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Neoplasia Intraepitelial Cervical (NIC)

A Neoplasia Intraepitelial Cervical (NIC), também conhecida pela sigla em inglês CIN (Cervical Intraepithelial Neoplasia), representa um espectro de lesões pré-cancerosas que se desenvolvem no epitélio escamoso do colo do útero. É uma condição de extrema importância para a saúde da mulher e um tema recorrente nas provas de residência, pois sua detecção e tratamento corretos são a base da prevenção do câncer cervical invasivo.

Introdução e Epidemiologia

Definição e Classificação

A NIC é caracterizada por alterações celulares displásicas que se iniciam na camada basal do epitélio escamoso e progridem em direção à superfície. Essas alterações são um resultado direto da infecção persistente por tipos de alto risco do Papilomavírus Humano (HPV). A classificação dessas lesões evoluiu para simplificar a conduta clínica, baseando-se no comportamento biológico e no risco de progressão para o câncer.

Atualmente, utiliza-se o Sistema de Bethesda para os laudos citológicos (Papanicolau) e uma classificação histológica de dois níveis, que agrupa as lesões em baixo e alto grau, refletindo melhor a biologia viral e o manejo clínico.

Classificação de Bethesda (Citologia) Classificação Histológica (Biópsia) Classificação Antiga (CIN) Significado Clínico e Risco
LSIL (Lesão Intraepitelial Escamosa de Baixo Grau) NIC 1 CIN 1 Representa uma infecção transitória pelo HPV na maioria dos casos. Possui alta taxa de regressão espontânea (~60%) e baixo risco de progressão para câncer (<1%).
HSIL (Lesão Intraepitelial Escamosa de Alto Grau) NIC 2 e NIC 3 CIN 2 e CIN 3 (Carcinoma in situ) Representa uma infecção persistente pelo HPV com desregulação do ciclo celular. Possui baixo potencial de regressão e um risco significativo de progressão para carcinoma invasivo se não tratada.

Raciocínio Clínico

Por que agrupar NIC 2 e NIC 3 como "HSIL"? Estudos demonstraram que a distinção histológica entre NIC 2 e NIC 3 pode ter baixa reprodutibilidade entre patologistas. Mais importante, o manejo clínico para ambas as condições é frequentemente o mesmo (tratamento excisional), pois ambas representam um risco substancial de progressão. Agrupá-las como HSIL simplifica a tomada de decisão clínica.

Epidemiologia

A epidemiologia da NIC está intrinsecamente ligada à prevalência da infecção pelo HPV, a infecção sexualmente transmissível mais comum no mundo. A maioria das infecções por HPV é transitória e eliminada pelo sistema imunológico em 1 a 2 anos. A NIC surge a partir da infecção persistente por subtipos de HPV de alto risco oncogênico.

  • HPV de Alto Risco: Os tipos 16 e 18 são os mais importantes, responsáveis por aproximadamente 70% de todos os casos de câncer cervical e pela maioria das lesões de alto grau (HSIL).
  • Fatores de Risco para Persistência do HPV:
    • Imunossupressão (HIV, transplantados, uso crônico de corticoides).
    • Tabagismo (substâncias carcinogênicas do tabaco se concentram no muco cervical).
    • Início precoce da atividade sexual e múltiplos parceiros sexuais (aumentam a chance de exposição).
    • Co-infecção com outras ISTs (ex: Chlamydia trachomatis, Herpes simplex).
    • Uso prolongado de contraceptivos orais (mecanismo não totalmente elucidado).

Fisiopatologia

A progressão de um epitélio cervical normal para uma neoplasia invasiva é um processo de múltiplos passos impulsionado pela infecção persistente por HPV de alto risco. O cerne da carcinogênese cervical reside na atividade de duas oncoproteínas virais: E6 e E7.

O Papel das Oncoproteínas Virais E6 e E7

Em uma infecção normal, o DNA do HPV permanece epissomal (fora do cromossomo da célula hospedeira). Na infecção persistente que leva à displasia, o DNA viral se integra ao genoma da célula hospedeira. Essa integração leva à superexpressão das oncoproteínas E6 e E7, que desregulam os principais pontos de controle do ciclo celular.

  1. Ação da Oncoproteína E6: A proteína E6 liga-se à proteína supressora de tumor p53 e a marca para degradação via ubiquitinação. A p53 é o "guardião do genoma", responsável por interromper o ciclo celular (em G1) para reparo do DNA ou induzir a apoptose (morte celular programada) se o dano for irreparável. A perda de p53 permite que células com mutações genéticas sobrevivam e se proliferem.
  2. Ação da Oncoproteína E7: A proteína E7 liga-se e inativa a proteína do retinoblastoma (pRb). A pRb normalmente se liga ao fator de transcrição E2F, impedindo a progressão do ciclo celular da fase G1 para a fase S (síntese de DNA). Ao inativar a pRb, a E7 libera o E2F, promovendo uma proliferação celular descontrolada.

