Síndrome de Sheehan
A Síndrome de Sheehan é uma condição endocrinológica rara, mas de grande importância clínica e frequente em provas de residência, que se caracteriza pela necrose da glândula pituitária (hipófise) decorrente de uma hemorragia obstétrica grave. Compreender sua fisiopatologia, apresentação clínica e manejo é fundamental para o diagnóstico e tratamento adequados, evitando complicações potencialmente fatais.
Introdução e Epidemiologia
A Síndrome de Sheehan é definida como pan-hipopituitarismo (deficiência de múltiplos hormônios hipofisários) secundário à necrose isquêmica da glândula pituitária, desencadeada por hipotensão severa ou choque hipovolêmico durante ou após o parto. A causa primária é quase invariavelmente uma hemorragia pós-parto (HPP) maciça.
A epidemiologia da síndrome reflete diretamente a qualidade do cuidado obstétrico. Em países desenvolvidos, com manejo ativo do terceiro estágio do trabalho de parto e acesso rápido a transfusões sanguíneas e cuidados intensivos, a Síndrome de Sheehan tornou-se extremamente rara. No entanto, em países em desenvolvimento, onde a hemorragia pós-parto continua sendo uma das principais causas de mortalidade materna, a incidência é significativamente maior. A prevalência exata é difícil de determinar devido ao subdiagnóstico, pois os sintomas podem ser sutis e se desenvolver ao longo de muitos anos.
Raciocínio Clínico
A chave para suspeitar da Síndrome de Sheehan é sempre a história obstétrica. Diante de uma mulher com sintomas de insuficiência adrenal, hipotireoidismo ou hipogonadismo (amenorreia), a primeira pergunta a ser feita é sobre suas gestações. Uma história de parto complicado com sangramento intenso, necessidade de transfusão, histerectomia de emergência ou internação em UTI no pós-parto é o gatilho para a investigação.
Fisiopatologia
A fisiopatologia da Síndrome de Sheehan é uma consequência direta de uma "tempestade perfeita" anatômica e fisiológica que ocorre na hipófise durante a gestação.
- Hipertrofia e Hiperplasia Fisiológica: Durante a gravidez, a hipófise anterior, sob estímulo estrogênico, aumenta significativamente de tamanho, podendo até dobrar seu volume. Esse crescimento ocorre principalmente devido à hiperplasia e hipertrofia das células lactotróficas, responsáveis pela produção de prolactina.
- Vascularização Limítrofe: O suprimento sanguíneo da hipófise anterior vem do sistema porta-hipofisário, que é um sistema de baixa pressão. Crucialmente, o aumento do volume da glândula não é acompanhado por um aumento proporcional no seu suprimento sanguíneo. Isso torna a hipófise gravídica particularmente vulnerável a qualquer redução no fluxo sanguíneo.
- O Evento Isquêmico: Uma hemorragia pós-parto maciça leva a um choque hipovolêmico e hipotensão sistêmica grave. Essa queda abrupta na pressão arterial causa um colapso do sistema porta-hipofisário de baixa pressão. O resultado é um vasoespasmo e trombose das artérias hipofisárias, levando à isquemia e, subsequentemente, à necrose do tecido da hipófise anterior.
A hipófise posterior (neuro-hipófise) geralmente é poupada, pois possui um suprimento sanguíneo arterial direto da artéria hipofisária inferior, que é menos vulnerável à hipotensão. Por isso, o diabetes insipidus (deficiência de ADH) é raro na Síndrome de Sheehan.
Armadilhas do ENARE: A Associação Causal
As questões do ENARE frequentemente testam a capacidade do candidato de conectar a Síndrome de Sheehan a uma complicação obstétrica específica. A questão ENARE 2024 (Q73) citou o descolamento prematuro de placenta (DPP) como causa. Lembre-se que qualquer causa de hemorragia pós-parto maciça pode ser o gatilho, incluindo atonia uterina (a causa mais comum), lacerações de trajeto, retenção de restos placentários e acretismo placentário. A associação com DPP é particularmente forte devido à coagulopatia de consumo (CIVD) que frequentemente a acompanha, exacerbando o sangramento.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica da Síndrome de Sheehan é notoriamente variável, podendo se manifestar de forma aguda, logo após o parto, ou, mais comumente, de forma crônica e insidiosa ao longo de meses ou anos.
