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Pré-natal de Alto Risco

A gestação de alto risco é definida como qualquer gestação na qual uma condição materna, fetal ou da interação entre ambos aumenta o risco de morbidade ou mortalidade para a mãe ou para o feto, quando comparada a uma gestação de risco habitual. A identificação precoce desses fatores de risco é a pedra angular do cuidado pré-natal, pois permite a implementação de estratégias de vigilância e intervenção que podem modificar positivamente os desfechos. No Brasil, condições como as síndromes hipertensivas, o diabetes gestacional e as doenças infecciosas (sífilis, HIV, Zika) representam um desafio significativo para a saúde pública, tornando o manejo adequado do pré-natal de alto risco uma competência essencial para todos os médicos.

Classificação dos Fatores de Risco

Os fatores que classificam uma gestação como de alto risco são diversos e podem ser categorizados para facilitar a avaliação e o manejo. Eles podem estar presentes antes da gestação, surgir durante a gravidez ou ser relacionados a gestações anteriores.

Condições Maternas Pré-existentes

  • Hipertensão Arterial Crônica (HAC): Pressão arterial ≥ 140/90 mmHg antes da gestação ou diagnosticada antes de 20 semanas de gestação.
  • Diabetes Mellitus (DM): Tipo 1 ou Tipo 2 pré-existente.
  • Cardiopatias: Doença valvar, miocardiopatias, cardiopatias congênitas (corrigidas ou não), arritmias.
  • Nefropatias: Doença renal crônica, história de transplante renal.
  • Doenças Autoimunes: Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES), Síndrome Antifosfolípide (SAF), Artrite Reumatoide.
  • Endocrinopatias: Doenças da tireoide (hipotireoidismo, hipertireoidismo), feocromocitoma.
  • Doenças Hematológicas: Anemia falciforme, talassemias, trombofilias hereditárias ou adquiridas.
  • Doenças Infecciosas Crônicas: HIV, Hepatite B, Hepatite C, Sífilis não tratada ou inadequadamente tratada.
  • Doenças Neurológicas: Epilepsia (especialmente em uso de anticonvulsivantes teratogênicos), esclerose múltipla.
  • Transtornos Psiquiátricos: Depressão grave, transtorno bipolar, esquizofrenia, especialmente com necessidade de uso de psicofármacos.

Complicações da Gestação Atual

  • Síndromes Hipertensivas da Gestação: Pré-eclâmpsia, eclampsia, Síndrome HELLP.
  • Diabetes Mellitus Gestacional (DMG): Intolerância à glicose diagnosticada durante a gestação.
  • Gestação Múltipla: Gemelaridade ou mais.
  • Anormalidades Placentárias: Placenta prévia, acretismo placentário, descolamento prematuro de placenta (DPP).
  • Trabalho de Parto Prematuro (TPP) ou Incompetência Istmocervical.
  • Aloimunização Rh: Presença de anticorpos anti-D em gestante Rh negativo.
  • Distúrbios do Líquido Amniótico: Oligoidrâmnio ou Polidrâmnio.
  • Restrição de Crescimento Fetal (RCF).
  • Sangramento vaginal de 2ª ou 3ª metade.

Fatores Fetais

  • Malformações Fetais: Detectadas por ultrassonografia.
  • Aneuploidias: Como trissomia do 21, 18 ou 13.
  • Arritmias Fetais: Taquicardia ou bradicardia fetal sustentada.
  • Hidropsia Fetal.

Fatores Sociodemográficos e Histórico Obstétrico

  • Idade Materna: Extremos de idade reprodutiva (< 19 anos ou > 35 anos).
  • Índice de Massa Corporal (IMC): Obesidade (IMC ≥ 30 kg/m²) ou baixo peso (IMC < 18,5 kg/m²).
  • Uso de Substâncias: Tabagismo, álcool, drogas ilícitas.
  • História Obstétrica Desfavorável: Óbito fetal ou neonatal anterior, parto prematuro anterior, RCF anterior, pré-eclâmpsia em gestação anterior, abortamento de repetição.
  • Baixa Condição Socioeconômica e Vulnerabilidade Social.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A suspeita de uma gestação de alto risco muitas vezes surge a partir de achados na consulta de pré-natal de rotina. O médico deve estar atento a sinais e sintomas de alerta.

