Laqueadura Tubária
A laqueadura tubária, também conhecida como ligadura de trompas ou esterilização cirúrgica feminina, é um método contraceptivo permanente que visa impedir a fertilidade da mulher de forma definitiva. É um dos métodos contraceptivos mais eficazes disponíveis e um dos mais utilizados no Brasil e no mundo, especialmente por mulheres que já atingiram sua prole desejada e buscam uma solução contraceptiva que não exija adesão contínua.
Introdução e Epidemiologia
A esterilização cirúrgica é o método contraceptivo mais prevalente globalmente, utilizado por centenas de milhões de mulheres. No Brasil, a laqueadura tubária ganhou grande popularidade nas décadas de 1980 e 1990, muitas vezes realizada durante o parto cesáreo. Embora o uso de Métodos Contraceptivos Reversíveis de Longa Duração (LARCs), como os DIUs e o implante subdérmico, tenha aumentado, a laqueadura continua sendo uma opção importante no planejamento familiar.
Perfil Demográfico
O perfil das mulheres que optam pela laqueadura tubária geralmente inclui:
- Idade mais avançada: Tipicamente acima dos 30 anos.
- Multiparidade: Mulheres que já têm o número de filhos que desejam.
- Relacionamento estável: A decisão é frequentemente tomada no contexto de uma parceria de longo prazo.
- Desejo de um método definitivo: Mulheres que buscam se livrar da preocupação com a contracepção diária ou periódica e têm certeza sobre não querer mais filhos.
Mecanismo de Ação e Técnicas Cirúrgicas
O princípio fundamental da laqueadura tubária é criar uma barreira mecânica nas trompas de Falópio (ou tubas uterinas), impedindo o encontro entre o espermatozoide e o óvulo. Isso é alcançado através da oclusão, secção ou remoção de um segmento das trompas.
Vias de Acesso Cirúrgico
- Laparoscopia: É a via de acesso padrão-ouro para a laqueadura de intervalo (realizada fora do período pós-parto). Através de pequenas incisões no abdômen, uma câmera (laparoscópio) e instrumentos cirúrgicos são inseridos. Oferece recuperação mais rápida, menos dor pós-operatória e melhor resultado estético.
- Minilaparotomia: Consiste em uma pequena incisão (2-3 cm), geralmente suprapúbica. É a técnica mais comum no período pós-parto imediato (até 48 horas após o parto vaginal), pois o fundo uterino elevado torna as trompas facilmente acessíveis através de uma incisão infraumbilical.
- Histeroscopia: Uma abordagem minimamente invasiva onde um dispositivo é inserido através do colo do útero até o interior das trompas, promovendo uma oclusão por fibrose. O principal exemplo foi o dispositivo Essure®, que foi retirado do mercado em vários países, incluindo o Brasil, devido a preocupações com complicações a longo prazo. Embora não seja mais uma opção primária, o conceito pode ser cobrado em provas.
- Durante a Cesariana: A laqueadura é frequentemente realizada durante uma cesariana, aproveitando o acesso já estabelecido à cavidade abdominal. É um momento conveniente e seguro para realizar o procedimento.
Métodos de Oclusão Tubária
Existem diversas técnicas para ocluir as trompas, cada uma com suas taxas de sucesso e particularidades.
