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Parvovírus B19 (Eritema Infeccioso) Durante a Gestação

A infecção pelo Parvovírus B19 durante a gestação é um tema de grande relevância clínica e para as provas de residência, devido ao seu potencial de causar complicações fetais graves, como a hidropsia fetal. Embora a infecção materna seja frequentemente branda ou assintomática, a vigilância e o manejo adequado são cruciais para garantir um bom desfecho fetal.

Introdução e Epidemiologia

O Parvovírus B19 é um vírus de DNA de fita simples, não envelopado, que é o agente etiológico do eritema infeccioso, popularmente conhecido como "quinta doença". Esta é uma das exantemáticas clássicas da infância.

A soroprevalência na população geral é alta, com cerca de 50-60% dos adultos em idade reprodutiva possuindo anticorpos IgG, indicando imunidade prévia. Isso significa que mais da metade das gestantes estão protegidas contra a infecção primária. O problema reside no grupo de 40-50% de gestantes que são suscetíveis.

Modos de Transmissão

A principal via de transmissão do Parvovírus B19 é através de gotículas respiratórias. O período de maior contagiosidade ocorre na fase prodrômica, antes do aparecimento do exantema característico. A transmissão também pode ocorrer por via vertical (transplacentária) e, mais raramente, por transfusão de hemoderivados.

Populações de Risco

O risco de infecção é maior para gestantes não imunes que têm contato próximo e prolongado com crianças em idade escolar ou pré-escolar, que são o principal reservatório do vírus. Grupos de risco incluem:

  • Professoras e funcionárias de creches e escolas.
  • Profissionais de saúde pediátrica.
  • Mães com outros filhos pequenos em casa.

A taxa de transmissão vertical da mãe infectada para o feto é de aproximadamente 30%. No entanto, nem todo feto infectado desenvolverá complicações.

Fisiopatologia

A compreensão da fisiopatologia é fundamental para entender as manifestações clínicas e o manejo da infecção.

Tropismo Viral e Crise Aplásica

O Parvovírus B19 possui um tropismo específico por células progenitoras eritroides na medula óssea e no fígado fetal. O vírus se liga ao antígeno P do grupo sanguíneo (globosídeo), que é abundantemente expresso na superfície dessas células. Ao infectá-las, o vírus induz a lise celular, interrompendo a eritropoiese (produção de glóbulos vermelhos).

Em um adulto saudável, essa interrupção causa uma crise aplásica transitória, que geralmente é clinicamente imperceptível, pois a meia-vida das hemácias é de 120 dias. No entanto, no feto, a situação é dramaticamente diferente: a meia-vida das hemácias fetais é muito mais curta e a taxa de produção sanguínea é extremamente alta para suportar o rápido crescimento. A interrupção da eritropoiese por 7-10 dias pode levar a uma anemia fetal grave.

Patogênese da Hidropsia Fetal Não Imune

A hidropsia fetal é a complicação mais temida da infecção congênita pelo Parvovírus B19 e resulta diretamente da anemia fetal severa. A sequência de eventos é a seguinte:

  1. Anemia Fetal Grave: A destruição dos precursores eritroides leva a uma queda acentuada do hematócrito fetal.
  2. Hipóxia Tecidual: A capacidade de transporte de oxigênio do sangue diminui, resultando em hipóxia generalizada.
  3. Insuficiência Cardíaca de Alto Débito: Em resposta à hipóxia, o coração fetal tenta compensar aumentando o débito cardíaco. Esse esforço contínuo leva à insuficiência cardíaca congestiva de alto débito.
  4. Extravasamento de Fluido: A insuficiência cardíaca aumenta a pressão venosa central e a pressão hidrostática capilar. Concomitantemente, a hipóxia pode causar dano endotelial, aumentando a permeabilidade vascular. A disfunção hepática secundária à hipóxia e à hematopoiese extramedular pode levar à hipoalbuminemia, diminuindo a pressão oncótica.
  5. Hidropsia Fetal: O resultado final é o acúmulo de líquido em pelo menos dois compartimentos fetais, caracterizando a hidropsia: ascite, derrame pleural, derrame pericárdico e edema de pele/couro cabeludo.