Apresentação Aguda (Rara)
A forma aguda é rara e ocorre em casos de necrose hipofisária maciça. Os sintomas podem ser dramáticos e incluem:
- Cefaleia intensa
- Distúrbios visuais (por compressão do quiasma óptico pelo edema da glândula)
- Alteração do nível de consciência, podendo evoluir para coma
- Hipotensão refratária (devido à insuficiência adrenal aguda)
- Hipoglicemia severa
- Falha em iniciar a lactação (agalactia)
Apresentação Crônica (Clássica)
Esta é a forma mais comum. A destruição do tecido hipofisário leva a uma perda progressiva da função hormonal. A ordem em que as deficiências se manifestam clinicamente geralmente segue a vulnerabilidade das células hipofisárias à isquemia.
| Hormônio Deficiente | Sinal/Sintoma Precoce | Manifestações Crônicas |
|---|---|---|
| Prolactina (PRL) | Agalactia ou falha na lactação. Este é frequentemente o primeiro e mais clássico sinal. | - |
| Gonadotrofinas (LH/FSH) | Amenorreia secundária ou oligomenorreia que persiste após o parto. | Infertilidade, diminuição da libido, dispareunia, perda de pelos pubianos e axilares, atrofia vaginal. |
| Hormônio Tireoestimulante (TSH) | Sintomas podem demorar a aparecer. Fadiga e letargia podem ser atribuídas ao pós-parto. | Sintomas de hipotireoidismo secundário: fadiga crônica, intolerância ao frio, ganho de peso, pele seca, constipação, bradicardia, raciocínio lento. |
| Hormônio Adrenocorticotrófico (ACTH) | Fraqueza, tontura postural. Os sintomas podem ser mascarados pelo hipotireoidismo coexistente. | Sintomas de insuficiência adrenal secundária: fraqueza extrema, fadiga, hipotensão (especialmente postural), náuseas, vômitos, perda de peso, hipoglicemia. Ausência de hiperpigmentação (pois o ACTH e o MSH estão baixos). Palidez cutânea é característica ("palidez de alabastro"). |
| Hormônio do Crescimento (GH) | Geralmente assintomático em adultos no início. | Qualidade de vida diminuída, aumento da massa gorda, diminuição da massa magra e da densidade óssea, perfil lipídico desfavorável. |
Ao exame físico, a paciente pode apresentar-se com palidez (devido à anemia e à falta de MSH), pele fina e enrugada, perda de pelos axilares e pubianos, bradicardia e hipotensão postural.
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico é uma combinação da história clínica sugestiva com a confirmação laboratorial e, por vezes, de imagem.
- História Clínica: A suspeita diagnóstica é o passo mais importante. Investigar ativamente a história de hemorragia pós-parto severa, seguida de agalactia e amenorreia.
- Testes Laboratoriais Basais: O objetivo é documentar a deficiência dos hormônios hipofisários e dos hormônios de seus órgãos-alvo.
- Eixo Tireoidiano: TSH baixo ou inapropriadamente normal na presença de T4 livre baixo.
- Eixo Adrenal: Cortisol sérico basal (coletado às 8h da manhã) baixo (< 3-5 µg/dL) com ACTH baixo ou normal. Valores intermediários de cortisol (5-18 µg/dL) exigem testes de estímulo.
- Eixo Gonadal: LH, FSH e Estradiol baixos.
- Prolactina: Níveis baixos.
- Outros: Pode haver hiponatremia (devido à insuficiência adrenal e/ou hipotireoidismo) e hipoglicemia.
- Testes de Estímulo (Provocativos): São o padrão-ouro para confirmar as deficiências, especialmente a adrenal e a de GH.
- Teste de Estímulo com ACTH Sintético (Cosintropina/Synacthen): Avalia a reserva da glândula adrenal. Na insuficiência adrenal secundária (hipofisária) de longa data, a adrenal se atrofia por falta de estímulo, resultando em uma resposta subótima (falha em elevar o cortisol > 18-20 µg/dL).
- Teste de Tolerância à Insulina (ITT): Considerado o padrão-ouro para avaliar os eixos adrenal e de GH. A hipoglicemia induzida deve estimular a liberação de ACTH/cortisol e GH. É contraindicado em pacientes com doença cardiovascular ou história de convulsões.
- Ressonância Magnética (RM) de Sela Túrcica:
- Fase Aguda: Pode mostrar uma hipófise aumentada e edemaciada, com áreas de necrose que não realçam com contraste.
- Fase Crônica: O achado clássico é a sela túrcica parcial ou totalmente vazia. Isso ocorre porque o tecido hipofisário necrótico é reabsorvido ao longo do tempo, e o espaço é preenchido por líquido cefalorraquidiano.
