top of page

Sífilis

A sífilis, conhecida historicamente como "o grande imitador" devido à sua vasta gama de manifestações clínicas, é uma infecção sexualmente transmissível (IST) de importância global e um tópico recorrente e de alto rendimento nas provas de residência, incluindo o ENARE. Seu estudo exige a compreensão de sua história natural, das nuances do diagnóstico sorológico e dos protocolos de tratamento específicos para cada fase.

Introdução e Epidemiologia

A sífilis é uma doença infecciosa sistêmica, de evolução crônica e com períodos de agudização e latência, causada pela espiroqueta Treponema pallidum, subespécie pallidum. A bactéria é um microrganismo espiralado, móvel e extremamente sensível ao ambiente externo, o que torna a transmissão por fômites muito rara.

Modos de Transmissão

  • Transmissão Sexual: É a principal via de contágio. Ocorre através do contato sexual (vaginal, anal ou oral) sem proteção com uma pessoa infectada que apresente lesões ricas em treponemas, como o cancro duro (sífilis primária) ou as lesões cutaneomucosas da sífilis secundária (condiloma plano, placas mucosas). O risco de transmissão por um único contato com uma lesão ativa é estimado em 30-60%.
  • Transmissão Vertical (Congênita): Ocorre da mãe infectada para o feto, principalmente por via transplacentária, em qualquer fase da gestação ou estágio da doença materna. O risco é maior em fases mais recentes da infecção materna (primária e secundária). Pode também ocorrer durante a passagem pelo canal de parto se houver lesões ativas.
  • Transmissão Sanguínea: É rara atualmente devido à triagem sorológica rigorosa em bancos de sangue. No entanto, permanece uma possibilidade teórica em transfusões de sangue ou hemoderivados não testados ou em acidentes com material biológico.

Prevalência e Populações de Risco

A sífilis continua a ser um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo. Após um período de relativo controle, observou-se um ressurgimento significativo da doença nas últimas décadas. O Ministério da Saúde do Brasil classifica a sífilis adquirida, a sífilis em gestantes e a sífilis congênita como doenças de notificação compulsória.

As populações consideradas de maior risco ou vulnerabilidade incluem:

  • Homens que fazem sexo com homens (HSH).
  • Profissionais do sexo.
  • Pessoas em situação de rua.
  • Usuários de drogas ilícitas.
  • Pessoas privadas de liberdade.
  • Indivíduos com múltiplos parceiros sexuais e que não utilizam preservativos consistentemente.

A epidemia de sífilis em gestantes é particularmente preocupante devido à sua associação direta com a sífilis congênita, que pode resultar em aborto espontâneo, natimorto, morte neonatal e graves sequelas para a criança.

Fisiopatologia

A compreensão da interação entre o Treponema pallidum e o hospedeiro é fundamental para entender as manifestações clínicas da sífilis.

Invasão e Disseminação

O T. pallidum penetra no organismo através de microabrasões na pele ou em mucosas intactas (genital, oral, anal) durante o contato sexual. Uma vez no tecido subcutâneo, a bactéria se multiplica lentamente no local da inoculação. Em poucas horas, as espiroquetas alcançam os linfonodos regionais via vasos linfáticos e, subsequentemente, a corrente sanguínea, disseminando-se para virtualmente todos os órgãos e sistemas, incluindo o sistema nervoso central (SNC) e o sistema cardiovascular. Essa disseminação hematogênica precoce ocorre antes mesmo do surgimento da primeira lesão clínica (cancro duro).

Resposta Imune e Evasão

O T. pallidum é um mestre da evasão imune. Sua membrana externa possui poucas proteínas expostas (lipoproteínas), tornando-o pouco imunogênico e dificultando o reconhecimento pelo sistema imune do hospedeiro. A resposta imune inicial é predominantemente celular, com infiltração de macrófagos, linfócitos T (CD4+ e CD8+) e plasmócitos no sítio da lesão, formando a base histopatológica do cancro e das lesões secundárias: uma endarterite obliterante com infiltrado perivascular plasmocitário.

Apesar da produção de anticorpos (que são a base para o diagnóstico sorológico), a resposta humoral não é completamente eficaz em erradicar a infecção. A espiroqueta pode persistir por décadas no organismo, estabelecendo um equilíbrio precário com o sistema imune, o que explica os períodos de latência. A patologia das fases tardias (terciária) não se deve à ação direta da bactéria, mas sim a uma reação de hipersensibilidade tardia (tipo IV) aos antígenos treponêmicos persistentes, levando à formação de gomas e à destruição tecidual crônica.

