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Síndrome de Sheehan

A Síndrome de Sheehan é uma condição endocrinológica rara, mas de grande importância clínica e frequente em provas de residência, que se caracteriza pela necrose da glândula pituitária (hipófise) decorrente de uma hemorragia obstétrica grave. Compreender sua fisiopatologia, apresentação clínica e manejo é fundamental para o diagnóstico e tratamento adequados, evitando complicações potencialmente fatais.

Introdução e Epidemiologia

A Síndrome de Sheehan é definida como pan-hipopituitarismo (deficiência de múltiplos hormônios hipofisários) secundário à necrose isquêmica da glândula pituitária, desencadeada por hipotensão severa ou choque hipovolêmico durante ou após o parto. A causa primária é quase invariavelmente uma hemorragia pós-parto (HPP) maciça.

A epidemiologia da síndrome reflete diretamente a qualidade do cuidado obstétrico. Em países desenvolvidos, com manejo ativo do terceiro estágio do trabalho de parto e acesso rápido a transfusões sanguíneas e cuidados intensivos, a Síndrome de Sheehan tornou-se extremamente rara. No entanto, em países em desenvolvimento, onde a hemorragia pós-parto continua sendo uma das principais causas de mortalidade materna, a incidência é significativamente maior. A prevalência exata é difícil de determinar devido ao subdiagnóstico, pois os sintomas podem ser sutis e se desenvolver ao longo de muitos anos.

Raciocínio Clínico

A chave para suspeitar da Síndrome de Sheehan é sempre a história obstétrica. Diante de uma mulher com sintomas de insuficiência adrenal, hipotireoidismo ou hipogonadismo (amenorreia), a primeira pergunta a ser feita é sobre suas gestações. Uma história de parto complicado com sangramento intenso, necessidade de transfusão, histerectomia de emergência ou internação em UTI no pós-parto é o gatilho para a investigação.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da Síndrome de Sheehan é uma consequência direta de uma "tempestade perfeita" anatômica e fisiológica que ocorre na hipófise durante a gestação.

  1. Hipertrofia e Hiperplasia Fisiológica: Durante a gravidez, a hipófise anterior, sob estímulo estrogênico, aumenta significativamente de tamanho, podendo até dobrar seu volume. Esse crescimento ocorre principalmente devido à hiperplasia e hipertrofia das células lactotróficas, responsáveis pela produção de prolactina.
  2. Vascularização Limítrofe: O suprimento sanguíneo da hipófise anterior vem do sistema porta-hipofisário, que é um sistema de baixa pressão. Crucialmente, o aumento do volume da glândula não é acompanhado por um aumento proporcional no seu suprimento sanguíneo. Isso torna a hipófise gravídica particularmente vulnerável a qualquer redução no fluxo sanguíneo.
  3. O Evento Isquêmico: Uma hemorragia pós-parto maciça leva a um choque hipovolêmico e hipotensão sistêmica grave. Essa queda abrupta na pressão arterial causa um colapso do sistema porta-hipofisário de baixa pressão. O resultado é um vasoespasmo e trombose das artérias hipofisárias, levando à isquemia e, subsequentemente, à necrose do tecido da hipófise anterior.

A hipófise posterior (neuro-hipófise) geralmente é poupada, pois possui um suprimento sanguíneo arterial direto da artéria hipofisária inferior, que é menos vulnerável à hipotensão. Por isso, o diabetes insipidus (deficiência de ADH) é raro na Síndrome de Sheehan.

Armadilhas do ENARE: A Associação Causal

As questões do ENARE frequentemente testam a capacidade do candidato de conectar a Síndrome de Sheehan a uma complicação obstétrica específica. A questão ENARE 2024 (Q73) citou o descolamento prematuro de placenta (DPP) como causa. Lembre-se que qualquer causa de hemorragia pós-parto maciça pode ser o gatilho, incluindo atonia uterina (a causa mais comum), lacerações de trajeto, retenção de restos placentários e acretismo placentário. A associação com DPP é particularmente forte devido à coagulopatia de consumo (CIVD) que frequentemente a acompanha, exacerbando o sangramento.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A apresentação clínica da Síndrome de Sheehan é notoriamente variável, podendo se manifestar de forma aguda, logo após o parto, ou, mais comumente, de forma crônica e insidiosa ao longo de meses ou anos.