Armadilhas do ENARE
Uma paciente com hipotireoidismo e TSH baixo não tem hipotireoidismo primário. O TSH baixo indica uma causa central (secundária/hipofisária ou terciária/hipotalâmica). No contexto de uma história obstétrica de HPP, o diagnóstico de Síndrome de Sheehan é quase certo. Não confunda a ausência de hiperpigmentação da insuficiência adrenal secundária (Sheehan) com a hiperpigmentação clássica da Doença de Addison (insuficiência adrenal primária), onde o ACTH está elevado.
Tratamento e Manejo
O tratamento consiste na reposição hormonal vitalícia. A ordem e o monitoramento da terapia são cruciais.
Ordem de Reposição Hormonal
A regra de ouro no tratamento do pan-hipopituitarismo é: primeiro o glicocorticoide, depois o hormônio tireoidiano.
Raciocínio Clínico: Por que repor o Cortisol antes do T4?
A reposição de levotiroxina em um paciente com insuficiência adrenal não tratada pode ser fatal. O hormônio tireoidiano aumenta o metabolismo basal e acelera o clearance (depuração) do cortisol. Em um paciente que já tem uma reserva de cortisol criticamente baixa, isso pode precipitar uma crise adrenal aguda, com choque, hipoglicemia e morte. Portanto, a reposição de glicocorticoide deve ser sempre iniciada primeiro.
Esquema Terapêutico
- Insuficiência Adrenal (Deficiência de ACTH):
- Droga: Hidrocortisona (15-25 mg/dia) ou Prednisona (2.5-5 mg/dia). A hidrocortisona é preferida por ter meia-vida mais curta, mimetizando melhor o ciclo circadiano do cortisol (dose maior pela manhã, menor à tarde).
- Educação do Paciente: É vital instruir a paciente a dobrar ou triplicar a dose ("dose de estresse") durante doenças intercorrentes (febre, infecções), procedimentos cirúrgicos ou estresse físico significativo para prevenir a crise adrenal. A paciente deve portar um cartão ou pulseira de alerta médico.
- Hipotireoidismo (Deficiência de TSH):
- Droga: Levotiroxina (dose média de 1.6 mcg/kg/dia, ajustada individualmente).
- Monitoramento: O TSH é inútil para monitorar a terapia, pois sua produção está comprometida. O ajuste da dose é feito com base nos níveis de T4 livre, que devem ser mantidos na metade superior da faixa de normalidade.
- Hipogonadismo (Deficiência de LH/FSH):
- Objetivo: Restaurar os ciclos menstruais (se a paciente não estiver na menopausa), prevenir a osteoporose e melhorar a qualidade de vida.
- Terapia: Terapia de reposição com estrogênio e progesterona (contraceptivos orais combinados ou terapia hormonal transdérmica/oral).
- Deficiência de Hormônio do Crescimento (GH):
- A reposição em adultos é controversa e reservada para pacientes com qualidade de vida significativamente prejudicada, anormalidades de composição corporal ou fatores de risco cardiovascular, após a reposição adequada dos outros eixos.
Complicações e Prognóstico
Com diagnóstico e tratamento adequados, o prognóstico é geralmente excelente, e as pacientes podem levar uma vida normal.
Crise Adrenal
É a complicação mais temida e potencialmente letal. Pode ser desencadeada por qualquer estresse fisiológico em uma paciente não diagnosticada ou inadequadamente tratada.
- Apresentação: Hipotensão refratária a volume, choque, hipoglicemia, hiponatremia, febre, náuseas, vômitos e alteração do estado mental.
- Manejo: É uma emergência médica. Requer administração imediata de hidrocortisona intravenosa (100 mg em bolus, seguido de 200 mg/24h em infusão contínua ou bolus intermitentes), junto com reposição volêmica agressiva com soro fisiológico e correção da hipoglicemia com glicose.
Outras Complicações
- Infertilidade: É uma consequência direta da deficiência de gonadotrofinas.
- Osteoporose: Devido ao hipogonadismo crônico não tratado.
- Risco Cardiovascular Aumentado: Associado ao hipopituitarismo, especialmente à deficiência de GH.
Populações Especiais
Desejo de Fertilidade e Gestação Subsequente
Pacientes com Síndrome de Sheehan que desejam engravidar necessitam de tratamento especializado para indução da ovulação. Isso é feito com a administração de gonadotrofinas exógenas (hMG ou FSH recombinante seguido de hCG) para mimetizar o ciclo ovariano normal.
Uma vez que a gravidez é alcançada, o manejo requer uma equipe multidisciplinar (endocrinologista e obstetra). As doses de reposição hormonal, especialmente de levotiroxina e glicocorticoide, precisam ser ajustadas e monitoradas de perto durante toda a gestação para garantir o bem-estar materno e fetal.