Raciocínio Clínico

Por que a sífilis tem estágios tão distintos? A fase primária (cancro) representa a reação local à multiplicação inicial do treponema. A fase secundária reflete a disseminação sistêmica e a resposta inflamatória generalizada. A fase latente ocorre quando o sistema imune consegue controlar a replicação bacteriana, mas não eliminá-la. A fase terciária é o resultado de anos de inflamação crônica de baixo grau e reações de hipersensibilidade em órgãos específicos, como a aorta e o SNC.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A sífilis é classicamente dividida em estágios clínicos distintos, que podem se sobrepor.

Sífilis Primária

  • Período de Incubação: Em média 21 dias (variando de 10 a 90 dias).
  • Lesão Característica (Cancro Duro): Apresenta-se como uma pápula que evolui para uma úlcera única, indolor, com base endurecida ("cartonada"), fundo limpo e bordas bem definidas. Localiza-se no sítio de inoculação (pênis, vulva, vagina, colo uterino, ânus, reto, lábios, língua). A característica de ser indolor é clássica, mas lesões dolorosas podem ocorrer, especialmente se houver infecção secundária.
  • Linfadenopatia Regional: Geralmente surge uma a duas semanas após o cancro. Os linfonodos são múltiplos, móveis, indolores, não supurativos e bilaterais (linfadenopatia satélite).
  • Evolução: O cancro duro é altamente infeccioso, mas regride espontaneamente em 3 a 6 semanas, mesmo sem tratamento, deixando uma cicatriz atrófica. A regressão da lesão não significa cura, mas sim a progressão da doença para o próximo estágio.

Sífilis Secundária

Surge de 4 a 10 semanas após o aparecimento do cancro duro, refletindo a disseminação hematogênica maciça da espiroqueta.

  • Sintomas Sistêmicos: Febre baixa, mal-estar, cefaleia, faringite, mialgia, artralgia e linfadenopatia generalizada.
  • Manifestações Cutâneas (Sifílides):
    • Roséola Sifilítica: É a primeira manifestação cutânea. Consiste em máculas róseas, não pruriginosas, distribuídas principalmente no tronco e na raiz dos membros.
    • Lesões Papulosas: Podem ser pápulas infiltradas, eritêmato-acastanhadas, que frequentemente acometem as regiões palmares e plantares (lesão muito sugestiva). Podem descamar, formando o "colarinho de Biett".
    • Condiloma Plano (Condyloma Latum): Lesões papulosas, úmidas, largas, achatadas e altamente infecciosas que surgem em áreas de dobras e umidade, como a região anogenital e axilas.
  • Manifestações Mucosas: Placas mucosas (lesões erosivas, acinzentadas, indolores na boca, faringe ou genitais) e pápulas na língua ("língua em prado ceifado").
  • Outras Manifestações: Alopecia em clareira ("em saca-bocado"), madarose (perda do terço distal das sobrancelhas), rouquidão (laringite sifilítica), hepatite, glomerulonefrite, uveíte e meningite assintomática ou sintomática.

Todas as lesões da sífilis secundária regridem espontaneamente em 3 a 12 semanas, e a doença entra na fase latente.

Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado

Diferença entre Condiloma Plano e Condiloma Acuminado: Esta é uma distinção clássica em provas. O Condiloma Plano (Condyloma Latum), como visto na questão ENARE 2023 Q61, é uma manifestação da sífilis secundária. As lesões são planas, largas, úmidas e acinzentadas. Já o Condiloma Acuminado é causado pelo Papilomavírus Humano (HPV), e as lesões são verrucosas, com aspecto de "couve-flor". A biópsia do condiloma plano revela intensa infiltração de plasmócitos e a presença de espiroquetas.

Sífilis Latente

É um período assintomático, diagnosticado exclusivamente por testes sorológicos. É dividida em:

  • Latente Precoce: Até 1 ano após a infecção inicial. O paciente ainda pode apresentar recidivas das lesões de secundarismo e é considerado transmissível.
  • Latente Tardia: Mais de 1 ano após a infecção. O paciente não é mais considerado transmissível por via sexual, mas a transmissão vertical ainda é possível.

Sífilis Terciária

Ocorre em cerca de um terço dos pacientes não tratados, anos ou décadas após a infecção inicial. É caracterizada por lesões destrutivas e de progressão lenta.

