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Parto Instrumental (Fórceps)

O parto instrumental, também conhecido como parto vaginal operatório, refere-se ao uso de um fórceps ou de um extrator a vácuo (vácuo-extrator) para auxiliar na extração do feto pelo canal de parto. Esta é uma intervenção obstétrica fundamental, indicada quando a segurança da mãe ou do feto está em risco e o parto vaginal precisa ser acelerado. Historicamente, o fórceps é um dos instrumentos mais antigos e emblemáticos da obstetrícia, com seu desenvolvimento atribuído à família Chamberlen no século XVII. Embora seu uso tenha diminuído nas últimas décadas, principalmente devido à popularização do vácuo-extrator e ao aumento das taxas de cesariana, o domínio da técnica de fórceps continua sendo uma habilidade essencial para o obstetra.

A incidência de partos instrumentais varia globalmente, mas em geral, observa-se uma tendência de queda no uso do fórceps em favor do vácuo-extrator. O vácuo é frequentemente percebido como tecnicamente mais simples e associado a menor trauma perineal materno grave. No entanto, o fórceps apresenta uma taxa de sucesso mais alta na conclusão do parto vaginal e está associado a menores taxas de complicações neonatais como cefaloematoma e hemorragia retiniana em comparação com o vácuo. A escolha do instrumento depende da situação clínica, da experiência do operador e das características do feto e da pelve materna.

Indicações e Pré-requisitos

A decisão de proceder com um parto instrumental deve ser baseada em indicações claras e na confirmação de que todos os pré-requisitos essenciais foram atendidos para garantir a segurança do procedimento.

Indicações para o Parto Instrumental

As indicações podem ser categorizadas como maternas ou fetais.

  • Indicações Maternas:
    • Segundo Estágio Prolongado do Parto: Esta é a indicação mais comum. Define-se como:
      • Nulíparas: Ausência de progresso por mais de 3 horas com analgesia de condução (peridural) ou mais de 2 horas sem analgesia.
      • Multíparas: Ausência de progresso por mais de 2 horas com analgesia de condução ou mais de 1 hora sem analgesia.
    • Exaustão Materna: Quando a mãe não consegue mais realizar os esforços expulsivos de forma eficaz.
    • Condições Médicas Maternas: Situações em que o esforço de Valsalva prolongado é desaconselhado ou perigoso, como em certas cardiopatias (e.g., estenose aórtica, síndrome de Marfan), doenças neurológicas (e.g., aneurisma cerebral) ou doenças respiratórias graves.
  • Indicações Fetais:
    • Estado Fetal Não Tranquilizador (Suspeita de Sofrimento Fetal): Quando a cardiotocografia ou outros métodos de vigilância fetal indicam hipóxia iminente, exigindo um nascimento rápido. O parto instrumental é a via de escolha se as condições para sua aplicação estiverem presentes, pois é mais rápido que uma cesariana de emergência.

Pré-requisitos Essenciais

A aplicação de fórceps é um procedimento invasivo e só deve ser tentada quando todas as seguintes condições forem rigorosamente atendidas. A ausência de qualquer um desses pré-requisitos é uma contraindicação ao procedimento.

