Introdução & Epidemiologia
O partograma é uma ferramenta gráfica, visual e de baixo custo, recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Ministério da Saúde do Brasil, para o acompanhamento do trabalho de parto. Sua principal finalidade é registrar de forma sistemática e cronológica os principais dados da evolução do parto, permitindo a detecção precoce de desvios da normalidade. Ele funciona como um sistema de alerta, auxiliando a equipe de saúde a identificar parturientes que necessitam de uma avaliação mais aprofundada ou de intervenções para prevenir desfechos desfavoráveis.
O papel central do partograma é o diagnóstico precoce da distócia, que é definida como um trabalho de parto anormalmente lento ou difícil. A distócia é uma das principais indicações para cesariana, especialmente em primigestas, e está associada a um aumento significativo da morbimortalidade materna e perinatal. As causas de distócia são multifatoriais e podem ser divididas em três grandes categorias, conhecidas como os "3 Ps" do trabalho de parto.
- Incidência: A incidência de distócia varia amplamente, mas estima-se que ocorra em cerca de 8-11% de todos os partos. É mais comum em nulíparas (primigestas) do que em multíparas.
- Causas Principais: As causas podem ser resumidas em problemas com as forças expulsivas (contrações uterinas ineficazes), problemas com o feto (tamanho, apresentação ou posição anômalas) ou problemas com a pelve materna (desproporção cefalopélvica).
Raciocínio Clínico
Por que o partograma é tão crucial? Porque ele transforma uma avaliação subjetiva da "evolução do parto" em dados objetivos e visuais. Um olhar rápido ao gráfico pode revelar uma tendência de progressão lenta muito antes que a situação se torne crítica. Ele padroniza a vigilância, facilitando a comunicação entre a equipe e a tomada de decisão baseada em evidências, em vez de impressões.
Fisiopatologia
A progressão normal do trabalho de parto depende da interação harmoniosa entre três fatores interdependentes, conhecidos como os "3 Ps" de Friedman. A distócia ocorre quando há uma anormalidade em um ou mais desses componentes.
1. Força (Powers) - A Contratilidade Uterina
Refere-se à força gerada pelas contrações uterinas, que são responsáveis pela dilatação do colo e pela descida do feto. A contratilidade uterina normal é caracterizada por:
- Frequência: O número de contrações em um período de 10 minutos. O ideal na fase ativa são 3 a 5 contrações em 10 minutos.
- Duração: O tempo desde o início até o fim de uma contração. O ideal é de 40 a 60 segundos.
- Intensidade: A força da contração. Clinicamente, é avaliada pela palpação do fundo uterino (tônus). Objetivamente, pode ser medida em Unidades de Montevidéu (UM) através de um cateter de pressão intrauterino. Uma atividade uterina adequada para a progressão do parto é geralmente superior a 200 UM.
Distócias Funcionais: São as mais comuns e ocorrem por disfunção da contratilidade uterina. Podem ser hipoativas (contrações insuficientes em frequência ou intensidade, a causa mais comum de distócia) ou, mais raramente, hiperativas (taquissistolia, >5 contrações em 10 minutos, ou hipertonia, contrações prolongadas).
2. Feto (Passenger) - O Objeto Móvel
Refere-se às características do feto que influenciam sua passagem pelo canal de parto. Anormalidades fetais são uma causa importante de distócia.
- Tamanho Fetal (Macrossomia): Fetos com peso estimado > 4.000g ou 4.500g têm maior risco de desproporção cefalopélvica (DCP) e distócia de ombro.
- Apresentação Anômala: Refere-se à parte do feto que se insinua na pelve. A apresentação normal é a cefálica fletida (vértice). Apresentações anômalas incluem a pélvica, córmica (transversa), de face, de fronte ou defletida de 2º grau.
- Posição Anômala: Refere-se à relação entre o ponto de referência da apresentação fetal e o lado da pelve materna. A posição mais favorável é a occipito-anterior. Posições occipito-posteriores ou occipito-transversas persistentes são causas frequentes de parada de progressão.
- Atitude Anômala: Refere-se à relação das partes fetais entre si. A atitude normal é de flexão total. A deflexão da cabeça fetal aumenta o diâmetro de apresentação, dificultando a passagem.
- Anomalias Fetais: Hidrocefalia, tumores cervicais ou outras malformações podem impedir a descida.