Apresentação Aguda (Rara)

A forma aguda é rara e ocorre em casos de necrose hipofisária maciça. Os sintomas podem ser dramáticos e incluem:

  • Cefaleia intensa
  • Distúrbios visuais (por compressão do quiasma óptico pelo edema da glândula)
  • Alteração do nível de consciência, podendo evoluir para coma
  • Hipotensão refratária (devido à insuficiência adrenal aguda)
  • Hipoglicemia severa
  • Falha em iniciar a lactação (agalactia)

Apresentação Crônica (Clássica)

Esta é a forma mais comum. A destruição do tecido hipofisário leva a uma perda progressiva da função hormonal. A ordem em que as deficiências se manifestam clinicamente geralmente segue a vulnerabilidade das células hipofisárias à isquemia.

Hormônio Deficiente Sinal/Sintoma Precoce Manifestações Crônicas
Prolactina (PRL) Agalactia ou falha na lactação. Este é frequentemente o primeiro e mais clássico sinal. -
Gonadotrofinas (LH/FSH) Amenorreia secundária ou oligomenorreia que persiste após o parto. Infertilidade, diminuição da libido, dispareunia, perda de pelos pubianos e axilares, atrofia vaginal.
Hormônio Tireoestimulante (TSH) Sintomas podem demorar a aparecer. Fadiga e letargia podem ser atribuídas ao pós-parto. Sintomas de hipotireoidismo secundário: fadiga crônica, intolerância ao frio, ganho de peso, pele seca, constipação, bradicardia, raciocínio lento.
Hormônio Adrenocorticotrófico (ACTH) Fraqueza, tontura postural. Os sintomas podem ser mascarados pelo hipotireoidismo coexistente. Sintomas de insuficiência adrenal secundária: fraqueza extrema, fadiga, hipotensão (especialmente postural), náuseas, vômitos, perda de peso, hipoglicemia. Ausência de hiperpigmentação (pois o ACTH e o MSH estão baixos). Palidez cutânea é característica ("palidez de alabastro").
Hormônio do Crescimento (GH) Geralmente assintomático em adultos no início. Qualidade de vida diminuída, aumento da massa gorda, diminuição da massa magra e da densidade óssea, perfil lipídico desfavorável.

Ao exame físico, a paciente pode apresentar-se com palidez (devido à anemia e à falta de MSH), pele fina e enrugada, perda de pelos axilares e pubianos, bradicardia e hipotensão postural.

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico é uma combinação da história clínica sugestiva com a confirmação laboratorial e, por vezes, de imagem.

  1. História Clínica: A suspeita diagnóstica é o passo mais importante. Investigar ativamente a história de hemorragia pós-parto severa, seguida de agalactia e amenorreia.
  2. Testes Laboratoriais Basais: O objetivo é documentar a deficiência dos hormônios hipofisários e dos hormônios de seus órgãos-alvo.
    • Eixo Tireoidiano: TSH baixo ou inapropriadamente normal na presença de T4 livre baixo.
    • Eixo Adrenal: Cortisol sérico basal (coletado às 8h da manhã) baixo (< 3-5 µg/dL) com ACTH baixo ou normal. Valores intermediários de cortisol (5-18 µg/dL) exigem testes de estímulo.
    • Eixo Gonadal: LH, FSH e Estradiol baixos.
    • Prolactina: Níveis baixos.
    • Outros: Pode haver hiponatremia (devido à insuficiência adrenal e/ou hipotireoidismo) e hipoglicemia.
  3. Testes de Estímulo (Provocativos): São o padrão-ouro para confirmar as deficiências, especialmente a adrenal e a de GH.
    • Teste de Estímulo com ACTH Sintético (Cosintropina/Synacthen): Avalia a reserva da glândula adrenal. Na insuficiência adrenal secundária (hipofisária) de longa data, a adrenal se atrofia por falta de estímulo, resultando em uma resposta subótima (falha em elevar o cortisol > 18-20 µg/dL).
    • Teste de Tolerância à Insulina (ITT): Considerado o padrão-ouro para avaliar os eixos adrenal e de GH. A hipoglicemia induzida deve estimular a liberação de ACTH/cortisol e GH. É contraindicado em pacientes com doença cardiovascular ou história de convulsões.
  4. Ressonância Magnética (RM) de Sela Túrcica:
    • Fase Aguda: Pode mostrar uma hipófise aumentada e edemaciada, com áreas de necrose que não realçam com contraste.
    • Fase Crônica: O achado clássico é a sela túrcica parcial ou totalmente vazia. Isso ocorre porque o tecido hipofisário necrótico é reabsorvido ao longo do tempo, e o espaço é preenchido por líquido cefalorraquidiano.

