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Síndrome HELLP

A Síndrome HELLP é uma das complicações mais temidas da gestação, representando uma forma grave de pré-eclâmpsia com alta morbimortalidade materna e perinatal. Seu reconhecimento rápido e manejo adequado são cruciais e, por isso, é um tema de extrema relevância nas provas de residência, incluindo o ENARE.

Introdução & Epidemiologia

A Síndrome HELLP é um acrônimo que descreve suas características laboratoriais fundamentais: Hemolysis (Hemólise), Elevated Liver enzymes (Elevação de Enzimas Hepáticas) e Low Platelets (Plaquetopenia). É considerada uma variante grave da pré-eclâmpsia ou uma complicação desta, embora alguns autores a considerem uma entidade distinta dentro do espectro das doenças hipertensivas da gestação.

A incidência da Síndrome HELLP é de aproximadamente 0,5% a 0,9% de todas as gestações. No entanto, sua associação com a pré-eclâmpsia grave é muito mais forte: ocorre em 10% a 20% das pacientes com pré-eclâmpsia grave ou eclâmpsia. A maioria dos casos (cerca de 70%) ocorre no período pré-parto, tipicamente entre a 27ª e a 37ª semana de gestação. Contudo, é fundamental saber que 30% dos casos se manifestam no puerpério, geralmente nas primeiras 48 horas após o parto, o que representa um desafio diagnóstico significativo.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da Síndrome HELLP é complexa e não totalmente elucidada, mas o mecanismo central é uma lesão endotelial sistêmica e generalizada, que leva a uma anemia hemolítica microangiopática. Acredita-se que a placentação anormal, característica da pré-eclâmpsia, libere fatores antiangiogênicos na circulação materna, desencadeando uma cascata de eventos inflamatórios e disfunção endotelial.

A partir dessa lesão endotelial, os três componentes da síndrome se desenvolvem:

  • Hemólise (H): A lesão nas células endoteliais dos pequenos vasos leva à deposição de fibrina e à formação de microtrombos. As hemácias, ao passarem por esses vasos estreitados e irregulares em alta velocidade, sofrem estresse mecânico e se fragmentam. Esse processo de destruição eritrocitária intravascular é conhecido como anemia hemolítica microangiopática. A evidência laboratorial dessa hemólise inclui a presença de esquizócitos (fragmentos de hemácias) no esfregaço de sangue periférico, aumento da desidrogenase lática (LDH) e da bilirrubina indireta, e redução da haptoglobina.
  • Elevação de Enzimas Hepáticas (EL): A disfunção endotelial afeta preferencialmente a microcirculação hepática. A deposição de fibrina nos sinusoides hepáticos causa obstrução do fluxo sanguíneo, levando à necrose periportal e hemorragia intraparenquimatosa. Essa lesão hepatocelular resulta na liberação de enzimas hepáticas, como a aspartato aminotransferase (AST) e a alanina aminotransferase (ALT), para a corrente sanguínea, causando uma elevação acentuada de seus níveis séricos.
  • Plaquetopenia (LP): A lesão endotelial expõe o colágeno subendotelial, o que promove a adesão e agregação plaquetária nos locais de dano vascular. Ocorre um consumo acelerado de plaquetas na tentativa de reparar o endotélio lesado e na formação de microtrombos. Essa trombocitopenia de consumo é o que define o componente "LP" da síndrome.

Raciocínio Clínico

A dor em hipocôndrio direito ou epigástrica, sintoma cardinal da HELLP, é uma consequência direta da fisiopatologia hepática. A necrose e a hemorragia causam distensão da cápsula de Glisson, uma membrana fibrosa que envolve o fígado e é ricamente inervada, gerando dor intensa. Uma dor súbita e excruciante pode sinalizar uma complicação gravíssima: o hematoma subcapsular ou a ruptura hepática.

Apresentação Clínica & Exame Físico

A apresentação clínica da Síndrome HELLP pode ser insidiosa e mimetizar outras condições, tornando o diagnóstico um desafio. A paciente classicamente se queixa de mal-estar geral, náuseas, vômitos e, o sintoma mais característico, dor em hipocôndrio direito ou epigástrica. Essa dor é frequentemente descrita como em "punhalada" ou "queimação" e pode ser o único sintoma proeminente.

Outros sintomas e sinais incluem:

  • Cefaleia e distúrbios visuais (escotomas, fotofobia), que são sintomas de pré-eclâmpsia grave.
  • Edema generalizado e ganho de peso súbito.
  • Sinais de sangramento, como gengivorragia ou petéquias, devido à plaquetopenia.

