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Laceração Perineal

A laceração perineal, ou trauma perineal obstétrico, refere-se a qualquer lesão que ocorra nos tecidos moles do canal de parto (períneo, vagina, vulva) durante o parto vaginal. É uma das morbidades maternas mais comuns associadas ao parto. A sua correta identificação, classificação e reparo são fundamentais para prevenir complicações agudas e, principalmente, sequelas de longo prazo que afetam significativamente a qualidade de vida da mulher, como dor crônica e incontinência anal.

Introdução & Epidemiologia

O trauma perineal durante o parto vaginal é um evento extremamente comum, com alguma forma de laceração ocorrendo em até 85% das mulheres, especialmente em primíparas. A maioria dessas lesões é de primeiro ou segundo grau e cicatriza sem intercorrências. No entanto, as lesões mais graves, que envolvem o complexo esfincteriano anal (lacerações de 3º e 4º graus), conhecidas como Lesões Obstétricas do Esfíncter Anal (LOEA), representam um desafio clínico significativo.

A incidência das LOEA varia amplamente na literatura, mas estima-se que ocorram em cerca de 1 a 11% dos partos vaginais. A identificação correta é crucial, pois lesões não diagnosticadas ou mal reparadas são a principal causa de incontinência anal em mulheres jovens.

Fatores de Risco Chave

O reconhecimento dos fatores de risco é essencial para a vigilância e possível prevenção. Os principais fatores associados a um maior risco de lacerações perineais graves são:

  • Nuliparidade: O fator de risco mais importante. Os tecidos perineais de uma primigesta são menos complacentes e nunca foram submetidos ao estiramento do parto.
  • Macrossomia Fetal: Fetos com peso estimado acima de 4.000g aumentam significativamente o estiramento e a pressão sobre o períneo.
  • Parto Vaginal Operatório (Instrumental): O uso de fórceps está mais associado a lacerações graves do que o vácuo extrator, embora ambos aumentem o risco em comparação com o parto espontâneo. O fórceps ocupa mais espaço no canal de parto e pode exercer uma força mais direta sobre o períneo posterior.
  • Episiotomia Mediana: Embora a episiotomia tenha sido criada para "proteger" o períneo, a incisão na linha média (mediana) cria um ponto de fraqueza que pode se estender diretamente para o esfíncter anal e o reto. Por este motivo, a episiotomia médio-lateral é preferível quando a indicação é precisa.
  • Período Expulsivo Prolongado: Um segundo estágio do trabalho de parto muito longo pode levar a edema tecidual, tornando o períneo mais friável e suscetível a lesões.
  • Parto Precipitado (Taquitócito): Um parto muito rápido não permite que os tecidos perineais se distendam gradualmente, resultando em lacerações mais extensas.
  • Posição Occipito-Posterior Persistente: Nesta posição, um diâmetro maior da cabeça fetal (o occipto-frontal) se apresenta ao períneo, aumentando o estiramento.

Anatomia e Fisiopatologia

Um entendimento detalhado da anatomia perineal é pré-requisito para o diagnóstico e reparo adequados das lacerações. O períneo feminino é uma estrutura complexa em forma de losango, que sustenta os órgãos pélvicos.

Estruturas Anatômicas Relevantes

  • Corpo Perineal (Centro Tendíneo do Períneo): É a estrutura central, uma massa fibromuscular localizada entre a fúrcula vaginal e o ânus. É o ponto de convergência de vários músculos, incluindo o músculo bulboesponjoso, os músculos transversos superficiais do períneo e fibras do esfíncter anal externo. Sua integridade é crucial para o suporte do assoalho pélvico.
  • Músculos Superficiais: Incluem o músculo bulboesponjoso (que circunda o intróito vaginal) e o músculo transverso superficial do períneo. Estes são frequentemente lesados em lacerações de 2º grau.
  • Complexo Esfincteriano Anal (CEA): É a estrutura mais crítica em termos de função de continência. É composto por dois músculos distintos:
    • Esfíncter Anal Interno (EAI): Um anel de músculo liso, espessamento da camada muscular circular do reto. É responsável por cerca de 70-85% do tônus de repouso do canal anal e é involuntário. Sua lesão está fortemente associada à incontinência fecal passiva (escape).
    • Esfíncter Anal Externo (EAE): Um anel de músculo estriado esquelético, que circunda o EAI. É voluntário e responsável pela contração anal para manter a continência sob pressão (tosse, espirro) ou urgência.
  • Mucosa Retal: A camada mais interna do canal anal e do reto. Sua violação caracteriza uma laceração de 4º grau.