  1. Dilatação Cervical Completa (10 cm): O colo do útero deve estar completamente dilatado para permitir a passagem do feto e do instrumento.
  2. Membranas Amnióticas Rotas: As membranas devem estar rompidas para permitir a correta aplicação das lâminas do fórceps na cabeça fetal.
  3. Insinuação Fetal (Cabeça Engajada): A cabeça fetal deve estar insinuada, ou seja, seu maior diâmetro (biparietal) deve ter ultrapassado o estreito superior da bacia. No mínimo, a cabeça deve estar na estação 0 de De Lee. Tentativas em estações mais altas (fórceps alto) são proscritas na obstetrícia moderna.
  4. Posição e Variedade da Cabeça Fetal Conhecidas: O operador deve determinar com precisão a posição da cabeça fetal (e.g., occípito-anterior, occípito-transversa) para aplicar o fórceps corretamente.
  5. Pelve Materna Adequada: Não deve haver evidência clínica de desproporção céfalo-pélvica (DCP). A pelvimetria clínica deve sugerir que a passagem do feto é possível.
  6. Bexiga Vazia: A bexiga deve ser esvaziada por cateterismo para evitar trauma vesical e para maximizar o espaço disponível na pelve.
  7. Analgesia Adequada: O procedimento é doloroso e requer analgesia eficaz, geralmente uma anestesia peridural funcional ou uma anestesia raquidiana. Em alguns casos, um bloqueio do nervo pudendo pode ser suficiente.
  8. Consentimento Informado: A paciente deve ser informada sobre os riscos, benefícios e alternativas (como a cesariana), e consentir com o procedimento.
  9. Operador Experiente e Ambiente Adequado: O procedimento deve ser realizado por um médico treinado e em um ambiente (centro cirúrgico) onde uma cesariana de emergência possa ser realizada imediatamente em caso de falha.

Raciocínio Clínico

A lista de pré-requisitos é um checklist de segurança fundamental. No cenário de uma prova, uma questão pode apresentar um caso de sofrimento fetal agudo e perguntar a conduta. Se um dos pré-requisitos não for atendido (e.g., "colo 8 cm dilatado" ou "cabeça em -2 de De Lee"), a resposta correta será cesariana de emergência, e não fórceps, mesmo que a indicação para um parto rápido esteja presente.

Tipos de Fórceps e Técnicas de Aplicação

Os fórceps são classificados de acordo com seu design e finalidade, e as aplicações são classificadas com base na estação da cabeça fetal no momento do procedimento.

Classificação da Aplicação de Fórceps (ACOG)

  • Fórceps de Alívio (Outlet Forceps):
    • O couro cabeludo fetal é visível no intróito vaginal sem separar os grandes lábios.
    • O crânio fetal atingiu o assoalho pélvico.
    • A sutura sagital está em posição anteroposterior ou em rotação de até 45°.
    • A cabeça fetal está no períneo.
  • Fórceps Baixo (Low Forceps):
    • A estação da cabeça fetal é de +2 cm ou inferior, mas não atingiu o assoalho pélvico.
    • Inclui rotações de mais de 45°.
  • Fórceps Médio (Midpelvic Forceps):
    • A cabeça fetal está engajada (estação 0), mas acima de +2 cm.
    • Este tipo de aplicação está associado a maiores taxas de complicações maternas e fetais e deve ser realizado apenas por operadores muito experientes e com indicação clara.

Nota: O fórceps alto (cabeça não engajada) é um procedimento obsoleto e proscrito devido ao risco inaceitável de trauma grave para a mãe e o feto.

Tipos de Instrumentos e Suas Utilidades

Cada fórceps possui características de design que o tornam mais adequado para cenários clínicos específicos.

Tipo de Fórceps Características Principais Indicação Principal
Simpson Possui uma curvatura cefálica alongada e hastes paralelas. Ideal para cabeças moldadas (dolicocefalia), comuns após um segundo estágio prolongado. É o fórceps mais utilizado para tração em variedades anteriores.
Elliot Possui uma curvatura cefálica mais arredondada e hastes que se sobrepõem. Ideal para cabeças não moldadas (braquicefalia), mais redondas, como em multíparas com segundo estágio rápido.
Kielland Curvatura pélvica mínima ou ausente e um mecanismo de trava deslizante. Projetado especificamente para a rotação de variedades de posição transversas e posteriores. Seu uso requer grande habilidade devido ao maior risco de trauma.
Piper Hastes longas com uma curvatura pélvica reversa acentuada. Usado exclusivamente para a extração da cabeça derradeira (última a sair) em partos pélvicos vaginais.