Ao exame físico, os achados podem incluir:

  • Hipersensibilidade à palpação do quadrante superior direito do abdome.
  • Hipertensão arterial (presente na maioria dos casos, mas pode ser leve ou até ausente em 15-20% das pacientes).
  • Proteinúria (também pode estar ausente em uma minoria dos casos).
  • Icterícia (sinal de hemólise ou disfunção hepática grave).
  • Edema de membros inferiores e anasarca.

Armadilhas do ENARE

A principal armadilha é a "HELLP atípica". Cerca de 15-20% das pacientes com Síndrome HELLP não apresentam hipertensão ou proteinúria no momento do diagnóstico. Uma questão de prova pode apresentar uma gestante no terceiro trimestre com dor epigástrica e náuseas, mas com pressão arterial normal. A ausência de hipertensão não exclui HELLP. O examinador espera que você solicite os exames laboratoriais (hemograma com plaquetas, esfregaço de sangue periférico, enzimas hepáticas e LDH) para confirmar ou afastar a suspeita.

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico da Síndrome HELLP é eminentemente laboratorial, baseado na tríade que define a condição. A suspeita clínica deve ser alta em qualquer gestante ou puérpera com os sintomas descritos, especialmente na presença de pré-eclâmpsia.

Exames Laboratoriais Essenciais:

  • Hemograma completo com contagem de plaquetas: Para avaliar a plaquetopenia (Low Platelets).
  • Esfregaço de sangue periférico: Para identificar esquizócitos, confirmando a natureza microangiopática da hemólise.
  • Desidrogenase lática (LDH): Marcador sensível de hemólise. Níveis > 600 U/L são altamente sugestivos.
  • Bilirrubinas (total e frações): A bilirrubina indireta estará elevada devido à hemólise.
  • Aspartato aminotransferase (AST) e Alanina aminotransferase (ALT): Para avaliar a lesão hepatocelular (Elevated Liver enzymes). AST geralmente é mais elevada que ALT.
  • Função renal (Ureia e Creatinina) e Eletrólitos.
  • Coagulograma (TAP, PTTa, Fibrinogênio): Para avaliar a possibilidade de Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD).

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE_2024_Q74)

O conhecimento da tríade que define a Síndrome HELLP é fundamental e diretamente cobrado nas provas. A questão ENARE 2024 Q74 exigia o reconhecimento de que a síndrome é caracterizada por hemólise, elevação de enzimas hepáticas e plaquetopenia. Dominar os critérios laboratoriais que definem cada um desses componentes é essencial para o diagnóstico correto.

Critérios Diagnósticos e Classificação

Existem dois sistemas de classificação principais, Tennessee e Mississippi, que ajudam a estratificar a gravidade da doença com base na contagem de plaquetas.

Tabela 1: Critérios Diagnósticos para Síndrome HELLP
Critério Achado Laboratorial (Critérios de Tennessee)
Hemólise (H) LDH > 600 U/L E/OU Esfregaço de sangue periférico com esquizócitos.
Elevação de Enzimas Hepáticas (EL) AST ≥ 70 U/L.
Plaquetopenia (LP) Plaquetas < 100.000/µL.

Tabela 2: Classificação de Mississippi (Gravidade)
Classe Contagem de Plaquetas
Classe I (Grave) ≤ 50.000/µL
Classe II (Moderada) > 50.000 e ≤ 100.000/µL
Classe III (Leve) > 100.000 e ≤ 150.000/µL (com outros critérios de HELLP presentes)

Tratamento & Manejo

A Síndrome HELLP é uma emergência obstétrica. O manejo visa a estabilização materna e a interrupção da gestação, que é o único tratamento definitivo. A paciente deve ser internada em unidade de terapia intensiva ou centro obstétrico com capacidade para cuidados de alta complexidade.