Mecanismo da Lesão

Durante o coroamento, a cabeça fetal exerce uma pressão imensa sobre o assoalho pélvico e o períneo. Os tecidos se esticam até seu limite elástico. A laceração ocorre quando a força de distensão excede a capacidade do tecido de se alongar. A lesão geralmente começa na fúrcula vaginal posterior e se estende posteriormente em direção ao ânus, através das camadas anatômicas (pele, mucosa, corpo perineal, e potencialmente o complexo esfincteriano e a mucosa retal).

Apresentação Clínica & Exame Físico

Toda mulher que passa por um parto vaginal deve ser submetida a uma inspeção sistemática e completa do trato genital inferior, mesmo que não haja sangramento evidente ou queixa de dor. A falha em identificar uma laceração, especialmente uma LOEA, é uma das principais causas de morbidade a longo prazo.

Técnica de Exame Sistemático

  1. Preparação: Garanta boa iluminação, analgesia adequada (anestesia local ou o efeito residual da analgesia de parto) e posicionamento da paciente em litotomia.
  2. Inspeção Inicial: Inspecione a vulva, o períneo e a região perianal em busca de lacerações óbvias, hematomas ou sangramento ativo.
  3. Exame Vaginal: Com os dedos indicador e médio, explore sistematicamente as paredes vaginais anterior, posterior e laterais, até os fórnices, em busca de lacerações. Frequentemente, lacerações vaginais altas podem passar despercebidas.
  4. Exame Cervical: Se houver sangramento excessivo sem uma fonte perineal ou vaginal clara, o colo uterino deve ser visualizado usando válvulas vaginais para descartar uma laceração cervical.
  5. Avaliação Específica do Períneo e do Esfíncter Anal: Esta é a etapa mais crítica.
    • Exposição: Coloque o dedo indicador na vagina e o polegar externamente para expor a extensão da laceração perineal.
    • Identificação das Camadas: Identifique visualmente as camadas de tecido lesadas: mucosa vaginal, músculos do corpo perineal.
    • Avaliação do Esfíncter: Se a lesão se estende em direção ao ânus, a avaliação do complexo esfincteriano é mandatória. Realize um toque retal com o dedo indicador enquanto o polegar da mesma mão palpa a área da laceração. Peça à paciente para contrair o ânus ("como se estivesse segurando os gases"). Um esfíncter íntegro será sentido como um anel muscular espesso e contínuo que se contrai ao redor do dedo. Uma lesão é suspeitada se houver uma falha ("gap") na continuidade do anel muscular ou se a contração for assimétrica ou ausente.

Raciocínio Clínico

Por que o toque retal é indispensável na avaliação de qualquer laceração perineal que não seja claramente superficial? Porque a inspeção visual isolada pode subestimar a lesão. O Esfíncter Anal Interno (EAI) tem uma aparência pálida e lisa, podendo ser confundido com tecido fascial. A palpação do tônus e da integridade do anel muscular é o método clínico mais confiável para diagnosticar uma LOEA no momento do parto.

Avaliação Diagnóstica: A Classificação

A classificação padronizada das lacerações perineais é universalmente utilizada e é um tópico de altíssima frequência em provas. A classificação é baseada na profundidade e nas estruturas anatômicas envolvidas.

Grau da Laceração Estruturas Envolvidas Notas Clínicas Importantes
1º Grau Lesão apenas da pele do períneo e/ou da mucosa vaginal. Não há envolvimento muscular. Muitas vezes não requer sutura, a menos que haja sangramento ativo ou falha na aposição das bordas.
2º Grau Lesão da pele, mucosa e dos músculos do corpo perineal (e.g., bulboesponjoso, transverso superficial). O complexo esfincteriano anal está intacto. Esta é a definição clássica de uma laceração que requer reparo muscular (perineorrafia).
3º Grau Lesão que se estende ao complexo esfincteriano anal (CEA). É subdividida para melhor caracterizar a extensão da lesão esfincteriana. Requer reparo especializado, idealmente por um obstetra experiente.
3a Lesão de menos de 50% da espessura do Esfíncter Anal Externo (EAE).
3b Lesão de mais de 50% da espessura do Esfíncter Anal Externo (EAE).
3c Lesão completa do EAE e também do Esfíncter Anal Interno (EAI). Pior prognóstico para continência de repouso devido à lesão do EAI.
4º Grau Lesão de todas as camadas anteriores (pele, músculos perineais, CEA completo) mais a mucosa retal. Há uma comunicação direta entre o lúmen retal e a vagina. A lesão mais grave. O reparo da mucosa retal é a primeira e crucial etapa da correção cirúrgica para evitar a formação de fístula retovaginal.