Princípios de Aplicação e Tração

A aplicação correta é crucial. A "pega ideal" é biparietal e bimalar, ou seja, as lâminas do fórceps devem se posicionar simetricamente sobre as bochechas e os ossos parietais do feto, evitando estruturas vulneráveis como os olhos e a fontanela. A tração deve ser realizada no eixo da pelve (axis-tração), seguindo a Curva de Carus. A força é aplicada de forma intermitente, sincronizada com as contrações uterinas e os esforços expulsivos maternos, permitindo que os tecidos maternos se distendam gradualmente.

Avaliação e Tomada de Decisão

Antes de qualquer tentativa de parto instrumental, uma avaliação completa e sistemática é obrigatória. O acrônimo dos "3 Ps" (Power, Passenger, Passage) é útil:

  • Power (Força): Avaliar a contratilidade uterina e a eficácia dos puxos maternos. A indicação para o fórceps muitas vezes surge de uma falha no "Power".
  • Passenger (Feto): A avaliação mais crítica. É imperativo determinar com precisão:
    • Posição da Cabeça Fetal: A identificação da sutura sagital e das fontanelas (anterior e posterior) pelo toque vaginal é o método clássico. A fontanela posterior (lambdoide, triangular) é o ponto de referência para determinar a variedade de posição (e.g., occípito-anterior, occípito-transversa).
    • Estação: A altura da apresentação em relação às espinhas isquiáticas (plano 0 de De Lee).
    • Assinclitismo: A relação entre a sutura sagital e o eixo anteroposterior da pelve. Um assinclitismo acentuado pode impedir a descida.
    • Tamanho Fetal Estimado: Suspeita de macrossomia fetal é uma contraindicação relativa.
  • Passage (Trajeto): Avaliação clínica da bacia óssea e dos tecidos moles para descartar uma desproporção céfalo-pélvica evidente.

O ultrassom intraparto tem emergido como uma ferramenta valiosa para confirmar a posição fetal, especialmente quando um grande caput succedaneum (bosse) dificulta a palpação das suturas. A confirmação ultrassonográfica da posição pode aumentar a segurança e a taxa de sucesso do procedimento.

Tratamento e Manejo: O Procedimento Passo a Passo

A aplicação do fórceps é uma técnica cirúrgica que exige precisão e calma.

  1. Preparação Final: Confirmar todos os pré-requisitos. Posicionar a paciente em litotomia. Realizar cateterismo vesical.
  2. Reavaliação: Realizar um último toque vaginal para confirmar a dilatação, a estação e, crucialmente, a variedade de posição.
  3. Escolha do Instrumento: Selecionar o fórceps mais apropriado para a situação clínica.
  4. Introdução das Lâminas: A lâmina esquerda (posterior) é introduzida primeiro, guiada pela mão direita do operador no canal vaginal. A lâmina é deslizada entre a cabeça fetal e a parede vaginal. O mesmo é feito com a lâmina direita (anterior), guiada pela mão esquerda.
  5. Articulação: As hastes do fórceps são unidas e travadas. Se a articulação for difícil, as lâminas provavelmente estão mal posicionadas e devem ser removidas e reaplicadas.
  6. Verificação da Pega: Este é um passo crítico de segurança. O operador deve verificar se:
    • A sutura sagital está perpendicular às hastes e exatamente no meio delas.
    • A fontanela posterior está a não mais que a largura de um dedo de distância do plano das hastes.
    • Não há tecidos moles maternos (colo, vagina) presos nas lâminas.
  7. Tração: A tração é aplicada de forma suave e constante durante uma contração, enquanto a paciente é encorajada a empurrar. A direção da tração segue a Curva de Carus: inicialmente para baixo (em direção ao chão), depois horizontalmente e, finalmente, para cima (em direção ao teto) à medida que a cabeça coroa.
  8. Rotação (se necessário): Manobras rotacionais, especialmente com o fórceps de Kielland, devem ser realizadas entre as contrações, com tração mínima.
  9. Episiotomia: Não é rotineira, mas frequentemente indicada (episiotomia médio-lateral) para facilitar a passagem e prevenir lacerações de terceiro e quarto graus.
  10. Desarticulação e Remoção: As lâminas são removidas em ordem inversa à aplicação, geralmente quando a cabeça está coroando, para permitir que o restante do nascimento ocorra de forma espontânea e controlada.

