando um tropismo particular pelo sistema nervoso central (SNC) e pela retina.
O dano fetal resulta de uma combinação de destruição celular direta pelo parasita e da resposta inflamatória desencadeada. A necrose tecidual e a inflamação no cérebro podem levar à formação de calcificações, obstrução do fluxo de líquido cefalorraquidiano (levando à hidrocefalia) e destruição do parênquima cerebral. Na retina, o processo inflamatório causa cicatrizes características da coriorretinite.
Essa patogênese explica a Tríade Clássica de Sabin da toxoplasmose congênita, embora seja encontrada em menos de 10% dos casos sintomáticos:
- Coriorretinite: Lesões necróticas na retina e coroide, que podem levar à perda visual significativa. É a sequela mais comum a longo prazo.
- Hidrocefalia: Acúmulo de líquor devido à obstrução do aqueduto de Sylvius por inflamação e gliose.
- Calcificações Intracranianas: Tipicamente difusas e esparsas pelo parênquima cerebral, representando áreas de necrose e cicatrização.
Apresentação Clínica e Exame Físico
Infecção Materna
A grande maioria (80-90%) das infecções primárias em gestantes imunocompetentes é assintomática. Quando os sintomas ocorrem, são geralmente inespecíficos e autolimitados, mimetizando uma síndrome gripal ("flu-like") ou mononucleose-símile. Os achados incluem:
- Febre baixa
- Mialgia e artralgia
- Cefaleia
- Linfadenopatia, classicamente cervical posterior, indolor e móvel.
Raciocínio Clínico
A natureza inespecífica ou ausente dos sintomas maternos reforça a total dependência do rastreamento sorológico no pré-natal. Não se deve esperar por sintomas para suspeitar de toxoplasmose aguda na gestante. A solicitação da sorologia na primeira consulta de pré-natal é mandatória.
Infecção Congênita (Neonatal)
O espectro clínico no recém-nascido é vasto. Mais de 75% dos bebês infectados são assintomáticos ao nascimento, mas correm o risco de desenvolver sequelas (principalmente oculares) meses ou anos depois. Nos casos sintomáticos, a apresentação pode variar de leve a grave e disseminada:
- Forma Grave/Sistêmica: Hepatoesplenomegalia, icterícia, anemia, trombocitopenia (manifestada como petéquias ou púrpura), pneumonia e miocardite.
- Forma Neurológica: A tríade clássica (coriorretinite, hidrocefalia, calcificações intracranianas), convulsões, micro ou macrocefalia.
- Forma Ocular: Coriorretinite é o achado mais comum, podendo ser detectada no exame de fundo de olho mesmo em bebês assintomáticos.
Diagnóstico Laboratorial
O diagnóstico se baseia na sorologia materna, que utiliza a detecção de anticorpos específicos (IgM e IgG). A interpretação correta dos resultados é crucial para o manejo adequado.
Rastreamento Materno: Sorologia (IgG e IgM)
A sorologia deve ser solicitada na primeira consulta pré-natal. A conduta varia conforme o resultado:
| IgG | IgM | Interpretação | Conduta |
|---|---|---|---|
| Não Reagente | Não Reagente | Suscetível. Nunca teve contato com o parasita. | Orientar prevenção primária. Repetir sorologia trimestralmente (ou mensalmente em áreas de alta prevalência). |
| Reagente | Não Reagente | Imune. Infecção crônica/passada. | Nenhum risco para o feto (exceto em imunossupressão grave). Nenhuma ação necessária. |
| Não Reagente | Reagente | Infecção aguda provável ou resultado falso-positivo. | Repetir sorologia em 2-3 semanas para avaliar soroconversão do IgG. Iniciar tratamento se confirmado. |
| Reagente | Reagente | Situação mais desafiadora. Pode ser infecção aguda recente (risco fetal) ou infecção passada com IgM residual (sem risco). | Solicitar Teste de Avidez de IgG. |
Teste de Avidez de IgG
Este teste é a ferramenta chave para diferenciar infecção recente de passada no cenário IgG+/IgM+. A avidez refere-se à força de ligação entre o anticorpo IgG e o antígeno. Anticorpos produzidos no início da infecção têm baixa avidez, que aumenta com o tempo.
- Alta Avidez: Indica que a infecção ocorreu há mais de 16 semanas (4 meses). Se o teste for realizado no primeiro trimestre, uma alta avidez praticamente exclui a possibilidade de infecção primária ter ocorrido durante a gestação atual, afastando o risco de transmissão congênita.
- Baixa Avidez: Sugere fortemente uma infecção recente, ocorrida há menos de 16 semanas. A gestante deve ser tratada como portadora de infecção aguda.
- Avidez Intermediária/Indeterminada: O resultado é inconclusivo e a paciente deve ser manejada como se tivesse infecção aguda.
Armadilhas do ENARE: Interpretando a Sorologia
Cenário da Prova (Baseado em ENARE 2022): Gestante no primeiro trimestre com sorologia IgG Reagente e IgM Reagente. O próximo passo solicitado é o Teste de Avidez de IgG. O resultado mostra alta avidez. A conduta correta é tranquilizar a paciente e suspender qualquer investigação ou tratamento, pois isso confirma uma infecção crônica adquirida antes da gestação. A presença de IgM pode ser residual por meses ou até anos.
Diagnóstico Fetal Invasivo
Quando a infecção materna aguda é confirmada ou fortemente suspeita, a investigação de infecção fetal é indicada.