Armadilhas do ENARE - Conceito-Chave Validado (ENARE 2022, Q66)

A principal fonte de confusão nas provas é a distinção entre lacerações de 2º e 3º grau. Uma questão descreverá uma lesão que atinge a "musculatura perineal". O candidato deve saber que o envolvimento dos músculos do corpo perineal (bulboesponjoso, transverso superficial) sem lesão do esfíncter anal caracteriza uma laceração de 2º grau. A lesão só se torna de 3º grau no momento em que há qualquer grau de ruptura do complexo esfincteriano anal.

Tratamento & Manejo

O objetivo do tratamento é restaurar a anatomia normal, minimizar o risco de infecção e deiscência, e preservar a função sexual e esfincteriana.

Princípios Gerais

  • Anestesia Adequada: Essencial para um bom reparo. Anestesia local com lidocaína a 1% pode ser suficiente para 1º e 2º graus. Para 3º e 4º graus, analgesia regional (raqui ou peridural) é fortemente recomendada para garantir relaxamento muscular e conforto da paciente.
  • Material de Sutura: Fios absorvíveis sintéticos (e.g., poliglactina 910 [Vicryl®], ácido poliglicólico [Dexon®]) são os mais utilizados. Fios 2-0 ou 3-0 são apropriados para a maioria das camadas.
  • Técnica Cirúrgica: O reparo deve ser feito por planos anatômicos, de dentro para fora (do mais profundo para o mais superficial).

Reparo por Grau

  • 1º Grau: Muitas não precisam de sutura. Se houver sangramento ou má aposição, alguns pontos simples ou uma sutura contínua com fio 3-0 ou 4-0 são suficientes.
  • 2º Grau:
    1. Mucosa Vaginal: Suturada primeiro, geralmente com uma sutura contínua (chuleio simples ou ancorado) com fio 2-0 ou 3-0, começando cerca de 1 cm acima do ápice da laceração.
    2. Músculos Perineais: A camada muscular do corpo perineal é reaproximada com pontos separados ou uma sutura contínua com fio 2-0 para restaurar o suporte.
    3. Pele: A pele pode ser fechada com pontos simples separados ou, preferencialmente, com uma sutura subcuticular contínua, que está associada a menos dor no pós-operatório.
  • 3º e 4º Grau (Reparo da LOEA): Este é um procedimento mais complexo que deve ser realizado em ambiente cirúrgico com condições ideais.
    1. (Apenas 4º Grau) Reparo da Mucosa Retal: Esta é a primeira camada a ser reparada. Usa-se uma sutura contínua com fio fino (3-0 ou 4-0) para fechar a mucosa, garantindo um selo à prova d'água. Alguns cirurgiões adicionam uma segunda camada de imbricação da muscular do reto.
    2. Reparo do Esfíncter Anal Interno (EAI): Se lesado (lesão 3c ou 4º grau), este músculo liso deve ser reparado separadamente com pontos separados de fio 3-0.
    3. Reparo do Esfíncter Anal Externo (EAE): Os cotos musculares retraídos devem ser identificados e mobilizados. Existem duas técnicas principais:
      • Técnica Termino-terminal (End-to-End): As duas extremidades rompidas do músculo são aproximadas e suturadas uma à outra.
      • Técnica de Sobreposição (Overlapping): Uma extremidade do músculo é passada sobre a outra e suturada, criando uma sobreposição. Esta técnica tem sido associada a melhores resultados funcionais em alguns estudos, especialmente para o EAE, pois cria uma zona de reforço muscular.
    4. Reparo Final: Após o reparo do esfíncter, o restante da laceração (músculos perineais, vagina e pele) é fechado como em uma laceração de 2º grau.

