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Polidrâmnio

O polidrâmnio, também conhecido como hidrâmnio, é uma condição obstétrica caracterizada pelo acúmulo excessivo de líquido amniótico. É um achado ultrassonográfico relativamente comum que pode ser um marcador de patologias maternas ou fetais subjacentes, ou pode ocorrer de forma isolada (idiopática). Sua presença está associada a um aumento no risco de desfechos perinatais adversos, tornando seu diagnóstico e manejo de grande importância clínica e um tópico frequente em provas de residência.

Introdução & Epidemiologia

Definição

O diagnóstico de polidrâmnio é estabelecido por meio de ultrassonografia obstétrica, utilizando-se duas medidas principais:

  • Índice de Líquido Amniótico (ILA): É a soma da medida do maior bolsão vertical de líquido amniótico, livre de partes fetais e cordão umbilical, em cada um dos quatro quadrantes do útero. Um ILA ≥ 24 cm (ou ≥ 25 cm, dependendo da referência) define polidrâmnio.
  • Maior Bolsão Vertical (MBV): Medida do maior bolsão de líquido amniótico em um único quadrante. Um MBV ≥ 8 cm define polidrâmnio.

Ambos os métodos são aceitos, embora o ILA seja mais comumente utilizado para a classificação da gravidade.

Classificação

O polidrâmnio é classificado em leve, moderado ou grave, com base nos valores do ILA ou MBV. Essa classificação tem implicações prognósticas e orienta a conduta.

Gravidade Índice de Líquido Amniótico (ILA) Maior Bolsão Vertical (MBV)
Leve 24,0 - 29,9 cm 8 - 11 cm
Moderado 30,0 - 34,9 cm 12 - 15 cm
Grave ≥ 35,0 cm ≥ 16 cm

Prevalência e Etiologias Comuns

O polidrâmnio complica cerca de 1-2% de todas as gestações. A maioria dos casos (aproximadamente 80%) é classificada como leve. As causas podem ser divididas em maternas, fetais e idiopáticas.

  • Idiopático: Em cerca de 50-60% dos casos, nenhuma causa subjacente é identificada, especialmente nos casos leves.
  • Diabetes Mellitus Materno: É a causa materna mais comum, respondendo por cerca de 20% dos casos. A hiperglicemia materna leva à hiperglicemia fetal, que causa poliúria osmótica no feto.
  • Anomalias Fetais: Respondem por cerca de 20% dos casos e são mais comuns em polidrâmnio moderado a grave. Incluem anomalias que afetam a deglutição fetal (obstruções gastrointestinais, anomalias do SNC) ou que causam aumento da produção de urina (estados de alto débito cardíaco).
  • Gestação Múltipla: Especialmente em gestações monocoriônicas complicadas pela Síndrome de Transfusão Feto-Fetal (STFF), onde o feto receptor desenvolve polidrâmnio.
  • Isoimunização Rh e Hidropsia Fetal: Condições que levam à anemia fetal e insuficiência cardíaca de alto débito.

Fisiopatologia

O volume do líquido amniótico é mantido por um delicado equilíbrio entre produção e remoção. O polidrâmnio resulta da quebra desse equilíbrio.

Regulação Normal do Líquido Amniótico (2º e 3º Trimestres):

  • Produção Principal: Diurese fetal. O feto produz cerca de 500-1200 mL de urina por dia no termo.
  • Produção Secundária: Secreções do trato respiratório fetal.
  • Remoção Principal: Deglutição fetal. O feto deglute cerca de 200-500 mL por dia no termo, que é absorvido pelo seu trato gastrointestinal.
  • Remoção Secundária: Absorção intramembranosa através da superfície fetal da placenta.