  • Pressão Arterial Elevada: Aferição de PA ≥ 140/90 mmHg em duas ocasiões com intervalo de 4 horas, após 20 semanas de gestação, em paciente previamente normotensa, sugere pré-eclâmpsia. A técnica de aferição correta é fundamental (paciente sentada, em repouso, com o manguito no nível do coração).
  • Altura Uterina Discordante: Uma altura uterina (AU) cuja medida em centímetros difere em mais de 2-3 cm do esperado para a idade gestacional (IG) é um sinal de alerta.
    • AU Menor que o esperado: Pode indicar RCF, oligoidrâmnio ou erro de datação.
    • AU Maior que o esperado: Pode indicar polidrâmnio, macrossomia fetal, gestação múltipla, mola hidatiforme ou miomatose uterina.
  • Redução da Movimentação Fetal: Queixa materna de diminuição ou ausência de movimentos fetais é uma urgência obstétrica e requer avaliação imediata da vitalidade fetal.
  • Sangramento Vaginal: Qualquer sangramento deve ser investigado. No terceiro trimestre, as principais causas são placenta prévia e descolamento prematuro de placenta.
  • Edema Súbito e Generalizado: Edema de face e mãos, especialmente se associado a ganho de peso abrupto (>1 kg/semana) e hipertensão, é altamente sugestivo de pré-eclâmpsia.
  • Sintomas de Gravidade: Cefaleia intensa, distúrbios visuais (escotomas, fotofobia) e dor epigástrica ou em hipocôndrio direito são sinais de alerta para pré-eclâmpsia grave ou iminência de eclampsia.

Avaliação Diagnóstica

Uma vez identificados os fatores de risco ou sinais de alerta, uma investigação complementar direcionada é necessária para confirmar o diagnóstico, avaliar a gravidade e guiar o manejo.

Exames Laboratoriais Específicos

  • Teste Oral de Tolerância à Glicose (TOTG 75g): Realizado entre 24 e 28 semanas para rastreio de Diabetes Mellitus Gestacional (DMG). O diagnóstico é feito com um ou mais valores alterados: Jejum ≥ 92 mg/dL; 1 hora ≥ 180 mg/dL; 2 horas ≥ 153 mg/dL.
  • Proteinúria de 24 horas ou Relação Proteína/Creatinina Urinária: Essencial para o diagnóstico de pré-eclâmpsia. Valores ≥ 300 mg em 24h ou relação ≥ 0,3 são diagnósticos.
  • Painéis de Autoanticorpos: Pesquisa de anticorpos anticardiolipina, anti-β2-glicoproteína I e anticoagulante lúpico em casos de suspeita de SAF. Pesquisa de Anti-Ro/SSA e Anti-La/SSB em gestantes com Lúpos, pelo risco de bloqueio cardíaco congênito.
  • Sorologias para Infecções: Acompanhamento de carga viral (HIV, Hepatite B/C) e títulos de anticorpos (Toxoplasmose, Citomegalovírus, Sífilis).

Ultrassonografia Detalhada e Dopplerfluxometria

  • Ultrassonografia Morfológica: Realizada no 1º trimestre (entre 11-14 semanas) para rastreio de aneuploidias (translucência nucal) e no 2º trimestre (entre 20-24 semanas) para avaliação detalhada da anatomia fetal.
  • Dopplerfluxometria: Ferramenta crucial na vigilância de gestações de alto risco.
    • Artérias Uterinas: Avaliadas no 2º trimestre para rastreio de risco de pré-eclâmpsia e RCF. A persistência de incisura bilateral é um marcador de risco.
    • Artéria Umbilical: Avalia a resistência placentária e o bem-estar fetal em casos de RCF. A diástole zero ou reversa indica grave comprometimento fetal.
    • Artéria Cerebral Média: Avalia a "centralização" fetal (vasodilatação cerebral em resposta à hipóxia) na RCF e o pico de velocidade sistólica para rastreio de anemia fetal na aloimunização Rh.