  • Sífilis Gomatosa (Benigna): Formação de gomas, que são lesões granulomatosas crônicas, nodulares, que podem ulcerar e levar à destruição de pele, ossos e vísceras.
  • Sífilis Cardiovascular: Principalmente aortite sifilítica, que afeta a porção ascendente da aorta. A inflamação (endarterite obliterante da vasa vasorum) leva à necrose da camada média, resultando em dilatação aneurismática, insuficiência aórtica (por dilatação do anel valvar) e estenose dos óstios coronarianos.
  • Neurosífilis: Pode ocorrer em qualquer estágio, mas as formas tardias são manifestações da sífilis terciária. Inclui:
    • Meningovascular: Endarterite de vasos cerebrais ou medulares, levando a múltiplos infartos (AVCs em pacientes jovens).
    • Parenquimatosa:
      • Paresia Geral: Encefalite crônica com deterioração progressiva da função intelectual, alterações de personalidade, psicose (delírios de grandeza) e demência.
      • Tabes Dorsalis: Desmielinização dos cordões posteriores e raízes dorsais da medula espinhal, resultando em ataxia sensitiva (marcha tabética), perda da propriocepção (sinal de Romberg positivo), dores lancinantes em membros inferiores, incontinência urinária e pupila de Argyll Robertson (pupilas mióticas, irregulares, que não reagem à luz, mas acomodam para perto).

Diagnóstico Laboratorial

O diagnóstico combina dados clínicos, epidemiológicos e laboratoriais. Os testes são divididos em métodos diretos e indiretos (sorológicos).

Métodos Diretos

  • Microscopia de Campo Escuro: Padrão-ouro para o diagnóstico da sífilis primária. Permite a visualização direta do T. pallidum móvel em material coletado do exsudato do cancro duro ou de lesões úmidas do secundarismo. Requer equipamento específico e profissional treinado, e seu uso é limitado na prática clínica atual.

Testes Sorológicos (Indiretos)

São a base do diagnóstico na maioria dos casos. Dividem-se em dois tipos:

  1. Testes Não Treponêmicos:
    • Exemplos: VDRL (Venereal Disease Research Laboratory) e RPR (Rapid Plasma Reagin).
    • Mecanismo: Detectam anticorpos (IgM e IgG) contra a cardiolipina, um lipídeo liberado por células danificadas pelo treponema. São testes quantitativos.
    • Uso Clínico: Triagem (screening) e monitoramento da resposta ao tratamento. Os títulos devem cair pelo menos 4 vezes (ex: de 1:64 para 1:16) em 6 meses após o tratamento adequado.
    • Limitações: Podem ser falsos-positivos em condições como gravidez, doenças autoimunes (LES), hanseníase, malária e outras infecções. Podem apresentar o "efeito prozona" (falso-negativo com títulos muito altos de anticorpos, resolvido com a diluição da amostra).
  2. Testes Treponêmicos:
    • Exemplos: FTA-ABS (Fluorescent Treponemal Antibody Absorption), TP-PA (T. pallidum Particle Agglutination), testes rápidos e imunoensaios (ELISA, quimioluminescência).
    • Mecanismo: Detectam anticorpos específicos contra antígenos do T. pallidum. São testes qualitativos ou semi-quantitativos.
    • Uso Clínico: Confirmação diagnóstica. Uma vez positivos, geralmente permanecem positivos por toda a vida (cicatriz sorológica), mesmo após tratamento eficaz. Não servem para monitorar tratamento.
Interpretação Sorológica

O Ministério da Saúde do Brasil recomenda o fluxograma com dois testes: um treponêmico (geralmente teste rápido) seguido por um não treponêmico para definir a atividade da doença e o tratamento.

Teste Treponêmico Teste Não Treponêmico Interpretação Provável
Não Reagente Não Reagente Sem infecção ou fase muito inicial (janela imunológica)
Reagente Reagente Sífilis ativa (primária, secundária ou latente recente)
Reagente Não Reagente Sífilis tratada (cicatriz sorológica) ou sífilis latente tardia/terciária com títulos baixos. Pode ser um falso-positivo no teste treponêmico (raro).
Não Reagente Reagente Resultado falso-positivo no teste não treponêmico. Investigar outras condições.

Diagnóstico de Neurosífilis

A indicação de punção lombar (PL) para análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) é controversa, mas geralmente recomendada em pacientes com sífilis e sintomas neurológicos/oftalmológicos, evidência de sífilis terciária ativa, falha terapêutica ou em pacientes com HIV com VDRL > 1:32 e contagem de CD4 < 350/mm³.

O diagnóstico de neurosífilis é confirmado por um VDRL reagente no LCR. Outros achados sugestivos incluem pleocitose (aumento de células, >5 leucócitos/mm³) e hiperproteinorraquia (>45 mg/dL).

Tratamento e Manejo

A Penicilina G Benzatina é o fármaco de eleição para todas as formas de sífilis, incluindo em gestantes. A dosagem e a duração dependem do estágio da doença.

