top of page

Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU) e Restrição de Crescimento Intrauterino Seletiva (RCIU Seletiva)

A Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU), também conhecida como Restrição de Crescimento Fetal (RCF), é uma condição na qual um feto não atinge seu potencial de crescimento genético. É uma das principais causas de morbimortalidade perinatal, exigindo vigilância intensiva e manejo especializado. A RCIU Seletiva (RCIU-s) é uma complicação específica e de alto risco das gestações gemelares monocoriônicas.

Introdução e Epidemiologia

Definição de RCIU

A RCIU é definida, classicamente, pela estimativa de peso fetal (EPF) ou pela circunferência abdominal (CA) abaixo do percentil 10 para a idade gestacional, aferida por ultrassonografia. É fundamental diferenciar RCIU de um feto Pequeno para a Idade Gestacional (PIG).

  • Pequeno para a Idade Gestacional (PIG): Refere-se a qualquer feto com peso abaixo do percentil 10. A maioria desses fetos (cerca de 70%) são constitucionalmente pequenos e saudáveis, simplesmente refletindo a variação normal da população.
  • Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU): É um processo patológico. Refere-se ao feto que não apenas está abaixo do percentil 10, mas que também apresenta sinais de comprometimento, geralmente por insuficiência placentária, evidenciados por alterações em exames como a dopplervelocimetria. Um feto com RCIU é, por definição, um feto PIG, mas nem todo feto PIG tem RCIU.

Distinção entre RCIU Simétrica e Assimétrica

A RCIU é classificada em dois padrões principais, com base no momento de início e nas causas subjacentes.

Característica RCIU Simétrica (Tipo I) RCIU Assimétrica (Tipo II)
Início Precoce (1º ou 2º trimestre) Tardio (final do 2º ou 3º trimestre)
Frequência 20-30% dos casos de RCIU 70-80% dos casos de RCIU
Mecanismo Problema intrínseco do feto. Redução do número de células (hipoplasia). Insuficiência uteroplacentária. Redução do tamanho das células (hipotrofia).
Causas Comuns Cromossomopatias (Trissomias 13, 18, 21), infecções congênitas (TORCHS), malformações fetais, exposição a teratógenos. Pré-eclâmpsia, hipertensão arterial crônica, diabetes com vasculopatia, doenças autoimunes (LES, SAF), desnutrição materna, tabagismo.
Padrão de Crescimento Todos os parâmetros biométricos (cabeça, abdome, fêmur) são proporcionalmente pequenos. Crescimento da cabeça e do fêmur são relativamente preservados em detrimento do abdome (onde fica o fígado, principal órgão afetado pela hipóxia). Fenômeno de "centralização" ou "brain-sparing".
Prognóstico Pior prognóstico, devido à causa de base (genética/infecciosa). Prognóstico dependente da gravidade da insuficiência placentária e da idade gestacional no parto.

RCIU Seletiva (RCIU-s) em Gestações Monocoriônicas

A RCIU Seletiva é uma complicação grave que ocorre exclusivamente em gestações gemelares monocoriônicas (uma única placenta para ambos os fetos). É definida pela presença de um feto com RCIU (EPF < percentil 10) em uma gestação gemelar, associada a uma discordância significativa de peso entre os gêmeos.

Fatores de Risco para RCIU

  • Maternos: Hipertensão (crônica ou gestacional), pré-eclâmpsia, diabetes mellitus (especialmente com vasculopatia), doenças renais crônicas, doenças autoimunes (Lúpus, Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide), desnutrição, baixo nível socioeconômico, tabagismo, uso de álcool e drogas ilícitas, idade materna avançada.
  • Placentários: Insuficiência placentária, descolamento prematuro de placenta crônico, placenta prévia, inserção velamentosa do cordão, artéria umbilical única.
  • Fetais: Gestação múltipla (especialmente monocoriônica), anomalias cromossômicas, malformações congênitas, infecções congênitas (Citomegalovírus, Toxoplasmose, Rubéola, Sífilis, Herpes).

Fisiopatologia

A fisiopatologia da RCIU depende da sua etiologia.

  • RCIU Assimétrica (Insuficiência Uteroplacentária): Esta é a causa mais comum. Ocorre uma falha na segunda onda de invasão trofoblástica nas artérias espiraladas do útero. Normalmente, essas artérias se transformam de vasos de alta resistência e baixo fluxo para vasos de baixa resistência e alto fluxo, garantindo uma perfusão adequada para a placenta. Na insuficiência placentária, essa remodelação é inadequada. As artérias permanecem com alta resistência, resultando em um fluxo sanguíneo reduzido para o feto. Isso leva a um estado de hipóxia crônica e desnutrição. O feto se adapta redistribuindo o fluxo sanguíneo para órgãos vitais (cérebro, coração, adrenais) em detrimento de outros (fígado, rins, intestino), o que explica a circunferência abdominal reduzida (devido ao menor tamanho do fígado) e o fenômeno de "brain-sparing" (preservação do fluxo cerebral).
  • RCIU Simétrica: A causa é um problema intrínseco ao feto, que ocorre no início da gestação. Em casos de anomalias genéticas ou infecções graves, há uma diminuição no potencial de divisão celular (hiperplasia). Como o insulto ocorre precocemente, todos os órgãos são afetados de maneira uniforme, resultando em um feto globalmente pequeno.
  • RCIU Seletiva (sIUGR): Em uma gestação monocoriônica, a placenta única é compartilhada entre os fetos. A RCIU-s ocorre quando essa partilha é desigual, com um feto recebendo um território placentário significativamente menor e, consequentemente, menos nutrientes e oxigênio. A presença de anastomoses vasculares na placenta monocoriônica (artério-arteriais, veno-venosas e artério-venosas) adiciona complexidade e pode influenciar drasticamente o prognóstico.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A suspeita clínica de RCIU geralmente surge durante o acompanhamento pré-natal de rotina.

