Placenta Prévia
A Placenta Prévia (PP) é uma das principais causas de sangramento na segunda metade da gestação, representando uma condição de alto risco obstétrico. O seu diagnóstico e manejo adequados são cruciais para a redução da morbimortalidade materna e perinatal, sendo um tema de alta frequência e relevância nas provas de residência, incluindo o ENARE.
Introdução & Epidemiologia
Definição
Placenta Prévia é definida como a implantação da placenta, total ou parcialmente, no segmento inferior do útero, sobrepondo-se ou posicionando-se muito próxima ao orifício cervical interno. Após 28 semanas de gestação, a placenta que se encontra a menos de 2 cm do orifício interno é considerada prévia.
Classificação
A classificação da placenta prévia é feita com base na sua relação com o orifício cervical interno, avaliada preferencialmente por ultrassonografia transvaginal. A terminologia clássica (completa, parcial, marginal) tem sido simplificada na prática clínica atual, mas ainda é fundamental para o entendimento e para as provas.
| Classificação | Descrição | Implicação Clínica |
|---|---|---|
| Placenta Prévia Completa (ou Total) | A placenta recobre completamente o orifício cervical interno. | Indicação absoluta de parto por cesariana. Maior risco de sangramento. |
| Placenta Prévia Parcial | A placenta recobre parcialmente o orifício cervical interno. | Indicação absoluta de parto por cesariana. |
| Placenta Prévia Marginal | A borda da placenta atinge exatamente a margem do orifício cervical interno, mas não o recobre. | O parto vaginal pode ser considerado em casos selecionados, mas a cesariana é frequentemente necessária. |
| Placenta de Inserção Baixa | A borda da placenta está implantada no segmento inferior do útero, a menos de 2 cm do orifício cervical interno, mas não o atinge. | Muitas vezes "migra" para longe do colo com o crescimento uterino. Se persistir a menos de 2 cm no termo, a cesariana é geralmente indicada. |
Raciocínio Clínico
O termo "migração placentária" é um conceito importante. A placenta não se move de fato. O que ocorre é o desenvolvimento e alongamento do segmento inferior do útero durante o segundo e terceiro trimestres. Esse crescimento "puxa" o local de implantação placentária para uma posição mais alta em relação ao colo uterino. Por isso, um diagnóstico de placenta de inserção baixa no segundo trimestre pode se resolver espontaneamente até o termo.
Incidência e Fatores de Risco
A incidência da placenta prévia é de aproximadamente 1 para cada 200 gestações a termo. A presença de fatores de risco aumenta significativamente essa probabilidade. O conhecimento desses fatores é essencial para a suspeita clínica.
- Cesárea Anterior: Este é o fator de risco mais importante. A cicatriz uterina no segmento inferior é um local de baixa vascularização, o que favorece a implantação da placenta nessa área para obter suprimento sanguíneo adequado. O risco aumenta exponencialmente com o número de cesáreas.
- Idade Materna Avançada (> 35 anos): Associada a alterações na vascularização endometrial e miometrial.
- Multiparidade: Múltiplas gestações podem levar a áreas de cicatrização ou vascularização inadequada no fundo uterino, favorecendo a implantação em áreas mais baixas.
- Cirurgia Uterina Prévia: Procedimentos como miomectomia, curetagem uterina ou qualquer cirurgia que resulte em cicatriz endometrial.
- Tabagismo e Uso de Cocaína: A hipoxemia induzida por essas substâncias pode levar a uma hipertrofia placentária compensatória (placentomegalia), aumentando a superfície placentária e a chance de cobrir o orifício interno.
- Gestação Múltipla: A necessidade de uma maior superfície placentária para múltiplos fetos aumenta a probabilidade de que ela se estenda até o segmento inferior.
Fisiopatologia
A causa exata da implantação baixa da placenta é desconhecida, mas a teoria predominante envolve a busca da placenta por um leito endometrial mais bem vascularizado. Condições que criam cicatrizes ou alteram a vascularização do fundo e corpo uterino (como cesáreas e miomectomias) forçam a implantação no segmento inferior.
O sangramento na placenta prévia ocorre devido a um mecanismo mecânico inevitável. Durante o terceiro trimestre, o útero passa por mudanças fisiológicas para se preparar para o parto:
- Formação do Segmento Inferior: O istmo uterino se alonga e se torna mais fino, formando o segmento inferior.
- Esvaecimento e Dilatação Cervical: O colo uterino começa a se modificar, mesmo antes do início do trabalho de parto.
A placenta é um órgão relativamente inelástico. À medida que o segmento inferior se estira e o colo se modifica, ocorrem forças de cisalhamento na interface entre a placenta e a parede uterina. Isso leva à ruptura dos vasos sanguíneos maternos (vasos uteroplacentários) nesse local, resultando em sangramento. Como esse processo não envolve contração uterina dolorosa nem descolamento isquêmico, o sangramento é classicamente indolor.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica da placenta prévia é uma das mais clássicas da obstetrícia e frequentemente cobrada em exames.
