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Rastreamento do Câncer de Colo Uterino

O câncer de colo uterino (CCU) é uma neoplasia com um potencial de prevenção extremamente elevado, tornando seu rastreamento um dos pilares da saúde da mulher e um tópico de alta frequência e importância no ENARE. A compreensão das diretrizes brasileiras, da fisiopatologia e do manejo das alterações citológicas é fundamental.

Introdução e Epidemiologia

O rastreamento do câncer de colo uterino consiste na aplicação de testes em uma população assintomática com o objetivo de identificar lesões precursoras (neoplasias intraepiteliais cervicais - NIC) ou o câncer em estágio inicial, quando o tratamento é mais eficaz e menos invasivo. A principal estratégia utilizada no Brasil e no mundo é o exame citopatológico, conhecido como exame de Papanicolau.

População Alvo e Periodicidade (Diretrizes do Ministério da Saúde - Brasil)

  • População Alvo: Mulheres com idade entre 25 e 64 anos que já tiveram atividade sexual.
  • Periodicidade: O exame deve ser realizado a cada 3 anos, após dois exames anuais consecutivos com resultado normal (negativo para malignidade).
  • Início do Rastreamento: Aos 25 anos. A realização do exame em mulheres com menos de 25 anos está associada a um alto índice de diagnóstico de lesões de baixo grau, que na maioria das vezes regridem espontaneamente, levando a intervenções desnecessárias.
  • Término do Rastreamento: Aos 64 anos, para mulheres que tiveram pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos. Mulheres com mais de 64 anos que nunca realizaram o exame devem fazer dois exames com intervalo de um a três anos; se ambos forem negativos, podem ser dispensadas do rastreamento.

Raciocínio Clínico

Por que iniciar aos 25 anos e não antes? A infecção pelo HPV é extremamente comum em mulheres jovens sexualmente ativas. A grande maioria dessas infecções é transitória e eliminada pelo sistema imune sem causar lesões persistentes. Iniciar o rastreamento precocemente levaria a uma alta taxa de resultados "anormais", gerando ansiedade e procedimentos diagnósticos (colposcopia, biópsias) para lesões que regrediriam sozinhas. A idade de 25 anos representa um ponto de equilíbrio onde a probabilidade de infecção persistente e lesões precursoras significativas começa a aumentar.

Impacto do Rastreamento e Prevenção Primária

A implementação de programas de rastreamento organizados foi responsável por uma drástica redução na incidência e mortalidade por câncer cervical em países desenvolvidos. No Brasil, apesar de ser o terceiro tipo de câncer mais incidente em mulheres (excluindo o câncer de pele não melanoma), as taxas de mortalidade vêm caindo graças à expansão do programa de rastreamento.

A vacinação contra o HPV é a principal estratégia de prevenção primária. As vacinas disponíveis no PNI (Programa Nacional de Imunizações) são altamente eficazes na prevenção de infecções pelos principais tipos de HPV oncogênicos (especialmente 16 e 18). É crucial entender que a vacinação não elimina a necessidade de rastreamento, pois as vacinas não cobrem todos os tipos de HPV oncogênicos. Portanto, mulheres vacinadas devem seguir o mesmo cronograma de rastreamento.

Fisiopatologia

A fisiopatologia do câncer de colo uterino está intrinsecamente ligada à infecção persistente por subtipos de alto risco do Papilomavírus Humano (HPV). O HPV é considerado uma causa necessária, mas não suficiente, para o desenvolvimento da doença.

O Papel Central do HPV

  • Tipos de HPV: Existem mais de 200 tipos de HPV. Eles são classificados como de baixo risco (e.g., 6 e 11, associados a condilomas genitais) e de alto risco oncogênico.
  • Tipos de Alto Risco: Cerca de 14 tipos são considerados de alto risco. Os tipos HPV 16 e 18 são os mais importantes, sendo responsáveis por aproximadamente 70% de todos os casos de câncer cervical.
  • Mecanismo de Carcinogênese: O DNA do HPV de alto risco pode se integrar ao genoma da célula hospedeira. A expressão de duas oncoproteínas virais, E6 e E7, é o evento central.
    • A proteína E6 se liga e promove a degradação da proteína supressora de tumor p53.
    • A proteína E7 se liga e inativa a proteína supressora de tumor pRb (proteína do retinoblastoma).
    A inativação desses dois importantes "guardiões do genoma" leva à proliferação celular descontrolada, instabilidade genômica e acúmulo de mutações, culminando na transformação maligna.

História Natural da Infecção e Progressão da Doença

A história natural da doença é tipicamente lenta e progressiva, ocorrendo ao longo de anos ou décadas.

