Sífilis Durante a Gestação
A sífilis na gestação é uma condição de altíssima relevância para a saúde pública no Brasil e um tema recorrente e de grande peso nas provas de residência, incluindo o ENARE. Seu manejo inadequado resulta em consequências devastadoras para o feto e o recém-nascido. O conhecimento detalhado do rastreamento, diagnóstico, tratamento e acompanhamento é, portanto, mandatório.
Introdução e Epidemiologia
A sífilis é uma Infecção Sexualmente Transmissível (IST) de caráter sistêmico, causada pela bactéria espiroqueta Treponema pallidum. Quando acomete a gestante, pode ser transmitida ao feto, causando a sífilis congênita. A importância do tema reside na gravidade das consequências da transmissão vertical e na existência de um método de prevenção e tratamento simples, eficaz e de baixo custo: a penicilina.
No Brasil, as taxas de sífilis em gestantes e de sífilis congênita têm apresentado um aumento alarmante nas últimas décadas, sendo consideradas uma epidemia. Este cenário reforça a necessidade de um pré-natal de alta qualidade, com rastreamento universal e compulsório para todas as gestantes. A detecção e o tratamento precoces são as pedras angulares para a interrupção da cadeia de transmissão vertical.
Fisiopatologia
A transmissão da sífilis da mãe para o feto, conhecida como transmissão vertical, ocorre predominantemente por via transplacentária. O Treponema pallidum tem alta capacidade de atravessar a barreira placentária e infectar o feto.
- Momento da Transmissão: A transmissão pode ocorrer em qualquer fase da gestação e em qualquer estágio da doença materna. No entanto, o risco é significativamente maior nas fases de maior espiroquetemia (maior quantidade de bactérias no sangue), que são a sífilis primária e secundária, onde a taxa de transmissão pode chegar a 70-100%. Na sífilis latente e terciária, o risco diminui, mas ainda é clinicamente relevante (cerca de 10-30%).
- Patogênese Fetal: Uma vez no feto, a espiroqueta se dissemina por via hematogênica, causando uma infecção sistêmica. A resposta inflamatória fetal é a responsável pelas manifestações clínicas. A infecção pode levar a:
- Placentite: Inflamação da placenta, que se torna espessada e edemaciada, comprometendo as trocas gasosas e nutricionais.
- Lesões Ósseas: Osteocondrite e periostite, especialmente em ossos longos, causando dor intensa e limitação de movimento (pseudoparalisia de Parrot).
- Acometimento Visceral: Hepatoesplenomegalia devido à inflamação e hematopoiese extramedular.
- Acometimento do SNC: Neuroinvasão, podendo levar a meningite e sequelas neurológicas a longo prazo.
- Lesões Cutâneo-mucosas: Erupções cutâneas (pênfigo sifilítico) e rinite serossanguinolenta ("pingo sifilítico").
Apresentação Clínica e Exame Físico
As manifestações clínicas variam conforme o estágio da doença na mãe e a idade do recém-nascido (no caso da sífilis congênita).
Manifestações na Gestante
- Sífilis Primária: Caracterizada pelo cancro duro, uma úlcera geralmente única, indolor, com base endurecida e fundo limpo, localizada no sítio de inoculação (vulva, vagina, colo uterino). Pode ser acompanhada de linfadenopatia regional indolor. Muitas vezes passa despercebida, especialmente se for intracervical.
- Sífilis Secundária: Ocorre semanas a meses após o cancro. É a fase de maior infectividade. As manifestações incluem:
- Roséola sifilítica: Exantema maculopapular não pruriginoso, que classicamente acomete palmas das mãos e plantas dos pés.
- Condiloma plano (Condyloma lata): Lesões papulares, úmidas e altamente infecciosas, localizadas em áreas de dobras (região anogenital, axilas).
- Poliadenopatia generalizada, febre, mal-estar, faringite.
- Sífilis Latente: Período assintomático, diagnosticado apenas por sorologia. É dividida em latente recente (até 1 ano de infecção) e latente tardia (mais de 1 ano de infecção ou duração indeterminada). A maioria das gestantes é diagnosticada nesta fase.
- Sífilis Terciária: Rara na gestação, ocorre anos após a infecção inicial. Manifesta-se com lesões gomosas (pele, ossos), sífilis cardiovascular (aneurisma de aorta) ou neurossífilis.