1. Estabilização Materna:

  • Prevenção de Convulsões (Eclâmpsia): O Sulfato de Magnésio (MgSO₄) é a droga de escolha e deve ser iniciado imediatamente em todas as pacientes com HELLP, independentemente dos níveis pressóricos.
    • Esquema de Zuspan: Dose de ataque de 4-6g IV em 20 minutos, seguida de uma dose de manutenção de 1-2g/hora em bomba de infusão contínua.
    • Monitoramento: É crucial monitorar sinais de toxicidade pelo magnésio (perda do reflexo patelar, depressão respiratória, oligúria). O antídoto é o Gluconato de Cálcio.
  • Controle da Hipertensão Grave: Se a Pressão Arterial Sistólica (PAS) ≥ 160 mmHg ou a Pressão Arterial Diastólica (PAD) ≥ 110 mmHg, o tratamento anti-hipertensivo intravenoso é mandatório para prevenir AVC.
    • Hidralazina: 5 mg IV, repetindo a cada 20 minutos se necessário.
    • Labetalol: 20 mg IV, com doses crescentes a cada 10 minutos se necessário.
    • Nifedipina oral: 10-20 mg, pode ser repetida em 30 minutos.
  • Manejo da Coagulopatia: Se plaquetas < 50.000/µL e houver sangramento ativo ou necessidade de parto cesáreo, a transfusão de plaquetas está indicada. Em caso de CIVD, a transfusão de plasma fresco congelado e crioprecipitado pode ser necessária.

2. Interrupção da Gestação:

A resolução da gravidez é a cura. A decisão sobre o momento e a via de parto depende da idade gestacional e da estabilidade materno-fetal.

  • Idade Gestacional ≥ 34 semanas: Interrupção imediata após estabilização materna.
  • Idade Gestacional < 34 semanas: A conduta é mais controversa. Se houver instabilidade materna ou sofrimento fetal agudo, a interrupção é imediata. Se a paciente estiver estável, pode-se administrar um ciclo de corticosteroides (betametasona ou dexametasona) para maturação pulmonar fetal e realizar o parto 24-48 horas depois.

Uso de Corticosteroides:

O uso de altas doses de dexametasona ("Protocolo de Mississippi") para acelerar a melhora dos parâmetros laboratoriais maternos (principalmente plaquetas) é controverso. Embora possa levar a uma melhora laboratorial transitória, estudos robustos não demonstraram melhora nos desfechos maternos graves (mortalidade, eclampsia, ruptura hepática). Seu uso principal permanece para a maturação pulmonar fetal em gestações pré-termo.

Complicações & Prognóstico

A Síndrome HELLP está associada a um risco elevado de morbidade grave e mortalidade. O prognóstico depende da rapidez do diagnóstico e da instituição do tratamento adequado.

Complicações Maternas:

  • Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD): Ocorre em até 20% dos casos.
  • Descolamento Prematuro de Placenta (DPP): Complicação grave que aumenta o risco de hemorragia e sofrimento fetal.
  • Insuficiência Renal Aguda (IRA): Devido à lesão microvascular renal.
  • Edema Agudo de Pulmão: Por sobrecarga hídrica e aumento da permeabilidade capilar.
  • Hematoma Subcapsular Hepático e Ruptura Hepática: A complicação mais catastrófica, com mortalidade materna superior a 50%. Suspeitar em caso de dor súbita e intensa em hipocôndrio direito, hipotensão e choque. O diagnóstico é feito por ultrassonografia ou tomografia computadorizada.
  • Acidente Vascular Cerebral (AVC) hemorrágico.

Prognóstico Perinatal:

A mortalidade e morbidade perinatal também são elevadas, principalmente devido à prematuridade iatrogênica, insuficiência placentária e descolamento de placenta. As taxas de mortalidade perinatal variam de 7% a 20%.

Populações Especiais

HELLP Atípica (sem Hipertensão ou Proteinúria)

Como mencionado, uma minoria significativa de pacientes (15-20%) pode não apresentar os critérios clássicos de pré-eclâmpsia. Essa forma "normotensiva" ou "sem proteinúria" da HELLP é particularmente perigosa por retardar o diagnóstico. O limiar para solicitar exames laboratoriais deve ser baixo em qualquer gestante com mal-estar e dor epigástrica, mesmo com pressão arterial normal.

Síndrome HELLP Pós-Parto

Cerca de 30% dos casos de HELLP ocorrem no puerpério, tipicamente nas primeiras 48-72 horas, mas podendo ocorrer até 7 dias após o parto. A paciente pode ter tido uma gestação sem intercorrências e desenvolver a síndrome após o nascimento. O manejo é de suporte, incluindo sulfato de magnésio, controle pressórico e monitoramento intensivo, pois a "fonte" do problema (a placenta) já foi removida. A melhora clínica e laboratorial costuma ocorrer em 3 a 5 dias. A persistência ou piora dos sintomas deve levantar a suspeita de outras microangiopatias trombóticas, como a Púrpura Trombocitopênica Trombótica (PTT) ou a Síndrome Hemolítico-Urêmica (SHU).

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