  • Medida da Altura Uterina (AU): É o principal método de rastreio clínico. A AU, medida em centímetros da sínfise púbica ao fundo uterino, deve corresponder aproximadamente à idade gestacional em semanas (a partir de 20 semanas). Uma discrepância de 3 ou mais centímetros entre a AU e a idade gestacional é um sinal de alerta e indica a necessidade de uma avaliação ultrassonográfica.
  • Gestações Gemelares: A AU não é um bom preditor. A suspeita de RCIU-s é levantada exclusivamente pela ultrassonografia, ao se observar uma discordância de tamanho significativa entre os fetos.

Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave (ENARE 2024)

A banca exige a identificação precisa da RCIU Seletiva em gestações monocoriônicas. Os critérios diagnósticos são:

  1. Gestação Monocoriônica (identificada pela presença de um único córion, sinal do "T" na ultrassonografia).
  2. EPF de um dos fetos < percentil 10 para a idade gestacional.
  3. Discordância de peso > 25%. A fórmula é: [(Peso do Gêmeo Maior - Peso do Gêmeo Menor) / Peso do Gêmeo Maior] x 100.

É crucial diferenciar RCIU-s da Síndrome de Transfusão Feto-Fetal (STFF). Na STFF, o critério diagnóstico principal é a sequência de polidrâmnio (maior bolsão vertical de líquido amniótico > 8 cm) no feto receptor e oligodrâmnio (maior bolsão < 2 cm) no feto doador. A RCIU-s é diagnosticada na ausência desses critérios de líquido amniótico da STFF.

Avaliação Diagnóstica

Uma vez suspeitada clinicamente, a RCIU é confirmada e estadiada através de exames de imagem e funcionais.

Ultrassonografia Obstétrica com Biometria Fetal

É o exame padrão-ouro para o diagnóstico. Mede-se os parâmetros biométricos fetais (Diâmetro Biparietal - DBP, Circunferência Cefálica - CC, Circunferência Abdominal - CA, e Comprimento do Fêmur - CF). Esses dados são inseridos em fórmulas (ex: Hadlock) para calcular a Estimativa de Peso Fetal (EPF). A Circunferência Abdominal (CA) é o parâmetro mais sensível e o primeiro a se alterar na RCIU assimétrica.

Dopplervelocimetria

É a ferramenta fundamental para avaliar a função placentária e o bem-estar fetal, sendo essencial para o manejo e a decisão sobre o momento do parto.

Raciocínio Clínico: Conceito-Chave (ENARE 2023)

Diante da suspeita de RCIU (feto com peso estimado abaixo do percentil 10 na ultrassonografia), o primeiro exame a ser solicitado para avaliação funcional e estadiamento do risco é a Dopplervelocimetria da Artéria Umbilical. Este exame avalia diretamente a resistência da circulação placentária, que é a origem do problema na maioria dos casos. A partir do resultado da artéria umbilical, a investigação prossegue para outros vasos.

Vasos Avaliados na Dopplervelocimetria:
  • Artéria Umbilical (AU): Reflete a resistência da circulação vilositária placentária. A progressão da gravidade da insuficiência placentária se manifesta como:
    1. Aumento do Índice de Pulsatilidade (IP) / Índice de Resistência (IR).
    2. Diástole Zero (Ausência de Fluxo Diastólico Final): Indica que cerca de 70% do leito placentário está comprometido. Risco significativo de acidose e óbito.
    3. Diástole Reversa (Fluxo Diastólico Final Reverso): Sinal de extrema gravidade, indicando altíssima resistência placentária e risco iminente de óbito fetal.
  • Artéria Cerebral Média (ACM): Avalia a resposta fetal à hipóxia. Em fetos saudáveis, a ACM é um vaso de alta resistência. Na hipóxia crônica, ocorre vasodilatação cerebral para preservar a oxigenação do cérebro (fenômeno de centralização ou "brain-sparing"). Isso é detectado por uma diminuição do IP da ACM.
  • Relação Cérebro-Placentária (RCP): Calculada pela divisão do IP da ACM pelo IP da AU (RCP = IP ACM / IP AU). Uma RCP < 1 indica que a resistência cerebral está menor que a placentária, confirmando a centralização. É um marcador precoce de desfechos perinatais adversos.
  • Ducto Venoso (DV): Avalia a função cardíaca fetal. O ducto venoso desvia o sangue oxigenado da veia umbilical diretamente para a circulação central. Uma alteração no seu padrão de fluxo (onda 'a' zero ou reversa) indica disfunção do ventrículo direito e acidose fetal. É um sinal pré-terminal, que precede o óbito fetal em dias.