3. Trajeto (Passage) - A Pelve Materna
Refere-se à configuração óssea da pelve materna e aos tecidos moles do canal de parto.
- Anormalidades da Pelve Óssea: A pelve ginecoide é a mais favorável. Outros tipos (androide, antropoide, platipeloide) podem dificultar a progressão. Uma pelve "cirurgicamente pequena" pode levar à Desproporção Cefalopélvica (DCP), uma disparidade entre o tamanho da cabeça fetal e a pelve materna. A DCP absoluta é rara; mais comum é a DCP relativa, onde uma posição fetal desfavorável impede a passagem por uma pelve de tamanho limítrofe.
- Anormalidades de Partes Moles: Tumores pélvicos (miomas), bexiga cheia, septos vaginais ou um colo uterino rígido (por cirurgia prévia, por exemplo) podem obstruir o canal de parto.
Apresentação Clínica & Exame Físico
A ferramenta central para a avaliação clínica da progressão do trabalho de parto é o partograma. Ele é composto por várias seções que devem ser preenchidas meticulosamente.
Componentes Chave do Partograma
O partograma modelo da OMS é dividido em três seções principais: saúde fetal, progresso do trabalho de parto e saúde materna.
- Saúde Fetal:
- Frequência Cardíaca Fetal (FCF): Registrada a cada 30 minutos na fase ativa. Valores normais situam-se entre 110 e 160 bpm. Valores fora dessa faixa exigem avaliação imediata.
- Líquido Amniótico: A cor do líquido é registrada no momento da amniotomia ou amniorrexe espontânea. Usa-se "I" para íntegro, "C" para claro, "M" para meconial e "S" para sanguinolento.
- Achatamento/Bossa Serossanguínea: Avaliação do grau de moldagem da cabeça fetal, que pode indicar dificuldade de passagem.
- Progresso do Trabalho de Parto:
- Dilatação Cervical (●): É o parâmetro mais importante. Marcada com um círculo (●) no gráfico. A fase ativa do trabalho de parto, segundo o Ministério da Saúde, inicia-se com 5 cm de dilatação e contrações efetivas. A progressão esperada na fase ativa é de, no mínimo, 1 cm/hora.
- Descida da Apresentação Fetal (O): Marcada com uma cruz (X) ou círculo (O). Avaliada em relação às espinhas isquiáticas, utilizando os Planos de De Lee (-5 a +5).
- Contrações Uterinas: Registradas a cada 30 minutos. O número de contrações em 10 minutos é hachurado no gráfico de acordo com sua duração (pontilhado para <20s, hachurado para 20-40s, preenchido para >40s).
- Saúde Materna:
- Sinais Vitais: Pressão arterial, pulso e temperatura são registrados a cada 2-4 horas.
- Medicamentos: Ocitocina (unidades e gotas/min), analgésicos e outros medicamentos administrados são anotados.
- Diurese: Volume e frequência da micção. Uma bexiga cheia pode ser causa de distócia.
As Linhas de Alerta e Ação
O conceito mais importante do partograma da OMS é o uso das linhas de alerta e ação para identificar desvios da normalidade na fase ativa.
- Linha de Alerta: É uma linha diagonal que começa na dilatação de início da fase ativa e progride a uma velocidade de 1 cm/hora. Se a curva de dilatação da paciente (os pontos ●) tocar ou cruzar esta linha, significa que a progressão está mais lenta que o esperado. Este é um sinal de alerta que exige uma reavaliação cuidadosa da paciente, do feto e das contrações.
- Linha de Ação: É paralela e traçada 4 horas à direita da linha de alerta. Se a curva de dilatação tocar ou cruzar a linha de ação, uma intervenção definitiva é necessária. Isso pode incluir a intensificação com ocitocina, amniotomia (se ainda não realizada) ou a indicação de cesariana, dependendo da causa da distócia. A decisão deve ser tomada por um profissional experiente, idealmente em um centro com capacidade para cirurgia.
Armadilhas do ENARE
A prova pode apresentar um partograma e pedir a interpretação. Lembre-se: tocar a linha de alerta não é uma indicação automática de cesárea. É um sinal para reavaliar. A conduta dependerá da causa da parada de progressão. Se as contrações são fracas (hipoatividade), a conduta é corrigir a força (ocitocina). Se há sinais de desproporção, a conduta é a via alta (cesárea).