Armadilhas do ENARE

Uma paciente com hipotireoidismo e TSH baixo não tem hipotireoidismo primário. O TSH baixo indica uma causa central (secundária/hipofisária ou terciária/hipotalâmica). No contexto de uma história obstétrica de HPP, o diagnóstico de Síndrome de Sheehan é quase certo. Não confunda a ausência de hiperpigmentação da insuficiência adrenal secundária (Sheehan) com a hiperpigmentação clássica da Doença de Addison (insuficiência adrenal primária), onde o ACTH está elevado.

Tratamento e Manejo

O tratamento consiste na reposição hormonal vitalícia. A ordem e o monitoramento da terapia são cruciais.

Ordem de Reposição Hormonal

A regra de ouro no tratamento do pan-hipopituitarismo é: primeiro o glicocorticoide, depois o hormônio tireoidiano.

Raciocínio Clínico: Por que repor o Cortisol antes do T4?

A reposição de levotiroxina em um paciente com insuficiência adrenal não tratada pode ser fatal. O hormônio tireoidiano aumenta o metabolismo basal e acelera o clearance (depuração) do cortisol. Em um paciente que já tem uma reserva de cortisol criticamente baixa, isso pode precipitar uma crise adrenal aguda, com choque, hipoglicemia e morte. Portanto, a reposição de glicocorticoide deve ser sempre iniciada primeiro.

Esquema Terapêutico

  1. Insuficiência Adrenal (Deficiência de ACTH):
    • Droga: Hidrocortisona (15-25 mg/dia) ou Prednisona (2.5-5 mg/dia). A hidrocortisona é preferida por ter meia-vida mais curta, mimetizando melhor o ciclo circadiano do cortisol (dose maior pela manhã, menor à tarde).
    • Educação do Paciente: É vital instruir a paciente a dobrar ou triplicar a dose ("dose de estresse") durante doenças intercorrentes (febre, infecções), procedimentos cirúrgicos ou estresse físico significativo para prevenir a crise adrenal. A paciente deve portar um cartão ou pulseira de alerta médico.
  2. Hipotireoidismo (Deficiência de TSH):
    • Droga: Levotiroxina (dose média de 1.6 mcg/kg/dia, ajustada individualmente).
    • Monitoramento: O TSH é inútil para monitorar a terapia, pois sua produção está comprometida. O ajuste da dose é feito com base nos níveis de T4 livre, que devem ser mantidos na metade superior da faixa de normalidade.
  3. Hipogonadismo (Deficiência de LH/FSH):
    • Objetivo: Restaurar os ciclos menstruais (se a paciente não estiver na menopausa), prevenir a osteoporose e melhorar a qualidade de vida.
    • Terapia: Terapia de reposição com estrogênio e progesterona (contraceptivos orais combinados ou terapia hormonal transdérmica/oral).
  4. Deficiência de Hormônio do Crescimento (GH):
    • A reposição em adultos é controversa e reservada para pacientes com qualidade de vida significativamente prejudicada, anormalidades de composição corporal ou fatores de risco cardiovascular, após a reposição adequada dos outros eixos.

Complicações e Prognóstico

Com diagnóstico e tratamento adequados, o prognóstico é geralmente excelente, e as pacientes podem levar uma vida normal.

Crise Adrenal

É a complicação mais temida e potencialmente letal. Pode ser desencadeada por qualquer estresse fisiológico em uma paciente não diagnosticada ou inadequadamente tratada.

  • Apresentação: Hipotensão refratária a volume, choque, hipoglicemia, hiponatremia, febre, náuseas, vômitos e alteração do estado mental.
  • Manejo: É uma emergência médica. Requer administração imediata de hidrocortisona intravenosa (100 mg em bolus, seguido de 200 mg/24h em infusão contínua ou bolus intermitentes), junto com reposição volêmica agressiva com soro fisiológico e correção da hipoglicemia com glicose.

Outras Complicações

  • Infertilidade: É uma consequência direta da deficiência de gonadotrofinas.
  • Osteoporose: Devido ao hipogonadismo crônico não tratado.
  • Risco Cardiovascular Aumentado: Associado ao hipopituitarismo, especialmente à deficiência de GH.

Populações Especiais

Desejo de Fertilidade e Gestação Subsequente

Pacientes com Síndrome de Sheehan que desejam engravidar necessitam de tratamento especializado para indução da ovulação. Isso é feito com a administração de gonadotrofinas exógenas (hMG ou FSH recombinante seguido de hCG) para mimetizar o ciclo ovariano normal.

Uma vez que a gravidez é alcançada, o manejo requer uma equipe multidisciplinar (endocrinologista e obstetra). As doses de reposição hormonal, especialmente de levotiroxina e glicocorticoide, precisam ser ajustadas e monitoradas de perto durante toda a gestação para garantir o bem-estar materno e fetal.

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