| Técnica | Descrição | Vantagens | Desvantagens |
|---|---|---|---|
| Técnica de Pomeroy | É a técnica mais clássica e amplamente utilizada. Uma alça da porção média da trompa é elevada, sua base é ligada com um fio absorvível (ex: categute) e a alça é excisada. Após a absorção do fio, os cotos se separam e fibrosam. | Simples, rápida, eficaz e de baixo custo. Ideal para laqueadura durante cesárea ou minilaparotomia. | Maior taxa de falha se o fio não for absorvível ou se a ligadura for inadequada. |
| Técnica de Parkland | Semelhante à Pomeroy, mas a alça da trompa é seccionada em seu meio, e os dois cotos resultantes são ligados separadamente com fio absorvível. Os cotos ficam separados desde o início. | Taxa de falha teoricamente menor que a Pomeroy, pois os cotos já estão separados. | Requer um pouco mais de dissecção do mesossalpinge. |
| Clipes (Filshie ou Hulka) | Clipes de titânio (Filshie) ou plástico com mola de metal (Hulka) são aplicados laparoscopicamente para esmagar e ocluir um pequeno segmento da trompa. | Causam destruição mínima da trompa (maior potencial de reversão, embora não seja o objetivo), procedimento rápido. | Risco de aplicação incorreta ou queda do clipe. Custo mais elevado. |
| Anéis de Silicone (Yoon) | Um anel de silicone é colocado ao redor de uma alça da trompa, causando necrose isquêmica e posterior fibrose. Realizado por laparoscopia. | Alta eficácia. | Pode causar mais dor pós-operatória devido à isquemia. Risco de secção da trompa durante a aplicação. |
| Eletrocauterização Bipolar | Uma corrente elétrica é usada para coagular e destruir um segmento de pelo menos 3 cm da trompa. É o método laparoscópico com a menor taxa de falha. | Altíssima eficácia. | Causa maior destruição tecidual, tornando a reversão praticamente impossível. Risco de lesão térmica em órgãos adjacentes. |
Raciocínio Clínico
A escolha da técnica depende da via de acesso, da experiência do cirurgião e dos recursos disponíveis. Em uma laqueadura durante cesariana, a técnica de Pomeroy é a mais prática e consagrada. Em uma laqueadura de intervalo por laparoscopia, a eletrocoagulação bipolar é a que oferece a maior eficácia, enquanto os clipes preservam mais tecido tubário.
Seleção de Candidatas e Aconselhamento
Esta é a etapa mais crítica do processo. A decisão pela esterilização deve ser autônoma, consciente e bem informada. O aconselhamento adequado é fundamental para minimizar o risco de arrependimento.
Pontos-Chave do Aconselhamento:
- Permanência do Método: Deve-se enfatizar que a laqueadura é um procedimento permanente e de difícil reversão. A cirurgia de reversão (reanastomose tubária) é complexa, cara, não é coberta pelo SUS e possui baixas taxas de sucesso.
- Taxas de Falha: Nenhum método é 100% eficaz. A taxa de falha cumulativa da laqueadura é de aproximadamente 0,5% (ou 5 em 1000 mulheres). É crucial informar que a gravidez, embora rara, pode ocorrer meses ou até anos após o procedimento.
- Risco de Gravidez Ectópica: Este é um ponto de extrema importância. Se ocorrer falha da laqueadura, o risco de a gestação ser ectópica (fora do útero, geralmente na trompa) é significativamente elevado. Toda mulher com laqueadura prévia que apresentar atraso menstrual e/ou dor pélvica deve ser investigada para gravidez ectópica.
- Riscos Cirúrgicos: Como todo procedimento cirúrgico, existem riscos relacionados à anestesia, sangramento, infecção e lesão de órgãos adjacentes (bexiga, intestino, grandes vasos).
- Alternativas Contraceptivas: É mandatório discutir as alternativas, especialmente os LARCs (Long-Acting Reversible Contraceptives), que possuem eficácia comparável à laqueadura, mas com a vantagem da reversibilidade.
- DIU de Cobre: Duração de 10 anos, não hormonal.
- DIU Hormonal (Mirena®/Kyleena®): Duração de 5 anos, com benefício adicional de reduzir o fluxo menstrual.
- Implante Subdérmico (Implanon®): Duração de 3 anos, alta eficácia.
- Arrependimento: Discutir os fatores de risco para arrependimento, que incluem idade jovem (< 30 anos), baixa paridade, decisão tomada em momento de estresse (ex: durante um parto complicado) ou instabilidade conjugal.
Avaliação Pré-Cirúrgica
A avaliação pré-cirúrgica visa garantir a segurança da paciente e o cumprimento dos requisitos legais.
- Confirmar Ausência de Gravidez: É obrigatória a realização de um teste de gravidez (Beta-hCG sérico ou urinário) o mais próximo possível da data da cirurgia para evitar a laqueadura em uma paciente já grávida.
- Avaliação Clínica e Laboratorial: Exame físico completo e exames pré-operatórios de rotina (hemograma, coagulograma, etc.), conforme a condição clínica da paciente e os protocolos da instituição.
- Documentação Legal: O mais importante é o preenchimento e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do Relatório Médico, onde a paciente e o médico atestam que todas as informações foram fornecidas e a decisão foi voluntária.
