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Torção Ovariana

A torção ovariana é uma emergência ginecológica que constitui um tópico de alta relevância para as provas de residência, incluindo o ENARE. O diagnóstico rápido e a intervenção cirúrgica imediata são cruciais para a preservação da função ovariana e da fertilidade da paciente.

Introdução & Epidemiologia

Definição

A torção ovariana é definida como a rotação parcial ou completa do ovário sobre seus ligamentos de suporte, o que resulta na interrupção de seu suprimento sanguíneo. Os principais ligamentos envolvidos são o ligamento infundibulopélvico (ou ligamento suspensor do ovário), que contém a artéria e a veia ovarianas, e o ligamento útero-ovariano. A torção pode envolver apenas o ovário ou, mais comumente, o ovário e a tuba uterina (torção anexial).

Epidemiologia e Fatores de Risco

A torção ovariana pode ocorrer em qualquer idade, desde o período neonatal até a pós-menopausa, mas sua incidência é maior em mulheres em idade reprodutiva (entre 20 e 40 anos). A presença de uma massa ovariana é o principal fator de risco, estando presente em 50-80% dos casos.

  • Massas Ovarianas: O risco de torção aumenta significativamente com massas maiores que 5 cm. O peso e a mobilidade aumentados do ovário criam um ponto de pivô para a rotação.
    • Cistos Benignos: São a causa mais comum. Teratomas císticos maduros (cistos dermoides) são particularmente propensos à torção devido à sua consistência heterogênea e tendência a "flutuar" na pelve. Cistos de corpo lúteo, especialmente durante a gravidez, também são um fator de risco importante.
    • Neoplasias Malignas: São uma causa menos comum de torção (cerca de 2% dos casos), pois as aderências inflamatórias e neoplásicas tendem a fixar o ovário, impedindo a rotação.
  • Gravidez: A incidência é maior no primeiro trimestre, devido à presença do corpo lúteo gravídico, e entre 10 e 17 semanas de gestação, quando o útero em crescimento eleva os anexos para fora da pelve, mas ainda não é grande o suficiente para limitar sua mobilidade.
  • Tecnologias de Reprodução Assistida (TRA): A hiperestimulação ovariana controlada pode levar à formação de múltiplos cistos e ovários significativamente aumentados (síndrome de hiperestimulação ovariana), elevando drasticamente o risco de torção.
  • Ligamentos Ovarianos Longos: Algumas mulheres podem ter uma predisposição anatômica congênita.
  • Idade Pediátrica: Em crianças e adolescentes, a maior mobilidade dos anexos devido a ligamentos mais longos em proporção ao útero aumenta o risco, mesmo na ausência de massas grandes.

Fisiopatologia

O evento central na torção ovariana é a rotação do pedículo vascular. A torção do ligamento infundibulopélvico e do ligamento útero-ovariano leva a uma sequência de eventos vasculares que, se não revertidos, culminam em necrose tecidual.

  1. Obstrução Venosa e Linfática: As veias e os vasos linfáticos, por terem paredes finas e baixa pressão, são os primeiros a serem comprimidos. A obstrução da drenagem venosa e linfática leva a um rápido ingurgitamento vascular e congestão.
  2. Edema Ovariano: A congestão e o aumento da pressão hidrostática causam extravasamento de fluido para o estroma ovariano, resultando em edema maciço. O ovário torna-se aumentado, pesado e de coloração violácea.
  3. Comprometimento Arterial: O edema progressivo e a torção contínua acabam por comprimir as artérias, que possuem paredes mais espessas e maior pressão. A interrupção do fluxo arterial leva à isquemia.
  4. Necrose Hemorrágica e Infarto: A isquemia prolongada resulta em infarto hemorrágico e necrose do tecido ovariano. Neste ponto, a perda do ovário é iminente.

Raciocínio Clínico

Por que a dor da torção ovariana é tão intensa e de início súbito? A dor é primariamente isquêmica, semelhante à dor de um infarto do miocárdio ou torção testicular. A distensão da cápsula ovariana pelo edema maciço também contribui significativamente para a dor visceral severa. A associação com náuseas e vômitos é uma resposta reflexa vagal à dor intensa de origem pélvica/abdominal.

Apresentação Clínica e Exame Físico

Quadro Clínico Clássico

A apresentação clássica é a de uma paciente com dor pélvica de início súbito, intensa, aguda e unilateral. A dor é frequentemente descrita como em cólica, pontada ou lancinante. Pode haver irradiação para o flanco, dorso ou coxa ipsilateral. É fundamental notar que a dor pode ser intermitente em casos de torção e destorção espontânea, o que pode confundir o diagnóstico.

  • Sintomas Associados: Náuseas e vômitos estão presentes em cerca de 70% das pacientes, sendo uma resposta neurogênica à dor intensa.
  • Febre Baixa: Pode ocorrer devido à necrose tecidual e liberação de citocinas inflamatórias, mas febre alta sugere um diagnóstico diferencial como abscesso tubo-ovariano.