Armadilhas do ENARE: Conhecimento Específico de Instrumentos

ENARE 2022 (Q77): Questões podem testar o conhecimento da indicação precisa de cada fórceps. A associação entre fórceps de Kielland e a rotação de variedades transversas é um conceito clássico. O examinador espera que você saiba que este é o instrumento de eleição para essa manobra específica, devido à sua ausência de curvatura pélvica.

ENARE 2023 (Q70): Para variedades de posição oblíquas posteriores (e.g., Occípito-Direita-Posterior - ODP), o fórceps de Simpson é frequentemente o mais indicado. Ele permite uma rotação suave para a posição occípito-anterior simultaneamente à tração descendente, corrigindo a deflexão e promovendo o parto. Diferente do Kielland, que é um rotador puro, o Simpson facilita a rotação durante a tração.

Complicações e Prognóstico

Embora seja um procedimento que salva vidas, o parto a fórceps está associado a riscos aumentados para a mãe e o neonato quando comparado a um parto vaginal espontâneo.

Complicações Maternas

  • Lacerações Perineais Graves: O risco de lacerações de 3º grau (lesão do esfíncter anal externo) e 4º grau (lesão da mucosa retal) é significativamente maior.
  • Hemorragia Pós-Parto: Pode ocorrer devido a lacerações do canal de parto (vagina, colo) ou atonia uterina.
  • Lesão do Trato Urinário: Lesões na bexiga ou uretra podem ocorrer, embora sejam raras com a técnica correta.
  • Complicações a Longo Prazo: Aumento do risco de incontinência anal e urinária, e disfunção do assoalho pélvico.

Complicações Fetais/Neonatais

  • Trauma Facial Superficial: Marcas do fórceps na face e pequenas escoriações são comuns e geralmente resolvem-se em poucos dias.
  • Paralisia do Nervo Facial: Lesão por compressão do nervo facial (VII par craniano), geralmente transitória, resultando em assimetria facial ao chorar.
  • Cefaloematoma: Coleção de sangue subperiosteal, bem delimitada pelas linhas de sutura. O risco é menor que no vácuo-extrator.
  • Lesões Graves (Raras): Fratura de crânio e hemorragia intracraniana são as complicações mais temidas, porém raras com a técnica e indicação adequadas.

Contraindicações e Considerações Especiais

Existem situações em que o parto a fórceps é absolutamente contraindicado.

Contraindicações Absolutas

  • Qualquer um dos pré-requisitos não atendido (e.g., dilatação incompleta, cabeça não engajada).
  • Desproporção céfalo-pélvica (DCP) conhecida ou clinicamente evidente.
  • Posição fetal desconhecida.
  • Doenças de desmineralização óssea fetal (e.g., osteogênese imperfeita).
  • Distúrbios de coagulação fetal conhecidos (e.g., trombocitopenia aloimune).
  • Apresentação de face com o mento em posição posterior (mento-posterior).

Tentativa de Parto Instrumental e Critérios para Abandono

Um parto a fórceps deve ser considerado uma "tentativa de parto instrumental" (trial of forceps). Isso implica que o procedimento é realizado com plena consciência da possibilidade de falha e com preparo imediato para uma cesariana.

O procedimento deve ser abandonado em favor de uma cesariana se:

  • A aplicação correta das lâminas do fórceps se mostrar impossível.
  • Não houver descida da cabeça fetal após duas a três trações com técnica adequada e esforço materno.

Raciocínio Clínico: O Cenário do "Fórceps Falho"

A decisão de abandonar o procedimento não é um sinal de fracasso, mas de bom julgamento clínico. Insistir em um parto instrumental difícil aumenta exponencialmente o risco de trauma grave. O obstetra deve definir um limite claro para a tentativa. Se não houver progresso evidente após algumas trações, a equipe deve estar preparada para mover-se rapidamente para o plano B: a cesariana. A comunicação clara com a paciente e a equipe é essencial neste momento crítico.

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