Métodos de Vigilância do Bem-Estar Fetal

  • Cardiotocografia (CTG): Avalia a frequência cardíaca fetal (FCF) e suas variações. Um resultado "reativo" (presença de acelerações transitórias) é um forte indicador de bem-estar fetal.
  • Perfil Biofísico Fetal (PBF): Combina a CTG com 4 parâmetros ultrassonográficos, avaliando marcadores de função do sistema nervoso central fetal.
Tabela 1: Componentes do Perfil Biofísico Fetal (PBF)
Parâmetro Critério para Pontuação 2 (Normal) Critério para Pontuação 0 (Anormal)
Cardiotocografia (CTG) Reativa (≥2 acelerações de 15 bpm por 15s em 20 min) Não reativa
Movimentos Respiratórios Fetais ≥1 episódio de ≥30 segundos em 30 minutos Ausentes ou <30 segundos em 30 minutos
Movimentos Corporais Fetais ≥3 movimentos amplos do corpo/membros em 30 minutos <3 movimentos em 30 minutos
Tônus Fetal ≥1 episódio de extensão com retorno à flexão (mão, membro) Lento ou ausente
Volume de Líquido Amniótico Índice de Líquido Amniótico (ILA) > 5 cm ou maior bolsão vertical > 2 cm ILA ≤ 5 cm ou maior bolsão vertical ≤ 2 cm (Oligoidrâmnio)

Interpretação do PBF: 8-10 (normal, baixo risco de asfixia); 6 (equívoco, repetir em 24h); 0-4 (anormal, alto risco de asfixia, considerar interrupção da gestação).

Armadilhas do ENARE: O que NÃO é critério obrigatório para Alto Risco?

As provas frequentemente apresentam uma lista de condições e pedem para identificar qual delas não classifica, por si só, a gestação como de alto risco, não exigindo encaminhamento imediato para um centro de referência. Um exemplo clássico é o hematoma subcoriônico. Embora seja uma causa de sangramento no primeiro trimestre e necessite de acompanhamento, um hematoma pequeno e em uma paciente assintomática geralmente tem bom prognóstico e pode ser acompanhado no pré-natal de risco habitual. Em contraste, condições como diabetes gestacional descompensado, pré-eclâmpsia ou restrição de crescimento fetal são indicações claras de encaminhamento para o serviço de alto risco. A chave é diferenciar condições que requerem atenção daquelas que definem o nível de complexidade do cuidado.

Tratamento e Manejo

O manejo da gestação de alto risco é individualizado e frequentemente requer uma abordagem multidisciplinar, envolvendo obstetras, neonatologistas, endocrinologistas, cardiologistas, entre outros especialistas.

Princípios Gerais

  • Vigilância Intensificada: Consultas pré-natais mais frequentes e monitoramento laboratorial e ultrassonográfico seriado.
  • Intervenção Oportuna: O objetivo é equilibrar os riscos maternos e fetais, decidindo o melhor momento para o parto, que maximize os benefícios e minimize os danos.
  • Educação da Paciente: A paciente deve ser uma parceira ativa no cuidado, compreendendo sua condição, os sinais de alerta e a importância da adesão ao tratamento e acompanhamento.