Cuidados Pós-operatórios (especialmente para 3º e 4º graus)

  • Analgesia: Uso regular de AINEs (se não houver contraindicação) e paracetamol. Opióides podem ser necessários nos primeiros dias.
  • Cuidados com a Bexiga: Sondagem vesical de demora por 12-24 horas pode ser necessária para evitar retenção urinária por dor e edema.
  • Função Intestinal: O uso de laxantes osmóticos ou emolientes fecais (e.g., lactulose, macrogol) é mandatório por pelo menos 10-14 dias para evitar fezes endurecidas e esforço evacuatório, que colocariam tensão na linha de sutura do esfíncter.
  • Higiene Local: Banhos de assento e higiene perineal com água após cada evacuação ou micção.
  • Antibioticoprofilaxia: Para lacerações de 3º e 4º grau, uma dose única de cefalosporina de 2ª geração (e.g., cefoxitina) ou clindamicina/gentamicina no momento do reparo é recomendada para reduzir o risco de infecção e deiscência.

Complicações & Prognóstico

O prognóstico após o reparo primário adequado é geralmente bom, mas uma minoria de mulheres, especialmente aquelas com lesões mais graves, pode desenvolver complicações.

Complicações a Curto Prazo

  • Dor: A complicação mais comum.
  • Infecção da Ferida: Risco aumentado em lesões de 4º grau devido à contaminação fecal.
  • Deiscência da Sutura: A falha na cicatrização da ferida, mais comum em casos de infecção ou hematoma.
  • Hematoma Perineal: Acúmulo de sangue nos tecidos, causando dor intensa e edema.

Sequelas a Longo Prazo

  • Dispareunia: Dor durante a relação sexual, que pode ser superficial (na cicatriz) ou profunda.
  • Dor Perineal Crônica.
  • Incontinência Anal: A sequela mais temida. Pode variar de incontinência para flatos (mais comum) a incontinência para fezes líquidas ou sólidas. Afeta até 50% das mulheres após reparo de LOEA, embora muitas vezes de forma leve.
  • Fístula Retovaginal: Uma complicação rara, mas devastadora, de uma laceração de 4º grau não reparada ou com cicatrização inadequada.

Implicações para Gestação Futura

Uma história de laceração de 3º ou 4º grau não é uma indicação absoluta para cesariana em uma gestação futura. A decisão sobre a via de parto deve ser individualizada. Recomenda-se uma avaliação da função anorretal (questionários de sintomas, manometria anorretal, ultrassom endoanal) no final da gestação. Se a paciente estiver assintomática e o esfíncter estiver funcionalmente e anatomicamente recuperado, o parto vaginal pode ser oferecido. Se a paciente for sintomática (incontinência anal) ou houver evidência de um defeito esfincteriano significativo, a cesariana eletiva é a via de parto mais segura para prevenir danos adicionais.

Prevenção e Considerações Especiais

Embora nem todo trauma perineal possa ser evitado, algumas estratégias baseadas em evidências podem reduzir a incidência de lacerações graves.

  • Massagem Perineal Antenatal: Realizada a partir de 34-35 semanas de gestação, demonstrou reduzir o risco de trauma perineal que necessita de sutura, especialmente em primíparas.
  • Compressas Mornas no Períneo: A aplicação de compressas mornas no períneo durante o segundo estágio do trabalho de parto está associada a uma menor incidência de lacerações de 3º e 4º graus.
  • Controle do Desprendimento Cefálico: Evitar o desprendimento explosivo da cabeça fetal, através do apoio manual do períneo e da orientação à mulher para não empurrar durante o pico da contração no momento do coroamento, permite uma distensão mais gradual dos tecidos.

O Papel da Episiotomia

A episiotomia é a incisão cirúrgica do períneo para ampliar o intróito vaginal. Seu uso rotineiro foi abandonado, pois não previne lacerações mais graves e está associado a mais dor e complicações.

  • Uso Restritivo vs. Rotineiro: A recomendação atual é para o uso restritivo da episiotomia, indicada apenas em situações de sofrimento fetal agudo no período expulsivo ou em partos vaginais operatórios difíceis.
  • Mediana vs. Médio-lateral:
    • Mediana: Mais fácil de reparar, menos dor no pós-operatório, menor perda sanguínea. Principal desvantagem: Risco muito maior de extensão para o esfíncter anal (lesão de 3º/4º grau).
    • Médio-lateral: Direcionada a 45-60 graus da linha média. Principal vantagem: Protege o complexo esfincteriano anal. Desvantagens: Reparo mais difícil, maior perda sanguínea, mais dor pós-operatória.

Raciocínio Clínico

Se a episiotomia for considerada necessária, a técnica médio-lateral é a preferida na maioria dos cenários clínicos. A lógica é que, embora possa causar mais morbidade a curto prazo (dor, sangramento), ela oferece uma proteção significativa contra a complicação mais devastadora a longo prazo: a lesão obstétrica do esfíncter anal (LOEA).

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