  1. Infecção por HPV: Ocorre geralmente no início da vida sexual. A maioria (70-90%) das infecções é transitória e eliminada pelo sistema imunológico em 1 a 2 anos.
  2. Infecção Persistente: Em uma minoria de mulheres, a infecção por um tipo de HPV de alto risco persiste. Esta é a condição fundamental para o desenvolvimento de lesões precursoras.
  3. Neoplasia Intraepitelial Cervical (NIC): A infecção persistente pode levar a alterações celulares que são classificadas histologicamente como NIC.
    • NIC 1 (Lesão Intraepitelial Escamosa de Baixo Grau - LSIL): Representa uma displasia leve, com alta taxa de regressão espontânea, especialmente em jovens. É considerada uma manifestação da infecção produtiva pelo HPV.
    • NIC 2 e NIC 3 (Lesão Intraepitelial Escamosa de Alto Grau - HSIL): Representam displasias moderada e acentuada/carcinoma in situ, respectivamente. São consideradas lesões verdadeiramente precursoras do câncer, com menor probabilidade de regressão e maior potencial de progressão para câncer invasivo se não tratadas.
  4. Câncer Invasivo: Se uma lesão de alto grau (HSIL) não for tratada, ela pode progredir para um carcinoma invasivo, onde as células neoplásicas rompem a membrana basal e invadem o estroma cervical.

Apresentação Clínica e Exame Físico

Um dos pontos mais importantes para as provas e para a prática clínica é o reconhecimento de que as lesões precursoras (NIC) e o câncer de colo uterino em estágio inicial são tipicamente assintomáticos. A ausência de sintomas reforça a importância vital dos programas de rastreamento para detectar a doença em uma fase curável.

Quando os sintomas aparecem, eles geralmente indicam uma doença em estágio mais avançado. Os principais são:

  • Sangramento Vaginal Anormal: É o sintoma mais comum.
    • Sangramento pós-coito (Sinusiorragia): É o sinal clássico e mais característico. O colo uterino tumoral é friável e sangra facilmente ao toque.
    • Sangramento intermenstrual.
    • Sangramento pós-menopausa.
  • Descarga Vaginal Anormal: Pode ser aquosa, mucoide ou purulenta, frequentemente com odor fétido, especialmente em tumores mais volumosos e necrosados.
  • Dor Pélvica ou Lombar: A dor pélvica pode ocorrer por crescimento tumoral local. A dor lombar, muitas vezes unilateral e irradiada para o membro inferior, é um sinal de mau prognóstico, frequentemente indicando comprometimento de nervos pélvicos ou hidronefrose por obstrução ureteral.
  • Sintomas Urinários e Intestinais: Em estágios muito avançados, a invasão da bexiga ou do reto pode causar disúria, hematúria, tenesmo e, eventualmente, fístulas (vesicovaginal ou retovaginal).

Avaliação Diagnóstica

A avaliação diagnóstica no contexto do rastreamento envolve os testes primários e a interpretação de seus resultados.

Testes de Rastreamento Primário

Teste Descrição Vantagens Desvantagens
Citologia Convencional (Papanicolau) As células coletadas do colo uterino são espalhadas diretamente em uma lâmina de vidro e fixadas. É o método padrão no SUS. Baixo custo, amplamente disponível, comprovada eficácia na redução da mortalidade. Maior taxa de amostras insatisfatórias (sangue, muco), menor sensibilidade em comparação com outros métodos.
Citologia em Meio Líquido A amostra é colocada em um frasco com conservante líquido. No laboratório, as células são processadas para remover debris e criar uma fina camada na lâmina. Menor taxa de amostras insatisfatórias, permite a realização de testes moleculares (co-teste HPV) na mesma amostra. Custo mais elevado.
Teste de HPV Primário Detecta o DNA ou mRNA de tipos de HPV de alto risco na amostra cervical. É recomendado como método primário em muitas diretrizes internacionais para mulheres > 30 anos. Maior sensibilidade para detectar lesões de alto grau (NIC 2+), permite estender o intervalo de rastreamento (5 anos). Menor especificidade (muitos testes positivos para infecções transitórias), custo elevado.

Interpretação de Resultados e Conceitos

  • Sensibilidade: A capacidade de um teste identificar corretamente os indivíduos com a doença (verdadeiros positivos). O teste de HPV tem maior sensibilidade que a citologia.
  • Especificidade: A capacidade de um teste identificar corretamente os indivíduos sem a doença (verdadeiros negativos). A citologia tem maior especificidade que o teste de HPV.
  • Valor Preditivo Negativo (VPN): A probabilidade de um indivíduo com um resultado negativo realmente não ter a doença.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE_2020_Q79)

O exame citopatológico (Papanicolau) possui um alto valor preditivo negativo. Isso significa que uma mulher com um resultado citológico normal tem uma probabilidade muito baixa de ter ou desenvolver uma lesão cervical de alto grau nos anos seguintes. É essa característica que fundamenta a segurança do intervalo de rastreamento de 3 anos. A sensibilidade de um único exame citológico não é alta, mas a repetição periódica do teste ao longo do tempo (rastreamento programático) compensa essa limitação e torna o programa eficaz.

Tratamento e Manejo

O manejo depende diretamente do resultado do exame citológico e da faixa etária da paciente, conforme as diretrizes do Ministério da Saúde do Brasil.