- Amniocentese para PCR de T. gondii: É o padrão-ouro para o diagnóstico de infecção fetal. O DNA do parasita é pesquisado no líquido amniótico.
- Quando realizar: A partir da 18ª semana de gestação e pelo menos 4 semanas após a data da provável infecção materna (para permitir a passagem do parasita para o líquido amniótico).
- Implicação: Um PCR positivo confirma a transmissão fetal e indica a mudança do esquema terapêutico materno. Um PCR negativo não exclui 100% a infecção, mas torna-a muito improvável.
- Ultrassonografia: Pode revelar achados sugestivos de infecção fetal, como ventriculomegalia, calcificações intracranianas, ascite, hepatoesplenomegalia ou espessamento placentário. No entanto, a maioria dos fetos infectados tem ultrassom normal.
Tratamento e Manejo
Prevenção Primária (para Gestantes Suscetíveis)
A educação da gestante soronegativa é a medida mais eficaz. As orientações devem focar nas vias de transmissão:
- Higiene Alimentar:
- Cozinhar bem todas as carnes (carne de porco, carneiro, boi) a temperaturas superiores a 67°C. O congelamento da carne a -20°C por 24 horas também pode destruir os cistos.
- Lavar bem frutas, legumes e verduras antes do consumo.
- Evitar o consumo de leite não pasteurizado e ovos crus.
- Lavar bem as mãos e utensílios de cozinha após manipular carne crua ou vegetais não lavados.
- Cuidados Ambientais:
- Evitar o contato com fezes de gato. Se possuir um gato, a caixa de areia deve ser limpa diariamente (antes que os oocistos esporulem) por outra pessoa. Se a gestante precisar fazê-lo, deve usar luvas e lavar as mãos vigorosamente depois.
- Usar luvas ao praticar jardinagem ou manipular o solo.
- Manter os gatos domésticos dentro de casa e alimentá-los com ração comercial, evitando que cacem.
Raciocínio Clínico: Foco do ENARE em Prevenção
Questões sobre medidas preventivas são muito comuns. (Baseado em ENARE 2023) A banca pode perguntar sobre a temperatura específica para o cozimento de carnes (>67°C) ou sobre a importância de lavar as mãos após jardinagem. Conhecer essas medidas práticas é essencial.
Tratamento Farmacológico
O tratamento visa reduzir o risco de transmissão vertical e tratar a infecção fetal quando ela ocorre.
| Cenário Clínico | Esquema Terapêutico | Objetivo |
|---|---|---|
| Infecção Materna Aguda (Suspeita ou Confirmada) Sem evidência de infecção fetal |
Espiramicina 1g, VO, 8/8h | É um macrolídeo que se concentra na placenta, reduzindo a taxa de transmissão transplacentária em até 60%. Não trata o feto já infectado. Mantida até o parto se a infecção fetal for descartada. |
| Infecção Fetal Confirmada (PCR positivo na amniocentese ou USG com achados fortes) |
Esquema Tríplice: - Pirimetamina (dose de ataque 50mg 12/12h por 2 dias, depois 50mg/dia) - Sulfadiazina (3-4g/dia, divididos em 4 doses) - Ácido Folínico (10-15mg/dia, para prevenir mielossupressão da pirimetamina) |
Tratar a infecção no feto. A pirimetamina é teratogênica e geralmente evitada antes de 14-18 semanas. O esquema é feito em ciclos (ex: 3 semanas de tratamento, 2 semanas de pausa com Espiramicina) até o parto. |
Complicações e Prognóstico
O prognóstico da toxoplasmose congênita depende criticamente da idade gestacional em que ocorreu a infecção materna.
- Risco de Transmissão: Aumenta com a idade gestacional. É baixo no 1º trimestre (~15%), intermediário no 2º (~30%) e alto no 3º (~65%).
- Gravidade da Doença Fetal: É inversamente proporcional à idade gestacional. Infecções no 1º trimestre, embora mais raras, são muito mais graves, podendo levar a abortamento ou sequelas neurológicas severas. Infecções no 3º trimestre, embora mais comuns, geralmente resultam em doença subclínica ao nascimento.
Sequelas a Longo Prazo
Mesmo recém-nascidos assintomáticos podem desenvolver sequelas tardiamente se não tratados. As principais são:
- Deficiência Visual: A coriorretinite é a sequela mais frequente, podendo reativar ao longo da vida e levar à cegueira.
- Atraso no Desenvolvimento Neuropsicomotor.
- Perda Auditiva.
- Convulsões.
Por isso, todo recém-nascido com diagnóstico de toxoplasmose congênita (ou forte suspeita) deve receber tratamento por 12 meses com o esquema tríplice.
Populações Especiais
Gestantes Imunocomprometidas (Ex: HIV)
Em gestantes com imunossupressão grave (ex: coinfecção por HIV com contagem de linfócitos T-CD4 < 100 células/mm³), existe o risco de reativação de uma infecção latente (crônica). Nesse cenário, os bradicistos contidos nos cistos teciduais podem se reconverter em taquizoítos, causando doença disseminada na mãe e podendo levar à transmissão congênita.
Portanto, gestantes HIV-positivas com sorologia IgG reagente para toxoplasmose e CD4 < 100 devem receber profilaxia primária para toxoplasmose (geralmente com Sulfametoxazol-Trimetoprima), que também serve como profilaxia para pneumonia por Pneumocystis jirovecii.