Exame Físico

  • Sinais Vitais: Geralmente estáveis, mas taquicardia pode estar presente devido à dor e ansiedade.
  • Exame Abdominal: Dor à palpação profunda em fossa ilíaca ou quadrante inferior do abdome, unilateralmente. Sinais de irritação peritoneal (defesa e descompressão brusca positiva) podem estar presentes se houver necrose avançada ou hemorragia.
  • Exame Pélvico (Toque Vaginal): O achado mais comum é dor unilateral e acentuada à mobilização do colo uterino e à palpação do anexo acometido (conhecido como "dor anexial"). Uma massa anexial palpável pode ser identificada em 50-70% dos casos.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode descrever uma paciente com episódios recorrentes de dor pélvica intensa que se resolvem espontaneamente, seguidos por um episódio persistente. Isso sugere torção-destorção intermitente. Outra armadilha é a presença de fluxo sanguíneo normal no Doppler. Lembre-se: a presença de fluxo arterial no Doppler NÃO exclui o diagnóstico de torção ovariana, especialmente em casos iniciais ou intermitentes. O diagnóstico é primariamente clínico-cirúrgico, com a ultrassonografia servindo como principal ferramenta de apoio.

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico de torção ovariana é suspeitado clinicamente e, na maioria das vezes, confirmado por imagem. No entanto, o diagnóstico definitivo é intraoperatório.

Ultrassonografia Pélvica com Doppler

A ultrassonografia transvaginal com Doppler colorido é o método de imagem de escolha.

Achados Ultrassonográficos Sugestivos:
  • Ovário Aumentado e Edemaciado: Geralmente > 4 cm ou assimetricamente maior que o ovário contralateral. O estroma se torna hipoecoico devido ao edema.
  • Folículos Ovarianos Deslocados Perifericamente: O edema do estroma central empurra os folículos para a periferia, criando um aspecto conhecido como "sinal do colar de pérolas".
  • Posição Anormal do Ovário: O ovário torcido pode ser encontrado em uma posição mais medial ou superior, frequentemente na linha média, anterior ou posterior ao útero.
  • Líquido Livre na Pelve: Um achado comum, mas inespecífico.
  • Sinal do Redemoinho (Whirlpool Sign): A visualização do pedículo vascular torcido é um sinal patognomônico, embora nem sempre seja fácil de identificar.
Achados ao Doppler:
  • Fluxo Sanguíneo Ausente: A ausência de fluxo venoso e/ou arterial no ovário é altamente específica para torção.
  • Fluxo Sanguíneo Presente: Como mencionado, a presença de fluxo não exclui o diagnóstico. Isso pode ocorrer devido a uma torção incompleta, intermitente ou à dupla vascularização do ovário (artéria ovariana e ramo ovariano da artéria uterina). O fluxo venoso é tipicamente o primeiro a ser perdido.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024 - Q61)

As questões do ENARE exigem a capacidade de integrar o quadro clínico com os achados de imagem. A questão típica apresentará uma paciente com dor pélvica aguda, náuseas e vômitos. A imagem de ultrassom descrita mostrará um ovário aumentado de volume, com estroma edemaciado e ausência de fluxo ao estudo Doppler. A combinação desses achados firma o diagnóstico presuntivo de torção ovariana e indica a necessidade de intervenção cirúrgica imediata.

Diagnóstico Diferencial

A dor pélvica aguda tem um vasto diagnóstico diferencial. A tabela abaixo resume os principais.

Condição Características Clínicas Achados de Imagem/Exames
Torção Ovariana Dor súbita, intensa, unilateral, com náuseas/vômitos. Pode ser intermitente. USG: Ovário aumentado, edema estromal, folículos periféricos, ausência/redução de fluxo ao Doppler.
Gravidez Ectópica Rota Dor, sangramento vaginal, amenorreia. Sinais de choque hipovolêmico se houver ruptura. β-hCG positivo. USG: Massa anexial complexa, ausência de gestação intrauterina, líquido livre (sangue).
Cisto Ovariano Roto/Hemorrágico Dor súbita, geralmente após esforço físico ou relação sexual. Menos náuseas/vômitos que na torção. USG: Cisto com conteúdo heterogêneo (debris, "teia de aranha"), líquido livre na pelve. Fluxo ovariano normal.
Apendicite Aguda Dor periumbilical que migra para a fossa ilíaca direita. Anorexia, febre, náuseas. Leucocitose com desvio. USG/TC: Apêndice espessado, não compressível, com diâmetro > 6 mm, gordura periapendicular densificada.
Doença Inflamatória Pélvica (DIP) / Abscesso Tubo-Ovariano (ATO) Dor pélvica bilateral, febre, corrimento vaginal purulento, dispareunia. USG: Tubas uterinas espessadas e cheias de líquido (hidro/piossalpinge), massa anexial complexa multiloculada (ATO).