Essa combinação de imortalização celular (inibição da apoptose pela via da p53) e proliferação descontrolada (inibição da via da pRb) leva ao acúmulo de mutações e à transformação maligna do epitélio cervical, manifestando-se histologicamente como NIC.

Apresentação Clínica e Exame Físico

Um dos pontos mais importantes sobre a NIC é que ela é uma doença completamente assintomática. Não há sinais ou sintomas específicos, como dor, sangramento ou corrimento, que possam alertar a paciente ou o médico sobre sua presença. O colo do útero, ao exame especular de rotina, geralmente aparenta ser normal (macroscopicamente são).

A ausência de sintomas reforça a importância vital dos programas de rastreamento organizados (como o Papanicolau e/ou teste de HPV), pois eles são a única maneira de detectar essas lesões pré-cancerosas em um estágio curável.

Armadilhas do ENARE

Questões de prova podem apresentar um caso clínico com sangramento pós-coito (sinusorragia) ou sangramento intermenstrual e perguntar a causa. Embora esses possam ser sintomas de um câncer cervical invasivo, eles não são sintomas de NIC. A NIC é, por definição, uma doença microscópica e pré-invasiva que não causa sintomas.

Investigação Diagnóstica

O diagnóstico da NIC é um processo sequencial que começa com um teste de rastreamento anormal e culmina com a análise histopatológica de uma biópsia cervical.

1. Teste de Rastreamento Anormal

O ponto de partida é um resultado alterado no rastreamento cervical, que pode ser:

  • Citologia Oncótica (Papanicolau): Resultados como LSIL, HSIL, ASC-US (Células Escamosas Atípicas de Significado Indeterminado), ASC-H (Células Escamosas Atípicas, não se pode afastar Lesão de Alto Grau) ou AGC (Células Glandulares Atípicas).
  • Teste de HPV: Resultado positivo para um ou mais tipos de HPV de alto risco.

2. Colposcopia

Pacientes com resultados de rastreamento anormais que indicam risco aumentado para lesões de alto grau são encaminhadas para colposcopia. A colposcopia é um exame que utiliza um microscópio binocular (colposcópio) para visualizar o colo do útero, a vagina e a vulva sob magnificação.

  • Técnica: Após a inserção do espéculo, o colo do útero é limpo e examinado. Em seguida, aplica-se ácido acético a 3-5%. O ácido acético causa desidratação celular e coagulação de proteínas nucleares. Células com maior densidade nuclear (como as células displásicas) refletem mais luz e aparecem como áreas brancas (epitélio acetobranco).
  • Teste de Schiller (Uso de Solução de Lugol): O iodo presente no Lugol reage com o glicogênio. Células cervicais normais e maduras são ricas em glicogênio e coram-se de marrom-escuro (Schiller positivo). Células displásicas ou imaturas são pobres em glicogênio e não coram, aparecendo como áreas amareladas ou iodo-negativas (Schiller negativo).
  • Achados anormais: Além do epitélio acetobranco, o colposcopista procura por outros sinais sugestivos de HSIL, como pontilhado grosseiro, mosaico e vasos atípicos.

3. Biópsia Dirigida e Análise Histopatológica

A colposcopia identifica as áreas suspeitas, mas o diagnóstico definitivo é sempre histopatológico. Pequenos fragmentos de tecido são retirados das áreas mais anormais visualizadas na colposcopia (biópsia dirigida). Se a junção escamocolunar (JEC) não for totalmente visível ou se a lesão se estender para o canal cervical, uma amostragem do canal (curetagem endocervical - CEC) pode ser realizada. O material é enviado para o patologista, que confirma a presença e o grau da NIC (1, 2 ou 3).

Tratamento e Manejo

A conduta frente a um diagnóstico de NIC varia significativamente com base no grau da lesão, na idade da paciente, no desejo de gestações futuras e nos achados colposcópicos.

Manejo da NIC 1 (LSIL)

A conduta padrão para NIC 1 é a observação. Devido à alta taxa de regressão espontânea, especialmente em mulheres jovens, o tratamento imediato é considerado um sobretratamento. O seguimento é realizado com citologia e/ou teste de HPV em 12 meses. Se a lesão persistir por 2 anos, especialmente em mulheres com mais de 25 anos, o tratamento pode ser considerado.

Manejo da NIC 2 e NIC 3 (HSIL)

HSIL (NIC 2/3) requer tratamento devido ao seu risco significativo de progressão para câncer invasivo. As opções de tratamento são divididas em excisicionais e ablativas.