Quadro Clínico Clássico
- Sangramento Indolor: É o sintoma cardinal. A ausência de dor diferencia a PP do Descolamento Prematuro de Placenta (DPP).
- Sangue Vermelho Vivo: O sangue é de origem materna e recente, não tendo tempo para oxidar e escurecer.
- Início Súbito e Imotivado: O sangramento frequentemente começa sem aviso, muitas vezes em repouso ou durante o sono.
- Recorrente e Progressivo: É comum haver um episódio inicial de sangramento leve ("sangramento sentinela"), que cessa espontaneamente. Episódios subsequentes tendem a ser de maior volume.
Exame Físico
- Avaliação Geral: Avaliar os sinais vitais maternos (pressão arterial, frequência cardíaca) para estimar a perda sanguínea e o grau de instabilidade hemodinâmica.
- Palpação Abdominal: O útero geralmente se apresenta relaxado, indolor e com tônus normal. Isso contrasta fortemente com o útero hipertônico e doloroso ("útero lenhoso") do DPP.
- Apresentação Fetal: A apresentação fetal pode ser anômala (pélvica, córmica), pois a placenta no polo inferior impede o encaixe da cabeça fetal.
- Batimentos Cardíacos Fetais (BCF): Geralmente estão presentes e normais, a menos que haja hipovolemia materna grave ou um descolamento placentário associado.
Armadilhas do ENARE
O TOQUE VAGINAL É ABSOLUTAMENTE CONTRAINDICADO! Diante de qualquer gestante com sangramento de segunda metade, a primeira hipótese a ser afastada é a de placenta prévia. A realização de um toque vaginal pode perfurar a placenta, desencadeando uma hemorragia maciça e catastrófica. O diagnóstico da localização placentária deve ser feito SEMPRE por ultrassonografia antes de qualquer exame intravaginal.
O exame especular, por outro lado, pode e deve ser realizado com cuidado para avaliar a origem do sangramento (confirmar que é intrauterino) e descartar lesões locais (cervicite, pólipos, trauma).
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022, Q62)
A questão típica do ENARE apresentará um cenário de uma gestante no terceiro trimestre com sangramento vaginal indolor e recorrente. A principal hipótese diagnóstica que o candidato deve identificar é Placenta Prévia. A conduta imediata envolve a internação hospitalar, avaliação da vitalidade fetal e materna, e a solicitação de uma ultrassonografia para confirmar o diagnóstico, sendo proscrito o toque vaginal.
Diagnóstico
Ultrassonografia
A ultrassonografia é o padrão-ouro para o diagnóstico de placenta prévia.
- Ultrassonografia Transvaginal (USG-TV): É o método mais acurado e seguro. Permite a visualização precisa da relação entre a borda placentária e o orifício cervical interno. Apesar do receio inicial, é um procedimento seguro quando realizado por um profissional experiente, pois o transdutor é inserido no fórnice vaginal e não avança pelo canal cervical.
- Ultrassonografia Transabdominal (USG-TA): É útil como método de rastreio inicial. No entanto, sua acurácia é limitada por fatores como bexiga cheia, obesidade materna e apresentação fetal cefálica, que pode obscurecer o segmento inferior. Se a USG-TA sugerir placenta prévia, a confirmação com USG-TV é mandatória.
Avaliação Laboratorial
A avaliação laboratorial visa quantificar a perda sanguínea e preparar para uma possível emergência hemorrágica.
- Hemograma completo: Avaliar o nível de hemoglobina e hematócrito para diagnosticar anemia.
- Tipagem sanguínea e Fator Rh: Essencial para a preparação de hemoderivados.
- Prova Cruzada e Reserva de Sangue: Pelo menos 2-4 unidades de concentrado de hemácias devem estar disponíveis.
- Coagulograma: Importante em casos de sangramento maciço para avaliar a possibilidade de coagulopatia de consumo.
Diagnóstico Diferencial
É fundamental diferenciar a placenta prévia de outras causas de sangramento na segunda metade da gestação.
| Condição | Dor | Sangue | Tônus Uterino | Sofrimento Fetal |
|---|---|---|---|---|
| Placenta Prévia | Ausente | Vermelho vivo, recorrente | Normal | Raro (exceto em hipovolemia materna grave) |
| Descolamento Prematuro de Placenta (DPP) | Presente, súbita e intensa | Escuro, geralmente único | Hipertônico ("útero lenhoso") | Frequente e precoce |
| Vasa Prévia | Ausente | Vermelho vivo, após rotura de membranas | Normal | Grave e imediato (bradicardia, padrão sinusoidal) |
| Rotura Uterina | Dor súbita e lancinante, seguida de alívio | Variável (interno/externo) | Perda do contorno, partes fetais fáceis de palpar | Grave e imediato |
Tratamento e Manejo
O manejo da placenta prévia depende de três fatores principais: a idade gestacional, a estabilidade hemodinâmica da mãe e o bem-estar fetal.