Diagnóstico Laboratorial e de Imagem
O diagnóstico da distócia é eminentemente clínico, baseado na interpretação do partograma. Não há exames laboratoriais ou de imagem de rotina para diagnosticar distócia durante o trabalho de parto. A ultrassonografia pode ser útil para confirmar a apresentação fetal, estimar o peso fetal e avaliar a quantidade de líquido amniótico, mas seu papel principal é no pré-natal.
Interpretação de Padrões do Partograma
A análise da curva de dilatação em relação às linhas de alerta e ação permite diagnosticar diferentes tipos de anormalidades do trabalho de parto.
| Tipo de Anormalidade | Definição | Aparência no Partograma | Causa Comum |
|---|---|---|---|
| Fase Latente Prolongada | Nulíparas: > 20 horas Multíparas: > 14 horas |
A paciente permanece com dilatação < 5 cm por um longo período, sem entrar na fase ativa. Não é plotada na parte principal do partograma. | Falso trabalho de parto, sedação excessiva, colo "imaturo". |
| Fase Ativa Prolongada (Protraction Disorder) | Dilatação < 1 cm/hora por pelo menos 4 horas. | A curva de dilatação tem uma inclinação menor que a da linha de alerta, cruzando-a. | Hipoatividade uterina, analgesia de condução, posição fetal anômala (occipito-posterior). |
| Parada Secundária da Dilatação (Arrest Disorder) | Ausência de dilatação cervical por ≥ 4 horas com contrações adequadas, ou por ≥ 6 horas com contrações inadequadas. | A curva de dilatação se torna horizontal após uma progressão inicial. | Desproporção cefalopélvica (DCP), hipoatividade uterina secundária. |
| Parada da Descida | Ausência de descida da apresentação fetal por ≥ 2 horas (nulíparas) ou ≥ 1 hora (multíparas) no período expulsivo. Com analgesia, os tempos podem ser estendidos. | Os pontos de descida (X) permanecem no mesmo nível por um período prolongado. | DCP, rotação inadequada da cabeça fetal, bexiga cheia, analgesia excessiva. |
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2022 Q67)
Uma questão clássica do ENARE apresenta um partograma de uma primigesta na fase ativa. A curva de dilatação, que vinha progredindo normalmente, começa a desacelerar, com uma velocidade de dilatação inferior a 1 cm/hora, e finalmente cruza a linha de alerta. A interpretação correta deste cenário é fase ativa prolongada. A conduta inicial, se não houver contraindicações e a vitalidade fetal estiver preservada, é avaliar as contrações. Se forem inadequadas, a amniotomia e/ou o uso de ocitocina para corrigir a distócia funcional são as medidas mais apropriadas.
Tratamento & Manejo
O manejo da distócia depende da causa subjacente, ou seja, de qual dos "3 Ps" está falhando.
Manejo da Distócia Funcional (Problema na Força - Powers)
Esta é a causa mais comum de fase ativa prolongada. O objetivo é otimizar a contratilidade uterina.
- Amniotomia: A ruptura artificial das membranas pode acelerar o trabalho de parto ao liberar prostaglandinas locais e permitir que a cabeça fetal comprima mais eficazmente o colo. É uma medida de primeira linha quando a progressão é lenta.
- Ocitocina: Se a amniotomia isolada não for suficiente para restabelecer uma boa dinâmica uterina (3-5 contrações/10 min), a ocitocina sintética é utilizada para aumentar (augmentar) o trabalho de parto.
- Protocolo: Geralmente administrada em infusão intravenosa contínua, com a dose sendo aumentada gradualmente até se atingir uma atividade uterina eficaz.
- Riscos: Taquissistolia, sofrimento fetal agudo e, em casos raros, ruptura uterina. Requer monitorização fetal e uterina contínua.
Manejo da Distócia Fetal ou do Trajeto (Problemas no Feto/Trajeto - Passenger/Passage)
Quando a distócia é causada por uma apresentação anômala, macrossomia ou desproporção cefalopélvica, a correção da contratilidade uterina pode não resolver o problema e pode até ser perigosa.