  • Procedimentos Excisionais (Preferíveis): Removem a lesão e a Zona de Transformação (ZT), fornecendo um espécime para análise histopatológica. Isso é crucial para excluir a presença de microinvasão ou câncer invasivo oculto.
    • Exérese da Zona de Transformação (EZT) ou LEEP (Loop Electrosurgical Excision Procedure): É o método mais comum. Utiliza uma alça de fio fino energizada por corrente elétrica de alta frequência para "fatiar" e remover o tecido anormal. É um procedimento ambulatorial, rápido e eficaz.
    • Conização com Bisturi a Frio: Utiliza um bisturi para remover um cone de tecido cervical. É um procedimento mais invasivo, realizado em centro cirúrgico, e reservado para casos de suspeita de invasão, lesão extensa, ou quando a EZT não é adequada.
  • Procedimentos Ablativos: Destroem o tecido anormal in situ, sem fornecer material para análise. São indicados apenas em casos selecionados onde a colposcopia é satisfatória (toda a lesão e a JEC são visíveis) e a biópsia excluiu doença invasiva ou glandular. Exemplos incluem a crioterapia e a vaporização a laser.

Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2024

Cenário Clínico: Paciente apresenta resultado de citologia (Papanicolau) evidenciando Lesão Intraepitelial de Alto Grau (HSIL) e o teste de HPV associado é positivo para o HPV-16.

Conduta Correta: A conduta imediata e inquestionável é o encaminhamento para colposcopia. Não há espaço para repetição do exame em curto prazo ou observação. Um resultado de HSIL na citologia representa um risco elevado de doença pré-cancerígena subjacente (NIC 2 ou 3), e a presença do HPV-16, o subtipo mais oncogênico, eleva ainda mais esse risco. A colposcopia é mandatória para avaliação visual, localização da lesão e biópsia dirigida para confirmação histopatológica, que guiará o tratamento definitivo.

Complicações e Prognóstico

Risco de Progressão

O prognóstico da NIC, quando manejada adequadamente, é excelente. O principal risco é a progressão para câncer cervical invasivo se as lesões de alto grau não forem tratadas. Estima-se que cerca de 30-50% das lesões NIC 3 progridam para carcinoma invasivo ao longo de 10-30 anos.

Complicações do Tratamento

Embora eficazes, os procedimentos excisionais não são isentos de riscos:

  • Curto Prazo: Sangramento (5-10%), infecção, dor pélvica.
  • Longo Prazo (Impacto Obstétrico): A remoção de parte do estroma cervical pode enfraquecer a estrutura do colo. Isso está associado a um risco aumentado de:
    • Incompetência Istmo-Cervical: Dilatação cervical indolor no segundo trimestre, levando a parto prematuro.
    • Parto Prematuro: O risco é proporcional à profundidade da excisão.
    • Estenose Cervical: Cicatrização que estreita o canal cervical, podendo causar dismenorreia ou dificultar a concepção.
  • Recorrência: Mesmo após o tratamento, existe um risco de 5-10% de recorrência da lesão, exigindo vigilância pós-tratamento a longo prazo com co-teste (citologia + HPV).

Populações Especiais

Adolescentes e Mulheres Jovens (< 25 anos)

Neste grupo, a prevalência de infecção por HPV e NIC 1 é muito alta, com taxas de regressão espontânea igualmente elevadas. Até mesmo a NIC 2 tem uma taxa de regressão maior do que em mulheres mais velhas. Por isso, e para evitar os riscos obstétricos do tratamento, a abordagem é mais conservadora.

  • NIC 1: Observação com repetição da citologia em 12 meses.
  • NIC 2: Se a colposcopia for satisfatória, a observação com colposcopia e citologia a cada 6 meses por até 2 anos é uma opção preferível ao tratamento imediato. O tratamento é realizado se a lesão persistir por 2 anos, progredir para NIC 3 ou se a paciente não aderir ao seguimento rigoroso.

Gestantes

O manejo da NIC na gestação visa principalmente excluir o câncer invasivo. O tratamento definitivo das lesões pré-cancerosas é sempre adiado para o período pós-parto.

  • Rastreamento: Pode ser realizado normalmente durante a gravidez.
  • Colposcopia: É um exame seguro na gestação. As alterações fisiológicas da gravidez (eversão e aumento da vascularização) podem dificultar a interpretação, exigindo um colposcopista experiente.
  • Biópsia: Pode ser realizada se houver suspeita colposcópica ou citológica de lesão de alto grau ou câncer. O risco de sangramento é maior, mas geralmente é controlável.
  • Curetagem Endocervical (CEC): É absolutamente contraindicada na gestação.
  • Conduta para NIC 2/3: Uma vez que o câncer invasivo tenha sido descartado pela biópsia, a paciente é acompanhada com colposcopia a cada trimestre. O tratamento é adiado para 6-12 semanas após o parto, permitindo a involução das alterações gravídicas do colo uterino. O tipo de parto não é influenciado pela presença de NIC.
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