O polidrâmnio ocorre por dois mecanismos principais:

  1. Aumento da Produção de Líquido:
    • Poliúria Fetal: É o mecanismo central no diabetes mellitus materno descompensado. A hiperglicemia fetal atua como um diurético osmótico, aumentando drasticamente a produção de urina. Outras causas incluem estados de alto débito cardíaco fetal, como em anemia severa (hidropsia fetal) ou tumores como o teratoma sacrococcígeo.
  2. Diminuição da Remoção de Líquido:
    • Dificuldade de Deglutição: Qualquer anomalia que impeça ou dificulte a deglutição fetal leva ao acúmulo de líquido. As causas clássicas incluem:
      • Anomalias do Sistema Nervoso Central (SNC): Anencefalia, holoprosencefalia, encefalocele. A ausência de centros neurológicos superiores prejudica o reflexo de deglutição.
      • Obstruções do Trato Gastrointestinal (TGI): Atresia de esôfago (com ou sem fístula traqueoesofágica), atresia duodenal (sinal da "dupla bolha" na ultrassonografia).
      • Anomalias Neuromusculares: Distrofias miotônicas.

Raciocínio Clínico

Diante de um diagnóstico de polidrâmnio, o raciocínio clínico deve ser direcionado para responder a duas perguntas: 1) Qual é a causa? e 2) Qual o risco para a mãe e o feto? A investigação da causa começa com os dois suspeitos mais comuns: diabetes materno (solicitar curva glicêmica) e anomalias fetais (realizar ultrassonografia morfológica detalhada). A avaliação do risco guiará a intensidade do manejo e da vigilância.

Apresentação Clínica & Exame Físico

A apresentação clínica varia com a gravidade e a velocidade de instalação do polidrâmnio. Casos leves podem ser assintomáticos e diagnosticados apenas na ultrassonografia de rotina. Casos moderados a graves, especialmente os de início agudo, costumam ser sintomáticos.

Sintomas Maternos:

  • Sensação de útero grande para a idade gestacional: É a queixa mais comum. A altura uterina é desproporcionalmente maior que a esperada.
  • Dispneia e Ortopneia: A distensão uterina excessiva eleva o diafragma, restringindo a expansão pulmonar.
  • Desconforto Abdominal e Dor: A distensão da parede abdominal e a pressão sobre os órgãos adjacentes podem causar dor significativa.
  • Contrações Uterinas: A sobredistensão das fibras miometriais pode levar ao aumento da irritabilidade uterina e ao trabalho de parto prematuro.
  • Edema de membros inferiores, vulva e parede abdominal: Devido à compressão da veia cava inferior e dos vasos pélvicos.

Achados do Exame Físico:

  • Inspeção: Abdome globoso e distendido, com pele tensa e brilhante.
  • Palpação:
    • Altura uterina significativamente maior que a esperada para a idade gestacional.
    • Dificuldade em palpar as partes fetais (o feto parece "flutuar" no excesso de líquido).
    • Dificuldade em identificar o polo cefálico e a apresentação fetal.
    • Sinal do rechaço fetal positivo e exacerbado.
  • Ausculta: Dificuldade ou impossibilidade de auscultar os batimentos cardíacos fetais (BCF) com o sonar Doppler ou estetoscópio de Pinard, devido ao afastamento do feto da parede abdominal.

Avaliação Diagnóstica

Uma vez confirmado o polidrâmnio pela ultrassonografia (ILA ≥ 24 cm ou MBV ≥ 8 cm), a investigação deve focar em identificar a etiologia.