Manejo de Condições Específicas

  • Pré-eclâmpsia:
    • Sem sinais de gravidade: Manejo expectante com controle pressórico (Metildopa, Nifedipino, Hidralazina) e vigilância materno-fetal. Parto programado com 37 semanas.
    • Com sinais de gravidade: Internação hospitalar, sulfato de magnésio para prevenção de eclampsia, controle pressórico rigoroso e programação do parto. Se <34 semanas, administrar corticoide para maturação pulmonar fetal.
  • Diabetes Mellitus Gestacional:
    • 1ª Linha: Terapia nutricional e atividade física.
    • 2ª Linha: Se as metas glicêmicas (Jejum < 95, 1h pós-prandial < 140, 2h pós-prandial < 120) não forem atingidas, iniciar farmacoterapia. A Insulina é a droga de escolha. Metformina e Glibenclamida são opções, mas cruzam a barreira placentária.
  • Trabalho de Parto Prematuro:
    • Tocolíticos: Para inibir as contrações e permitir a ação do corticoide (e.g., Nifedipino, Indometacina).
    • Corticoterapia Antenatal: Betametasona ou Dexametasona para gestações entre 24 e 34 semanas para acelerar a maturação pulmonar fetal.
    • Neuroproteção Fetal: Sulfato de magnésio para gestações com risco de parto iminente antes de 32 semanas, para reduzir o risco de paralisia cerebral.

Raciocínio Clínico

A decisão de quando interromper uma gestação de alto risco é uma das mais complexas na obstetrícia. Ela se baseia na "balança" entre os riscos da prematuridade para o feto versus os riscos de manter a gestação para a mãe e/ou para o feto. Por exemplo, em uma RCF com diástole reversa na artéria umbilical, o risco de óbito fetal intraútero é altíssimo, superando os riscos da prematuridade, justificando a interrupção imediata, mesmo em idades gestacionais precoces.

Complicações e Prognóstico

As gestações de alto risco estão associadas a um aumento significativo de desfechos adversos maternos e perinatais.

Complicações Maternas

  • Danos a órgãos-alvo (renal, hepático, cerebral) nas síndromes hipertensivas.
  • Hemorragia obstétrica (DPP, acretismo placentário).
  • Tromboembolismo venoso.
  • Maior taxa de parto cesárea e suas complicações associadas.
  • Complicações em futuras gestações e aumento do risco de doença cardiovascular a longo prazo.

Complicações Fetais e Neonatais

  • Prematuridade: Principal causa de morbimortalidade neonatal.
  • Restrição de Crescimento Fetal (RCF) e Baixo Peso ao Nascer.
  • Óbito Fetal Intrauterino.
  • Asfixia Perinatal.
  • Macrossomia e Trauma de Parto (em casos de DMG).
  • Hipoglicemia Neonatal (em mães diabéticas).

O prognóstico depende diretamente da patologia de base, da sua gravidade, da idade gestacional no diagnóstico e, crucialmente, da qualidade e do acesso ao cuidado pré-natal especializado.

Protocolos de Encaminhamento e Seguimento

O sistema de saúde deve funcionar em rede, garantindo que a gestante seja cuidada no nível de complexidade adequado à sua necessidade.

Critérios de Encaminhamento para o Pré-natal de Alto Risco

A gestante deve ser encaminhada da Atenção Primária (UBS) para um serviço de referência secundário ou terciário na presença de qualquer um dos fatores de risco mencionados na seção de classificação. O encaminhamento deve ser ágil, com sistema de referência e contrarreferência bem estabelecido.

Frequência do Acompanhamento

A frequência das consultas e dos exames de vigilância é ditada pela condição de risco. Enquanto uma gestação de risco habitual tem consultas mensais até 28 semanas, quinzenais até 36 semanas e semanais a partir de então, uma gestação de alto risco pode exigir acompanhamento semanal ou até mais frequente desde o início.

  • Exemplo 1 (DMG em uso de insulina): Consultas quinzenais ou semanais, controle de perfil glicêmico, ultrassonografias mensais para avaliação de crescimento fetal e líquido amniótico.
  • Exemplo 2 (RCF): Consultas semanais, Doppler de artéria umbilical e cerebral média 1-2 vezes por semana, PBF ou CTG semanal, dependendo da gravidade dos achados do Doppler.
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