Tratamento e Manejo

O tratamento da torção ovariana é uma emergência cirúrgica. O objetivo é a destorção do ovário para restaurar o fluxo sanguíneo e preservar a função ovariana.

Abordagem Cirúrgica

A laparoscopia é a via de acesso preferencial, pois é minimamente invasiva, permite excelente visualização da pelve, resulta em menor dor pós-operatória e recuperação mais rápida. A laparotomia é reservada para casos de instabilidade hemodinâmica, massas muito volumosas ou suspeita de malignidade.

Passos do Procedimento:
  1. Inspeção e Diagnóstico: A cavidade pélvica é inspecionada. O diagnóstico é confirmado pela visualização de um ovário aumentado, edemaciado e de coloração escura/violácea, com seu pedículo torcido.
  2. Destorção: O ovário é cuidadosamente destorcido no sentido anti-horário ou horário, dependendo da direção da torção.
  3. Avaliação da Viabilidade Ovariana: Após a destorção, o ovário é observado por vários minutos. Sinais de viabilidade incluem:
    • Retorno da coloração rosada.
    • Resolução do edema.
    • Visualização de pulsações arteriais no pedículo.
    • Sangramento em "lençol" na superfície ovariana após pequena incisão (teste de "punctura").

    Raciocínio Clínico

    A aparência macroscópica do ovário (mesmo que pareça "preto" ou necrótico) não é um preditor confiável de sua viabilidade funcional. A maioria dos ovários, mesmo com aparência isquêmica, recupera a função se a destorção for realizada a tempo. Portanto, a conduta atual é conservadora, favorecendo a preservação do ovário, especialmente em pacientes jovens e com desejo reprodutivo.

  4. Procedimentos Adicionais:
    • Cistectomia: Se uma massa benigna (como um cisto dermoide) for a causa da torção, ela deve ser removida para prevenir a recorrência.
    • Ooforectomia (ou Salpingo-ooforectomia): A remoção do ovário é indicada apenas em situações claras de necrose irreversível, suspeita de malignidade ou em mulheres na pós-menopausa sem desejo de preservação ovariana.
    • Ooforopexia: A fixação cirúrgica do ovário à parede pélvica lateral ou ao ligamento útero-ovariano é um procedimento controverso, mas pode ser considerado em casos de torção recorrente ou em ovários com hipermobilidade.

Complicações e Prognóstico

O prognóstico depende diretamente do tempo decorrido entre o início dos sintomas e a intervenção cirúrgica. A frase "tempo é ovário" é análoga a "tempo é cérebro" no AVC.

  • Necrose Ovariana: É a principal complicação, resultando na perda da função endócrina e reprodutiva do ovário afetado. O risco aumenta significativamente após 36-48 horas de isquemia.
  • Infecção e Abscesso: O tecido necrótico é um meio de cultura ideal para bactérias, podendo levar a um abscesso pélvico.
  • Hemorragia: Pode ocorrer a partir do ovário isquêmico e friável.
  • Peritonite: A necrose pode levar à perfuração e extravasamento de conteúdo para a cavidade peritoneal.
  • Infertilidade: A perda de um ovário pode reduzir a reserva ovariana, embora a maioria das mulheres com um ovário contralateral saudável mantenha a fertilidade normal.

Com diagnóstico e tratamento precoces (idealmente em menos de 8 horas), a taxa de preservação ovariana é superior a 90%.

Populações Especiais

Crianças e Adolescentes

A torção ovariana é uma causa importante de dor abdominal aguda nesta faixa etária. Devido à maior complacência da parede abdominal e aos ligamentos mais longos, a torção pode ocorrer mesmo com massas menores ou sem massas. A causa mais comum é o teratoma cístico maduro. A preservação da fertilidade é a prioridade máxima, tornando a abordagem conservadora (destorção e cistectomia) a regra.

Gestantes

A torção ovariana é a quinta causa mais comum de abdome agudo na gravidez. Ocorre mais frequentemente no primeiro trimestre (associada a cistos de corpo lúteo) e no início do segundo trimestre. O diagnóstico pode ser desafiador, pois o útero gravídico dificulta o exame físico e a ultrassonografia. A laparoscopia é segura e eficaz durante a gestação, especialmente no primeiro e segundo trimestres. O manejo cirúrgico é essencial para evitar complicações maternas e fetais, como o trabalho de parto prematuro induzido pela dor e inflamação.

Mulheres na Pós-Menopausa

Embora rara, a torção ovariana na pós-menopausa deve levantar alta suspeita de malignidade. O ovário atrófico normal não costuma torcer. A presença de uma massa anexial causando torção nesta população tem uma taxa de malignidade significativamente maior. Portanto, a salpingo-ooforectomia (remoção do anexo) é geralmente o tratamento de escolha, com análise por congelação intraoperatória para guiar a necessidade de estadiamento cirúrgico oncológico.

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