  1. Ultrassonografia Morfológica Detalhada: É o exame mais importante. Deve ser realizada por um especialista para uma avaliação anatômica fetal completa, buscando ativamente por:
    • SNC: Anencefalia, espinha bífida, ventriculomegalia.
    • TGI: Ausência da bolha gástrica (sugere atresia de esôfago), sinal da "dupla bolha" (sugere atresia duodenal).
    • Tórax e Coração: Avaliação de hidropsia, tumores, hérnia diafragmática.
    • Sistema Urinário: Embora mais associado ao oligoâmnio, algumas condições podem causar poliúria.
    • Placenta e Cordão: Avaliação de corioangioma placentário.
  2. Rastreamento de Diabetes Mellitus Materno: Realizar o Teste Oral de Tolerância à Glicose (TOTG) com 75g de glicose, caso ainda não tenha sido feito no pré-natal. Em pacientes já diabéticas, avaliar o controle glicêmico.
  3. Pesquisa de Isoimunização: Realizar Coombs indireto em pacientes Rh-negativo.
  4. Rastreamento de Infecções Congênitas (TORCHS): Embora sejam causas raras de polidrâmnio (geralmente associado à hidropsia), pode ser considerado em casos selecionados.
  5. Amniocentese para Cariótipo Fetal: Indicada se houver anomalias fetais identificadas na ultrassonografia ou em casos de polidrâmnio grave e inexplicado, devido à alta associação com aneuploidias (especialmente Trissomia do 18 e 21).

Tratamento & Manejo

O manejo depende da etiologia, da gravidade dos sintomas maternos, da idade gestacional e do bem-estar fetal.

Polidrâmnio Leve e Idiopático

A maioria dos casos. O manejo é expectante, com vigilância seriada.

  • Acompanhamento: Ultrassonografias a cada 3-4 semanas para monitorar o ILA e o crescimento fetal.
  • Vigilância do Bem-Estar Fetal: Cardiotocografia (CTG) e/ou Perfil Biofísico Fetal (PBF) podem ser iniciados no terceiro trimestre, especialmente se o ILA estiver no limite superior da normalidade ou aumentando.
  • Parto: A maioria pode aguardar o início espontâneo do trabalho de parto a termo. A indução pode ser considerada entre 39 e 40 semanas.

Polidrâmnio Moderado a Grave ou Sintomático

Requer uma abordagem mais ativa para aliviar os sintomas maternos e reduzir os riscos de complicações.

  • Tratamento da Causa Base: Se uma causa for identificada (ex: controle rigoroso da glicemia no diabetes), ela deve ser tratada.
  • Amniorredução Terapêutica (Amniocentese de Alívio):
    • Indicações: Polidrâmnio grave com sintomas maternos importantes (dispneia severa, dor abdominal incapacitante) ou trabalho de parto prematuro associado.
    • Técnica: Procedimento invasivo, guiado por ultrassom, onde uma agulha é inserida na cavidade amniótica para drenar o excesso de líquido lentamente (geralmente 1-2 litros em 1-2 horas).
    • Objetivo: Alívio sintomático materno e prolongamento da gestação. Não visa normalizar o ILA.
    • Riscos: Trabalho de parto prematuro, rotura prematura de membranas, descolamento prematuro de placenta, corioamnionite.
    • Recorrência: O líquido frequentemente reacumula, podendo necessitar de procedimentos seriados.
  • Terapia Farmacológica (Indometacina):
    • Mecanismo de Ação: É um inibidor da prostaglandina sintetase (AINE). Reduz o fluxo sanguíneo renal fetal, diminuindo a produção de urina e, consequentemente, o volume de líquido amniótico.
    • Indicações: Usada como terapia de segunda linha em casos selecionados de polidrâmnio sintomático, geralmente antes de 32 semanas de gestação.
    • Contraindicações: Uso após 32 semanas de gestação devido ao alto risco de fechamento prematuro do ducto arterioso fetal. Também contraindicada em insuficiência renal materna, úlcera péptica e em fetos com suspeita de disfunção renal.
    • Monitoramento: Requer vigilância ultrassonográfica seriada (a cada 48-72h) do ILA e, crucialmente, do ducto arterioso fetal com Doppler para detectar sinais de constrição.

Armadilhas do ENARE

A principal armadilha relacionada ao tratamento é o uso da Indometacina. Lembre-se da idade gestacional limite: NÃO utilizar após 32 semanas. Questões podem apresentar um cenário de uma gestante com 34 semanas e polidrâmnio sintomático, oferecendo indometacina como opção. A resposta correta seria a amniorredução terapêutica. A complicação mais temida da indometacina é o fechamento do ducto arterioso, levando à hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca direita no feto.