Manejo das Alterações Citológicas

Resultado Citológico Conduta
ASC-US (Células Escamosas Atípicas de Significado Indeterminado)
  • Mulheres ≥ 30 anos: Repetir citologia em 6 meses.
  • Mulheres de 25 a 29 anos: Repetir citologia em 12 meses.
  • Adolescentes (< 25 anos): Repetir citologia em 3 anos.
  • Se a segunda citologia for anormal, encaminhar para colposcopia.
LSIL (Lesão Intraepitelial Escamosa de Baixo Grau)
  • Mulheres ≥ 25 anos: Repetir citologia em 6 meses.
  • Adolescentes (< 25 anos): Repetir citologia em 3 anos.
  • Se a segunda citologia for ≥ ASC-US, encaminhar para colposcopia.
ASC-H (Células Escamosas Atípicas, não se pode afastar Lesão de Alto Grau) Encaminhar para Colposcopia.
HSIL (Lesão Intraepitelial Escamosa de Alto Grau) Encaminhar para Colposcopia.
AGC (Células Glandulares Atípicas) Encaminhar para Colposcopia com avaliação do canal endocervical. Investigação endometrial também pode ser necessária.
Câncer Escamoso Invasor ou Adenocarcinoma Encaminhar para serviço de referência em oncologia para confirmação diagnóstica e estadiamento.

Armadilhas do ENARE (Baseado em ENARE_2022_Q65)

A conduta frente ao resultado de ASC-US é uma das mais cobradas e depende crucialmente da idade. A questão clássica apresenta uma paciente com 35 anos e resultado de ASC-US. A conduta correta, segundo as diretrizes brasileiras, é repetir a citologia em 6 meses. Respostas como "encaminhar para colposcopia imediatamente" ou "realizar teste de HPV" (que não é a conduta primária no fluxo do SUS para este caso) estariam incorretas. Lembre-se da diferença: 6 meses para ≥ 30 anos, 12 meses para 25-29 anos.

Complicações e Prognóstico

Impacto Psicológico e Complicações de Procedimentos

Receber um resultado de Papanicolau anormal pode gerar ansiedade e estresse significativos. É importante que o médico acolha a paciente, explique a natureza comum dessas alterações e a alta probabilidade de cura com o acompanhamento adequado.

Os procedimentos diagnósticos e terapêuticos também têm complicações potenciais:

  • Colposcopia e Biópsia: Geralmente bem tolerados, mas podem causar dor leve, sangramento discreto e, raramente, infecção.
  • Procedimentos Excisionais (Exérese da Zona de Transformação - EZT, ou Conização): Utilizados para tratar lesões de alto grau (NIC 2/3). As complicações incluem:
    • Agudas: Sangramento (hemorragia), infecção.
    • Tardias: Estenose do canal cervical (pode causar dismenorreia ou infertilidade) e incompetência istmo-cervical, que aumenta o risco de parto prematuro em gestações futuras.

Prognóstico

O prognóstico do câncer de colo uterino está diretamente relacionado ao estágio da doença no momento do diagnóstico. O rastreamento permite a detecção em fases pré-clínicas:

  • Lesões precursoras (NIC): O tratamento tem taxas de cura próximas a 100%.
  • Câncer em estágio inicial (restrito ao colo): A sobrevida em 5 anos é superior a 90%.
  • Câncer em estágio avançado (com metástases a distância): A sobrevida em 5 anos cai para menos de 20%.

Isso demonstra, inequivocamente, o poder do rastreamento em salvar vidas.

Populações Especiais

As diretrizes de rastreamento podem ser modificadas para grupos específicos de mulheres.

Gestantes

A gestação não é uma contraindicação ao rastreamento. A coleta da citologia pode ser realizada normalmente. Se o resultado for alterado, a colposcopia pode ser realizada com segurança na gravidez. A biópsia cervical só deve ser realizada se houver suspeita de lesão invasora, devido ao risco de sangramento. O tratamento definitivo de lesões precursoras é geralmente adiado para o pós-parto.

Mulheres Imunossuprimidas (Ex: HIV-positivas)

Mulheres vivendo com HIV têm maior risco de aquisição e persistência do HPV, e progressão mais rápida para o câncer. O rastreamento deve ser mais intensivo:

  • Início: Logo após o início da atividade sexual, independentemente da idade.
  • Frequência: Após o diagnóstico de HIV, realizar duas citologias com intervalo de 6 meses no primeiro ano. Se ambas normais, o rastreamento passa a ser anual.
  • CD4: Em pacientes com contagem de linfócitos T-CD4+ < 200 células/mm³, alguns especialistas recomendam manter o rastreamento semestral.

Mulheres Pós-Histerectomia

A necessidade de continuar o rastreamento depende do motivo da histerectomia:

  • Histerectomia total por doença benigna (e.g., mioma, sangramento uterino anormal): Se a mulher não tem história prévia de NIC 2/3, o rastreamento pode ser interrompido.
  • Histerectomia subtotal (colo uterino preservado): A mulher deve continuar o rastreamento seguindo as diretrizes padrão.
  • Histerectomia total por NIC 2 ou NIC 3: A mulher deve continuar o rastreamento da cúpula vaginal por pelo menos 20 anos, com a mesma periodicidade recomendada antes da cirurgia.
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