Manifestações da Sífilis Congênita
A sífilis congênita é dividida em precoce (manifestações até os 2 anos de vida) e tardia (após os 2 anos).
- Sífilis Congênita Precoce:
- Hepatoesplenomegalia: O achado mais comum.
- Rinite sifilítica ("pingo sifilítico"): Coriza serossanguinolenta, persistente e rica em treponemas.
- Lesões Cutâneas: Pênfigo sifilítico (lesões vesicobolhosas em palmas e plantas), rash maculopapular.
- Lesões Ósseas: Osteocondrite e periostite, que causam dor intensa à manipulação dos membros, levando à pseudoparalisia de Parrot. Radiologicamente, pode-se observar o sinal de Wimberger (destruição da metáfise medial da tíbia proximal).
- Anemia, plaquetopenia, icterícia.
- Sífilis Congênita Tardia: Resulta da inflamação crônica não tratada. Os estigmas incluem:
- Tríade de Hutchinson: Dentes de Hutchinson (incisivos centrais superiores deformados, em forma de barril), ceratite intersticial (opacidade da córnea, levando à cegueira) e surdez neurossensorial (por acometimento do oitavo par craniano).
- Nariz em sela, fronte olímpica, tíbia em "lâmina de sabre".
- Articulação de Clutton (hidrartrose bilateral do joelho).
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico se baseia em testes sorológicos, que são divididos em não treponêmicos e treponêmicos.
Rastreamento Universal
O Ministério da Saúde do Brasil preconiza o rastreamento em três momentos:
- Primeira consulta de pré-natal (idealmente no 1º trimestre).
- Início do 3º trimestre (por volta da 28ª semana).
- Admissão para o parto (ou em caso de aborto/natimorto).
O teste inicial de rastreamento é um teste não treponêmico (VDRL ou RPR) ou um teste rápido (que é um teste treponêmico).
Interpretação dos Testes
- Testes Não Treponêmicos (VDRL, RPR): Detectam anticorpos anticardiolipina. São ótimos para rastreamento e monitoramento do tratamento, pois seus títulos diminuem e podem negativar após a cura. Podem apresentar resultados falso-positivos em condições como lúpus, hanseníase, e outras infecções.
- Testes Treponêmicos (FTA-ABS, TPHA, Testes Rápidos): Detectam anticorpos específicos contra o T. pallidum. São usados para confirmar o diagnóstico. Uma vez positivos, geralmente permanecem positivos por toda a vida (cicatriz sorológica), não sendo úteis para monitorar o tratamento ou diferenciar infecção ativa de passada.
| Teste Não Treponêmico (VDRL/RPR) | Teste Treponêmico (FTA-ABS/TR) | Interpretação Clínica |
|---|---|---|
| Reagente | Reagente | Sífilis ativa (primária, secundária ou latente recente/tardia). Requer tratamento. |
| Não Reagente | Reagente | Sífilis tratada anteriormente (cicatriz sorológica) ou sífilis latente tardia/terciária com VDRL que negativou. Investigar histórico de tratamento. |
| Reagente | Não Reagente | Resultado falso-positivo do VDRL/RPR. Investigar outras condições. |
| Não Reagente | Não Reagente | Ausência de infecção ou fase muito inicial (janela imunológica). |
Raciocínio Clínico
Uma gestante apresenta um VDRL 1:32 e um FTA-ABS reagente. Isso confirma o diagnóstico de sífilis. Como ela não tem lesões e não sabe quando se infectou, o diagnóstico é de sífilis latente de duração indeterminada. O tratamento deve ser iniciado imediatamente com o esquema de 3 doses de Penicilina G Benzatina.
Tratamento e Manejo
O tratamento da sífilis na gestante é uma emergência médica, pois visa tratar a mãe e prevenir a sífilis congênita.
Princípios Fundamentais do Tratamento
- Droga de Escolha: A Penicilina G Benzatina é a ÚNICA droga eficaz e segura para o tratamento da sífilis na gestação, pois é a única que atravessa adequadamente a barreira placentária para tratar o feto.
- Início Imediato: O tratamento deve ser iniciado imediatamente após um resultado reagente em qualquer teste (VDRL, RPR ou teste rápido), sem aguardar o resultado do teste confirmatório.
- Tratamento do Parceiro: O tratamento da gestante só é considerado adequado se o(s) parceiro(s) sexual(is) for(em) tratado(s) concomitantemente.