Complicações & Prognóstico

O polidrâmnio está associado a um risco aumentado de diversas complicações maternas e fetais, sendo o risco proporcional à gravidade do acúmulo de líquido.

Complicação Mecanismo Fisiopatológico
Trabalho de Parto Prematuro (TPP) e Rotura Prematura de Membranas (RPMO) A sobredistensão uterina aumenta a irritabilidade miometrial e a pressão sobre as membranas amnióticas. É a complicação mais comum.
Prolapso de Cordão Umbilical No momento da rotura das membranas, o grande e súbito fluxo de líquido pode arrastar o cordão umbilical para frente da apresentação fetal. É uma emergência obstétrica.
Descolamento Prematuro de Placenta (DPP) A descompressão uterina rápida (após a rotura das membranas ou amniorredução) pode causar cisalhamento e separação da placenta.
Apresentação Fetal Anômala (pélvica, córmica) O excesso de líquido permite maior mobilidade fetal, impedindo que o feto se encaixe na pelve em apresentação cefálica.
Hemorragia Pós-Parto A sobredistensão crônica do útero leva à atonia uterina no pós-parto, que é a principal causa de hemorragia puerperal.
Macrossomia Fetal Frequentemente associada ao diabetes materno, que é uma causa comum de polidrâmnio.

Conceito-Chave Validado pelo Exame: Associação com Pós-Termismo

A questão ENARE 2024 (Q77) citou uma associação entre polidrâmnio e gestação pós-termo. Esta é uma associação atípica e deve ser vista como uma armadilha. Classicamente, a gestação pós-termo está fortemente associada ao OLIGOÂMNIO, devido à insuficiência placentária e à redistribuição do fluxo sanguíneo fetal, que diminui a perfusão renal e a diurese. Uma possível explicação para essa associação em uma questão de prova seria um cenário específico onde uma anomalia fetal que causa polidrâmnio (ex: anencefalia) também leva a uma disfunção do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal fetal, resultando na falha da deflagração do trabalho de parto e, consequentemente, no pós-termismo. No entanto, para fins de prova, a associação primária e mais forte do pós-termismo é com o oligoâmnio.

Condições Associadas

A identificação do polidrâmnio deve sempre levar a uma busca ativa por condições subjacentes. A lista de diagnósticos diferenciais é extensa.

Causas Maternas

  • Diabetes Mellitus (pré-gestacional ou gestacional): A causa materna mais comum e importante.
  • Isoimunização Rh: Leva à anemia fetal, hidropsia e poliúria por alto débito.

Causas Fetais

  • Anomalias do SNC: Anencefalia (a causa clássica de polidrâmnio por defeito de deglutição), espinha bífida, holoprosencefalia.
  • Anomalias do TGI: Atresia esofágica, atresia/estenose duodenal, hérnia diafragmática.
  • Anomalias Cromossômicas: Trissomia do 18 (Edwards), Trissomia do 21 (Down), Trissomia do 13 (Patau).
  • Tumores Fetais: Teratoma sacrococcígeo, que pode causar insuficiência cardíaca de alto débito.
  • Hidropsia Fetal Não-Imune: Causada por infecções (parvovírus B19), arritmias cardíacas, anomalias estruturais cardíacas, etc.

Causas Placentárias e de Anexos

  • Corioangioma: Tumor vascular da placenta que pode funcionar como um shunt arteriovenoso, levando a um estado de alto débito fetal.
  • Gestação Gemelar Monocoriônica: Síndrome de Transfusão Feto-Fetal (STFF), onde o gêmeo receptor desenvolve polidrâmnio e o doador, oligoâmnio.

Idiopáticas

  • Representam a maioria dos casos, principalmente os leves. O prognóstico nesses casos é geralmente bom, embora ainda haja um risco ligeiramente aumentado de macrossomia e complicações no parto.
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