- Parto Vaginal Operatório (Fórceps ou Vácuo Extrator): Indicado no segundo período do trabalho de parto (período expulsivo) quando há parada de descida, sofrimento fetal agudo ou exaustão materna. Pré-requisitos são essenciais: dilatação total, apresentação insinuada, apresentação cefálica, conhecimento da variedade de posição e ausência de DCP.
- Cesariana: É a via de resolução para a maioria das distócias não corrigíveis, como DCP confirmada, apresentações anômalas (pélvica em primigesta, córmica), parada de dilatação ou descida que não responde às medidas clínicas, ou sofrimento fetal.
Raciocínio Clínico
O conceito de "parto provado" ou "prova de trabalho de parto" é fundamental. Antes de diagnosticar uma DCP definitiva, deve-se garantir que a força (Powers) foi otimizada. Uma paciente com contrações adequadas (espontâneas ou com ocitocina) que não progride tem uma probabilidade muito maior de ter uma DCP verdadeira. Tentar forçar a descida com doses altas de ocitocina em face de uma obstrução mecânica aumenta drasticamente o risco de ruptura uterina.
Complicações & Prognóstico
O trabalho de parto prolongado e a distócia estão associados a riscos significativos para a mãe e o feto.
Complicações Maternas
- Infecção Intra-amniótica (Corioamnionite): O risco aumenta com a duração da ruptura das membranas e o número de toques vaginais.
- Exaustão Materna e Desidratação: O esforço prolongado leva ao esgotamento físico e emocional.
- Hemorragia Pós-Parto: A fadiga do músculo uterino (atonia uterina) é a principal causa. É uma complicação temida e potencialmente fatal.
- Ruptura Uterina: Rara, mas catastrófica. O risco é maior em mulheres com cesárea prévia (cicatriz uterina) e durante o uso de ocitocina em partos obstruídos.
- Lesões do Assoalho Pélvico e Fístulas Obstétricas: Resultantes da compressão prolongada dos tecidos moles entre a cabeça fetal e a pelve óssea.
Complicações Fetais
- Hipóxia e Acidose Fetal: Contrações prolongadas ou muito frequentes podem reduzir o fluxo sanguíneo para a placenta, levando ao sofrimento fetal.
- Infecção Neonatal (Sepse): Ascensão de bactérias do trato genital materno, especialmente após a ruptura das membranas.
- Trauma de Parto: Lesões como fratura de clavícula, lesão do plexo braquial (associada à distócia de ombro) e cefaloematoma podem ocorrer durante partos difíceis ou instrumentados.
- Bossa Serossanguínea e Achatamento Craniano: Sinais de dificuldade de passagem da cabeça fetal pela pelve.
Populações Especiais
Nulíparas vs. Multíparas
Existem diferenças importantes nas curvas de trabalho de parto entre mulheres que nunca pariram (nulíparas) e as que já tiveram partos vaginais anteriores (multíparas).
- Nulíparas: Tendem a ter uma fase latente mais longa e uma fase ativa com progressão mais lenta. A descida da apresentação fetal geralmente ocorre no final da fase ativa. São mais suscetíveis a distócias.
- Multíparas: Geralmente têm um trabalho de parto mais rápido em todas as fases. A dilatação e a descida podem ocorrer simultaneamente e de forma mais rápida. Uma parada de progressão em uma multípara é um sinal de alerta mais forte para uma possível desproporção ou apresentação anômala.
O Papel do Apoio Contínuo ao Parto (Doula)
A presença de um acompanhante de escolha da mulher durante todo o trabalho de parto e parto é um direito garantido por lei no Brasil. O apoio contínuo, seja pelo parceiro, familiar ou por uma doula, tem demonstrado em múltiplos estudos (Revisão Cochrane) ser uma intervenção eficaz e de baixo custo para melhorar os desfechos obstétricos.
Benefícios Comprovados:
- Redução na duração do trabalho de parto.
- Menor necessidade de analgesia farmacológica.
- Redução significativa nas taxas de cesariana e parto vaginal operatório.
- Aumento da satisfação da mulher com a experiência do parto.
O mecanismo de ação é multifatorial, envolvendo apoio emocional, medidas de conforto físico (massagem, mudança de posição) e a redução da ansiedade e do medo, o que diminui a liberação de catecolaminas (que podem inibir as contrações uterinas) e favorece a liberação de ocitocina endógena.