Esquemas Terapêuticos para Sífilis (PCDT-IST Brasil)
Estágio da Sífilis Tratamento de Escolha Alternativa (Alergia à Penicilina, exceto gestantes)
Sífilis Primária, Secundária e Latente Precoce Penicilina G Benzatina 2,4 milhões UI, intramuscular, dose única (1,2 milhão UI em cada glúteo). Doxiciclina 100 mg, via oral, 2x/dia por 15 dias.
Sífilis Latente Tardia, Terciária (exceto neurosífilis) e de duração ignorada Penicilina G Benzatina 2,4 milhões UI, intramuscular, 1x/semana por 3 semanas (dose total: 7,2 milhões UI). Doxiciclina 100 mg, via oral, 2x/dia por 30 dias.
Neurosífilis Penicilina G Cristalina 18-24 milhões UI/dia, intravenosa (3-4 milhões UI a cada 4h), por 10-14 dias. Ceftriaxona 2g, intravenosa, 1x/dia por 10-14 dias.

Reação de Jarisch-Herxheimer

É uma reação febril aguda que ocorre nas primeiras 24 horas após o início do tratamento, especialmente na sífilis primária e secundária. É causada pela lise maciça de espiroquetas, com liberação de endotoxinas e citocinas inflamatórias. Os sintomas incluem febre, calafrios, mialgia, cefaleia e exacerbação das lesões cutâneas. É autolimitada e o manejo é de suporte, com antitérmicos. Não é uma alergia à penicilina e o tratamento não deve ser interrompido.

Manejo de Parceiros

É fundamental notificar, testar e tratar todos os parceiros sexuais dos últimos 3 meses (sífilis primária) a 1 ano (sífilis secundária e latente precoce). O tratamento deve ser instituído mesmo sem resultados sorológicos, para quebrar a cadeia de transmissão (tratamento epidemiológico).

Complicações e Prognóstico

Se não tratada, a sífilis pode levar a complicações graves e irreversíveis. A neurosífilis pode causar demência, cegueira, surdez e paralisia. A sífilis cardiovascular pode levar a aneurisma de aorta roto e insuficiência cardíaca grave. As gomas podem causar desfiguração e destruição óssea.

O prognóstico é excelente quando a doença é diagnosticada e tratada nas fases iniciais. Nas fases tardias, o tratamento com penicilina interrompe a progressão da doença, mas os danos neurológicos ou cardiovasculares já estabelecidos podem ser permanentes.

Populações Especiais

Sífilis na Gestação

  • Rastreamento: Obrigatório no Brasil. Teste não treponêmico (VDRL/RPR) na primeira consulta do pré-natal (idealmente no 1º trimestre), no 3º trimestre e no momento do parto ou em caso de aborto.
  • Risco: A transmissão vertical pode ocorrer em qualquer fase da gestação, com risco de até 80-90% na sífilis primária/secundária. As consequências incluem aborto, natimorto, parto prematuro e sífilis congênita.
  • Tratamento: A Penicilina G Benzatina é o único tratamento eficaz e seguro para prevenir a transmissão vertical. Gestantes com alergia à penicilina devem ser dessensibilizadas em ambiente hospitalar e, então, tratadas com penicilina. Tratamentos alternativos como doxiciclina (teratogênica) ou ceftriaxona (não tem eficácia comprovada na prevenção da sífilis congênita) não são aceitáveis.

Sífilis Congênita

É uma doença grave, com manifestações precoces (até 2 anos) e tardias (após 2 anos).

  • Manifestações Precoces: Rinite sifilítica ("nariz entupido" com secreção sanguinolenta), pênfigo palmo-plantar (lesões bolhosas), erupção cutânea maculopapular, hepatoesplenomegalia, icterícia, anemia, plaquetopenia, osteocondrite (pseudoparalisia de Parrot) e periostite.
  • Manifestações Tardias (Estigmas): Dentes de Hutchinson (incisivos centrais em forma de pino), molares em amora, fronte olímpica, nariz em sela, tíbia em lâmina de sabre, surdez neurossensorial e ceratite intersticial.
  • Diagnóstico e Tratamento: O diagnóstico baseia-se nos achados clínicos, radiológicos (osteocondrite), análise do LCR e comparação dos títulos de VDRL do recém-nascido com os da mãe. O tratamento é feito com Penicilina G Cristalina ou Procaína, dependendo da avaliação clínica e liquórica.

Sífilis e Coinfecção pelo HIV

  • Apresentação Clínica: Pacientes com HIV, especialmente com imunossupressão grave (CD4 baixo), podem ter apresentações atípicas, como múltiplos cancros, lesões secundárias mais agressivas (sífilis maligna) e progressão mais rápida para neurosífilis.
  • Diagnóstico Sorológico: Pode haver discrepâncias, como falso-negativos em testes não treponêmicos ou títulos extremamente elevados.
  • Manejo: O tratamento é o mesmo do paciente não-HIV, mas o acompanhamento sorológico deve ser mais rigoroso. A indicação de punção lombar é mais liberal para descartar neurosífilis.
bottom of page