Raciocínio Clínico

Por que a hidropsia é "não imune"? O termo "hidropsia imune" refere-se classicamente àquela causada pela isoimunização Rh, onde anticorpos maternos destroem as hemácias fetais. No caso do Parvovírus B19, a causa é uma falha na produção de hemácias (aplasia) e não uma destruição mediada por anticorpos. Portanto, é classificada como uma causa de hidropsia fetal não imune.

Apresentação Clínica e Exame Físico

Apresentação Materna

A infecção na gestante pode ser polimórfica, variando de assintomática a um quadro clínico florido.

  • Assintomática: Em até 50% dos casos.
  • Sintomas Inespecíficos (Pródromo): Febre baixa, mal-estar, cefaleia, mialgia e sintomas de infecção de via aérea superior.
  • Exantema Clássico: Ocorre em duas fases.
    1. Fase 1: Eritema facial intenso ("face esbofeteada" ou "slapped-cheek"), que caracteristicamente poupa a ponte nasal e a região perioral.
    2. Fase 2: Exantema maculopapular rendilhado ou reticular que surge no tronco e se espalha para as extremidades. Pode ser pruriginoso e recidivar por semanas, desencadeado por calor, exercício ou estresse.
  • Artralgia/Artrite: Muito comum em adultos (até 80% das mulheres), tipicamente uma poliartropatia simétrica que afeta as pequenas articulações das mãos, punhos, tornozelos e joelhos. Pode mimetizar a artrite reumatoide.

Apresentação Fetal

O feto não apresenta sinais clínicos externos. A suspeita e o diagnóstico são inteiramente dependentes de exames de imagem.

  • Achados Ultrassonográficos: A principal manifestação é a hidropsia fetal. Os achados incluem:
    • Ascite (acúmulo de líquido na cavidade abdominal).
    • Derrame pleural e/ou pericárdico.
    • Edema de pele e do couro cabeludo (>5 mm).
    • Placentomegalia (placenta espessada) e polidrâmnio também podem estar presentes.

Avaliação Diagnóstica

Diagnóstico Materno

A confirmação da infecção materna é feita por sorologia, com a dosagem de anticorpos específicos IgM e IgG para o Parvovírus B19.

Interpretação da Sorologia para Parvovírus B19 na Gestante
IgM IgG Interpretação Clínica Conduta
Negativo Negativo Suscetível à infecção. Orientar sobre prevenção. Repetir sorologia em 4 semanas se houver exposição de risco.
Negativo Positivo Infecção passada. Imune. Tranquilizar a paciente. Não há risco para a gestação atual.
Positivo Negativo ou Positivo Infecção aguda ou recente. Iniciar vigilância fetal com ultrassonografia seriada e Doppler da artéria cerebral média.

Avaliação Fetal

Uma vez confirmada a infecção materna aguda, a vigilância fetal é mandatória para detectar precocemente o desenvolvimento de anemia.

  • Ultrassonografia Seriada: Realizada a cada 1-2 semanas por um período de 8 a 12 semanas após a infecção materna. O objetivo é procurar por sinais precoces de hidropsia (placentomegalia, cardiomegalia, ascite mínima).
  • Dopplervelocimetria da Artéria Cerebral Média (ACM): Este é o método não invasivo padrão-ouro para o rastreamento de anemia fetal.
    • Princípio: Em estados anêmicos, a viscosidade sanguínea diminui e o débito cardíaco aumenta para manter a oxigenação cerebral. Isso resulta em um aumento da velocidade do fluxo sanguíneo.
    • Técnica: Mede-se o pico de velocidade sistólica (PVS) na artéria cerebral média.
    • Interpretação: O valor obtido é comparado com a mediana para a idade gestacional. Um valor de PVS da ACM > 1,5 Múltiplos da Mediana (MoM) é altamente preditivo de anemia fetal moderada a grave e indica a necessidade de investigação invasiva (cordocentese).

Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado pelo Exame

Questões do ENARE (como a ENARE_2024_Q75) frequentemente testam o conhecimento sobre a principal complicação fetal do Parvovírus B19 e seu método de avaliação. Lembre-se: a principal complicação é a anemia fetal grave, que pode levar à hidropsia. O melhor método não invasivo para rastrear e avaliar o grau de anemia fetal é a Dopplervelocimetria do pico de velocidade sistólica da artéria cerebral média (PVS-ACM). A amniocentese para PCR viral confirma a infecção fetal, mas não avalia a sua consequência mais importante, que é a anemia.

Tratamento e Manejo

Manejo Materno

O tratamento para a gestante é puramente sintomático e de suporte. Analgésicos (paracetamol) e anti-inflamatórios não esteroides (com cautela e evitando no terceiro trimestre) podem ser usados para a artralgia. Não há terapia antiviral específica.

Manejo Fetal

O manejo fetal é focado na detecção e tratamento da anemia.

  • Vigilância: Ultrassonografia e Doppler da ACM seriados, como descrito acima.
  • Transfusão Sanguínea Intrauterina: É a principal intervenção para fetos com anemia grave.
    • Indicação: PVS da ACM > 1,5 MoM ou presença de hidropsia fetal na ultrassonografia.
    • Procedimento (Cordocentese): Sob guia ultrassonográfico, uma agulha é inserida no cordão umbilical (preferencialmente na veia umbilical) para coletar uma amostra de sangue fetal (para confirmar o hematócrito) e, em seguida, transfundir concentrado de hemácias (O negativo, CMV negativo, irradiado e leucorreduzido).
    • Objetivo: Corrigir a anemia, reverter a insuficiência cardíaca de alto débito e resolver a hidropsia.
    • Seguimento: Novas transfusões podem ser necessárias a cada 2-4 semanas até que a medula óssea fetal se recupere ou até que o feto atinja a maturidade para o parto.

Complicações e Prognóstico

O risco e o prognóstico dependem crucialmente da idade gestacional em que a infecção materna ocorre.

  • Risco Máximo: A infecção que ocorre antes de 20 semanas de gestação acarreta o maior risco de perda fetal (abortamento espontâneo ou óbito fetal), estimado em cerca de 10%. É nesse período que a eritropoiese fetal é mais vulnerável.
  • Após 20 semanas: O risco de complicações fetais graves diminui significativamente.
  • Prognóstico: Para a mãe, o prognóstico é excelente. Para o feto, na ausência de tratamento, a hidropsia fetal tem alta mortalidade. No entanto, com o diagnóstico precoce da anemia e o tratamento com transfusão intrauterina, as taxas de sobrevida fetal superam 80-90%. A maioria dos sobreviventes tem um desenvolvimento neurológico normal a longo prazo.

Armadilhas do ENARE

Uma distinção crucial: o Parvovírus B19 não é considerado um teratógeno. Ele não causa malformações estruturais congênitas (como o vírus da rubéola ou o citomegalovírus). Sua ação deletéria é a citotoxicidade sobre os precursores eritroides, levando à anemia e suas consequências hemodinâmicas. Uma questão de prova pode tentar confundir o candidato, incluindo "anomalias congênitas" como uma complicação do Parvovírus B19.

Populações Especiais

Gestantes com hemoglobinopatias subjacentes ou outras condições que cursam com hemólise crônica representam um grupo de risco especial para complicações maternas.

Gestantes com Doença Falciforme ou outras Anemias Hemolíticas

Pacientes com doenças como anemia falciforme, esferocitose hereditária ou talassemia dependem de uma eritropoiese cronicamente acelerada para compensar a curta sobrevida de suas hemácias. A infecção pelo Parvovírus B19, ao interromper a produção de glóbulos vermelhos, pode precipitar uma crise aplásica grave na mãe. Isso se manifesta como uma queda súbita e profunda da hemoglobina, com reticulocitopenia, podendo levar à insuficiência cardíaca e necessidade de transfusões de emergência para a mãe, independentemente do acometimento fetal.

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