Tratamento e Manejo

Não existe tratamento para "curar" a RCIU. O manejo consiste em vigilância intensiva para determinar o momento ideal para o parto, buscando o equilíbrio entre os riscos da prematuridade e os riscos de manter o feto em um ambiente intrauterino hostil.

Vigilância Fetal

  • Biometria Seriada: Repetir a ultrassonografia a cada 2-4 semanas para avaliar a curva de crescimento.
  • Dopplervelocimetria: A frequência depende da gravidade. Pode variar de quinzenal (casos leves) a duas vezes por semana ou diariamente (casos graves com diástole zero/reversa).
  • Testes de Vitalidade Fetal:
    • Cardiotocografia (CTG): Avalia a frequência cardíaca fetal e sua variabilidade.
    • Perfil Biofísico Fetal (PBF): Combina a CTG com 4 parâmetros ultrassonográficos (movimentos respiratórios, movimentos corporais, tônus fetal e volume de líquido amniótico). Uma pontuação ≤ 4/10 é altamente sugestiva de asfixia fetal.

Momento do Parto

A decisão é baseada na idade gestacional e na gravidade do comprometimento fetal, evidenciado pelo Doppler.

Estadiamento da RCIU Achados Doppler Idade Gestacional Recomendada para o Parto
Estágio I EPF < p3 ou Doppler de AU/ACM alterado (IP > p95 ou RCP < p5) 37 semanas
Estágio II Artéria Umbilical com Diástole Zero 34 semanas
Estágio III Artéria Umbilical com Diástole Reversa 32 semanas
Estágio IV Ducto Venoso com onda 'a' zero ou reversa 30 semanas

Nota: Estas são diretrizes gerais; a decisão deve ser individualizada.

Medidas Adjuvantes

  • Corticosteroides Antenatais (Betametasona ou Dexametasona): Indicados para acelerar a maturidade pulmonar fetal se houver previsão de parto prematuro antes de 34 semanas.
  • Sulfato de Magnésio: Utilizado para neuroproteção fetal em partos previstos antes de 32 semanas, para reduzir o risco de paralisia cerebral.

Complicações e Prognóstico

Riscos Perinatais

Fetos com RCIU têm um risco aumentado de:

  • Óbito intrauterino
  • Asfixia perinatal e baixo Apgar
  • Hipoglicemia neonatal (devido a baixas reservas de glicogênio hepático)
  • Hipotermia (menor quantidade de gordura subcutânea)
  • Policitemia (hipóxia crônica estimula a eritropoiese)
  • Enterocolite necrosante
  • Hemorragia intraventricular

Consequências a Longo Prazo

A RCIU está associada à teoria da "Programação Fetal" ou Hipótese de Barker, que postula que o ambiente intrauterino adverso "programa" o feto para um maior risco de desenvolver doenças na vida adulta, como:

  • Hipertensão Arterial Sistêmica
  • Doença Arterial Coronariana
  • Diabetes Mellitus tipo 2
  • Dislipidemia
  • Atraso no neurodesenvolvimento e dificuldades de aprendizado

Populações Especiais: Manejo da RCIU Seletiva

O manejo da RCIU-s em gêmeos monocoriônicos é um dos maiores desafios da obstetrícia moderna. A classificação de Gratacós, baseada no padrão do Doppler da artéria umbilical do feto menor, é crucial para guiar a conduta.

Tipo (Gratacós) Padrão Doppler da AU (Feto com RCIU) Prognóstico e Manejo
Tipo I Fluxo diastólico final persistentemente presente (positivo). Melhor prognóstico. Geralmente manejado de forma expectante com vigilância intensiva (Doppler 1-2x/semana).
Tipo II Fluxo diastólico final persistentemente ausente ou reverso. Alto risco de óbito súbito e imprevisível do feto com RCIU. Intervenções como a fotocoagulação a laser ou a oclusão seletiva do cordão podem ser consideradas.
Tipo III Fluxo diastólico final intermitentemente ausente ou reverso. Curso mais imprevisível. Alto risco de dano neurológico para o feto maior se o menor vier a óbito, devido a anastomoses artério-arteriais. O manejo é complexo e controverso.

Opções Terapêuticas na RCIU-s Grave:

  • Manejo Expectante: Vigilância rigorosa, com o objetivo de prolongar a gestação o máximo possível.
  • Fotocoagulação a Laser das Anastomoses: Procedimento intrauterino que visa separar as duas circulações, transformando a gestação em uma "dicoriônica funcional". É o tratamento de escolha para a STFF e pode ser usado em casos selecionados de RCIU-s.
  • Oclusão Seletiva do Cordão: Procedimento de feticídio seletivo, reservado para casos gravíssimos onde se busca salvar o feto maior do risco de morte ou lesão neurológica grave decorrente do óbito do seu co-gêmeo.
bottom of page