Manejo Inicial (Episódio Agudo de Sangramento)
- Hospitalização: Toda paciente com suspeita de PP e sangramento ativo deve ser internada.
- Estabilização Materna:
- Garantir dois acessos venosos calibrosos (e.g., Jelco 16G ou 18G).
- Iniciar infusão de cristaloide (Ringer Lactato ou Soro Fisiológico).
- Monitorização contínua dos sinais vitais.
- Coletar exames laboratoriais e solicitar reserva de sangue.
- Avaliação Fetal: Monitorização contínua da frequência cardíaca fetal através da cardiotocografia (CTG).
Conduta Expectante vs. Interrupção da Gestação
Conduta Expectante
- Indicações: Gestação pré-termo (< 36-37 semanas), mãe hemodinamicamente estável, feto sem sinais de sofrimento e sangramento que cessou ou é mínimo.
- Medidas:
- Repouso pélvico: Proibição de toque vaginal e contato íntimo.
- Corticoterapia Antenatal: Administrar um ciclo de betametasona ou dexametasona para maturação pulmonar fetal se a idade gestacional for inferior a 34 semanas.
- Tocólise: O uso de tocolíticos é controverso. Pode ser considerado com extrema cautela por um curto período (48h) para permitir a ação do corticoide, mas está contraindicado em sangramento ativo ou instabilidade hemodinâmica.
Interrupção da Gestação (Parto)
- Indicações:
- Mãe com instabilidade hemodinâmica ou sangramento grave e persistente.
- Feto com vitalidade não tranquilizadora (sofrimento fetal).
- Maturidade fetal atingida (geralmente entre 36 e 37 semanas e 6 dias, mesmo em pacientes assintomáticas, devido ao risco de sangramento imprevisível e maciço).
- Via de Parto: A cesariana é a via de parto de eleição para todas as placentas prévias completas, parciais ou marginais. Em casos de placenta de inserção baixa, onde a borda está a mais de 2 cm do orifício interno, o parto vaginal pode ser considerado, mas com alto grau de vigilância e preparo para uma cesariana de emergência.
Complicações e Prognóstico
Complicações Maternas
- Hemorragia: Pode ocorrer antes, durante ou após o parto. A hemorragia pós-parto é um risco particular, pois o segmento inferior do útero, onde a placenta estava implantada, tem menor contratilidade muscular, levando à atonia uterina.
- Choque Hipovolêmico.
- Necessidade de Transfusão Sanguínea.
- Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD): Em casos de hemorragia maciça.
- Histerectomia de Emergência: Necessária para controlar o sangramento incoercível, especialmente quando associado ao acretismo placentário.
- Acretismo Placentário (Placenta Accreta Spectrum - PAS): A complicação mais temida.
Complicações Fetais e Neonatais
- Prematuridade: Principal causa de morbimortalidade neonatal, seja por parto de emergência ou trabalho de parto prematuro.
- Baixo Peso ao Nascer.
- Anemia Fetal/Neonatal.
- Aumento da Mortalidade Perinatal.
Condições Associadas e Considerações Especiais
Espectro do Acretismo Placentário (Placenta Accreta Spectrum - PAS)
O PAS refere-se à aderência anormal da placenta à parede uterina, onde as vilosidades coriônicas invadem o miométrio devido a uma falha na decídua basal. A sua associação com a placenta prévia, especialmente em úteros com cicatriz de cesárea, é dramática.
- Fisiopatologia: A implantação da placenta sobre uma cicatriz uterina (área com decídua deficiente) permite que as vilosidades invadam mais profundamente.
- Classificação:
- Placenta Accreta: Aderência superficial ao miométrio.
- Placenta Increta: Invasão profunda no miométrio.
- Placenta Percreta: Invasão através de toda a parede miometrial, podendo atingir órgãos adjacentes (ex: bexiga).
Raciocínio Clínico
A combinação de Placenta Prévia + Cesárea Anterior deve imediatamente levantar a suspeita de Acretismo Placentário. O risco de PAS em uma paciente com PP e uma cesárea prévia é de ~10-25%, subindo para >60% com três ou mais cesáreas. O diagnóstico pré-natal com ultrassom (e, se necessário, ressonância magnética) é fundamental para planejar o parto.
O manejo do PAS suspeito requer uma abordagem multidisciplinar em um centro terciário, com planejamento para uma cesárea-histerectomia programada, com a placenta deixada in situ para evitar hemorragia maciça na tentativa de remoção.
Manejo em Cenários de Baixos Recursos
Em locais com acesso limitado a ultrassom, banco de sangue e cirurgia de emergência, o manejo é desafiador. A suspeita clínica baseada no sangramento indolor é fundamental. A conduta deve focar na transferência imediata e segura da paciente para um centro de referência com capacidade para realizar cesarianas de emergência e transfusões sanguíneas. A vigilância e a antecipação do risco são as principais ferramentas nesses cenários.