Armadilhas do ENARE: O Conceito-Chave Validado
Questão ENARE_2020_Q63: Uma gestante chega à UBS com um teste rápido para sífilis reagente. Qual a conduta imediata? A resposta correta é iniciar o tratamento com Penicilina G Benzatina imediatamente. Não se deve esperar pelo VDRL ou por um teste treponêmico confirmatório. A urgência em prevenir a transmissão vertical supera o risco de tratar um raro falso-positivo. Esta é uma das regras de ouro da sífilis na gestação.
Esquemas Terapêuticos (Penicilina G Benzatina)
| Estágio da Sífilis Materna | Esquema Terapêutico |
|---|---|
| Sífilis primária, secundária ou latente recente (com até 1 ano de evolução) | 2,4 milhões UI, via Intramuscular (IM), em dose única (1,2 milhão UI em cada glúteo). |
| Sífilis latente tardia (mais de 1 ano), duração indeterminada ou terciária | 7,2 milhões UI, via IM, no total. Administrar 2,4 milhões UI por semana, durante 3 semanas consecutivas. |
Manejo da Alergia à Penicilina
A alergia à penicilina é um desafio crítico. Nenhum outro antibiótico (eritromicina, ceftriaxona, doxiciclina) é considerado adequado para o tratamento fetal.
- A conduta correta para uma gestante com história confirmada de alergia grave (anafilaxia, urticária) à penicilina é o encaminhamento para um centro hospitalar para realizar a dessensibilização à penicilina, seguida da administração do esquema terapêutico completo com Penicilina G Benzatina.
Controle de Cura
O controle de cura é feito com o VDRL/RPR mensal na gestante. Espera-se uma queda de, no mínimo, dois títulos (ex: de 1:64 para 1:16) em 3 meses, e quatro títulos em 6 meses. Títulos persistentemente altos ou que aumentam sugerem falha terapêutica ou reinfecção, exigindo retratamento.
Complicações e Prognóstico
A ausência de tratamento ou o tratamento inadequado da sífilis materna pode levar a um espectro de desfechos adversos graves, conhecido como sífilis congênita.
- Complicações Gestacionais: Abortamento espontâneo (especialmente no 2º trimestre), óbito fetal (natimorto), parto prematuro, restrição de crescimento intrauterino e hidropsia fetal não imune.
- Prognóstico Neonatal: Cerca de 40% das gestações com sífilis não tratada resultam em perda fetal ou morte neonatal precoce. Os sobreviventes que não são tratados desenvolvem as manifestações precoces e tardias da sífilis congênita.
- Sequelas a Longo Prazo: As sequelas da sífilis congênita tardia não tratada são permanentes e incapacitantes, incluindo cegueira, surdez, deformidades ósseas e dentárias, e comprometimento neurocognitivo.
Populações Especiais
Co-infecção com HIV
A co-infecção sífilis-HIV é comum. Em gestantes vivendo com HIV, a sífilis pode ter uma apresentação clínica mais agressiva e um maior risco de falha terapêutica e de acometimento neurológico (neurossífilis). O esquema de tratamento com penicilina é o mesmo, mas o acompanhamento sorológico deve ser mais rigoroso. A investigação de neurossífilis (com punção lombar) deve ser considerada em caso de sinais neurológicos ou falha no tratamento.
Notificação e Tratamento de Parceiros
A sífilis é uma doença de notificação compulsória, tanto a sífilis em gestante quanto a sífilis congênita. O tratamento do(s) parceiro(s) sexual(is) é um componente essencial e obrigatório do manejo.
Raciocínio Clínico: O que é "Tratamento Adequado"?
Para que o tratamento materno seja considerado "adequado" do ponto de vista da prevenção da sífilis congênita, e para definir a conduta com o recém-nascido, os seguintes critérios devem ser preenchidos:
- Tratamento completo com Penicilina G Benzatina.
- Esquema apropriado para o estágio clínico da sífilis.
- Início do tratamento até 30 dias antes do parto.
- Comprovação de queda dos títulos no VDRL (pelo menos uma diluição).
- Tratamento concomitante do parceiro com esquema adequado.
A falha em qualquer um desses critérios classifica o tratamento materno como inadequado, e o recém-nascido deverá ser investigado e provavelmente tratado para sífilis congênita.