Marco Legal e Ético no Brasil
A esterilização voluntária no Brasil é regida pela Lei do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/1996), que foi significativamente alterada pela Lei nº 14.443, de 2 de setembro de 2022. Conhecer as mudanças é fundamental para as provas de residência.
Armadilhas do ENARE: A Nova Lei da Laqueadura
A prova do ENARE 2023 (Questão 67) cobrou diretamente o conhecimento da nova lei. Questões comparando a legislação antiga com a nova são altamente prováveis. O ponto mais importante é a eliminação da necessidade de consentimento do cônjuge.
Principais Mudanças da Lei nº 14.443/2022
| Critério | Lei Antiga (até 2022) | Nova Lei (Lei nº 14.443/2022 - VIGENTE) |
|---|---|---|
| Idade Mínima | Homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos. | Homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 21 anos. |
| Número de Filhos | Alternativa à idade: ter, pelo menos, dois filhos vivos. | Alternativa à idade: ter, pelo menos, dois filhos vivos (este critério foi mantido). |
| Consentimento do Cônjuge | Exigido na vigência de sociedade conjugal. | NÃO É MAIS EXIGIDO. A decisão é autônoma da pessoa. |
| Laqueadura no Parto/Aborto | Proibida durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores. | Permitida durante o período de parto, com a condição de que a manifestação da vontade tenha ocorrido com a antecedência mínima de 60 dias. |
| Prazo Mínimo | Mantido o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual a pessoa tem acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar. | |
Complicações e Prognóstico
Riscos de Curto Prazo
- Complicações Anestésicas: Reações a medicamentos, complicações respiratórias.
- Hemorragia: Lesão de vasos do mesossalpinge ou grandes vasos pélvicos.
- Infecção: Infecção do sítio cirúrgico ou doença inflamatória pélvica (DIP).
- Lesão de Órgãos Adjacentes: Lesão de bexiga, ureter, alças intestinais ou grandes vasos, especialmente na laparoscopia com o uso de trocartes e energia térmica.
Riscos de Longo Prazo
- Falha do Método e Gravidez: Como já mencionado, a taxa de falha é baixa (~0.5%).
- Gravidez Ectópica: O risco relativo de uma gravidez pós-laqueadura ser ectópica é muito alto (cerca de 33%). Isso ocorre porque pode haver uma recanalização parcial da trompa (fístula), suficiente para a passagem dos espermatozoides (menores), mas insuficiente para a passagem do óvulo fertilizado (maior) de volta ao útero.
- Síndrome Pós-Laqueadura: Termo controverso que descreve um conjunto de sintomas como irregularidade menstrual, aumento do fluxo e dismenorreia. Grandes estudos epidemiológicos, como o CREST (U.S. Collaborative Review of Sterilization), não encontraram associação causal consistente entre a laqueadura e alterações nos padrões menstruais. Acredita-se que muitas dessas alterações se devam à interrupção de contraceptivos hormonais prévios ou ao processo natural de envelhecimento ovariano.
Realização em Populações Especiais (Momento da Cirurgia)
O momento da realização da laqueadura é uma consideração importante.
- Laqueadura de Intervalo: Realizada em qualquer momento que não esteja associado a uma gestação. A via de eleição é a laparoscópica.
- Laqueadura Pós-Parto:
- Durante a Cesárea: É o momento mais oportuno, pois o abdômen já está aberto. Aumenta minimamente o tempo cirúrgico e não eleva significativamente a morbidade.
- Após Parto Vaginal: Idealmente realizada nas primeiras 48 horas, através de uma minilaparotomia infraumbilical. Após este período, o útero começa a involuir, e as trompas se tornam menos acessíveis por essa via.
- Laqueadura Pós-Aborto: Pode ser realizada imediatamente após a evacuação uterina no primeiro trimestre, geralmente por laparoscopia.
Raciocínio Clínico
Para uma paciente com múltiplas cesáreas prévias e prole completa, a laqueadura intraparto é a opção mais lógica e segura, evitando a necessidade de uma nova abordagem cirúrgica e anestesia no futuro. Para uma mulher que deseja a laqueadura fora do ciclo gestacional, a laparoscopia de intervalo é o padrão-ouro devido à sua rápida recuperação e menor morbidade.
