Isoimunização Rh
A isoimunização Rh, também conhecida como aloimunização Rh, é uma das condições mais clássicas da obstetrícia e um tema recorrente em provas de residência. Embora sua incidência tenha diminuído drasticamente com a profilaxia, o entendimento de sua fisiopatologia, diagnóstico e manejo é fundamental, pois as consequências da doença não tratada são graves. A abordagem moderna transformou uma condição frequentemente fatal para o feto em uma doença com excelente prognóstico quando manejada adequadamente.
Introdução e Epidemiologia
A isoimunização Rh é o processo pelo qual uma gestante com fator Rh negativo (Rh-) desenvolve anticorpos contra o antígeno D, presente na superfície das hemácias de um feto Rh positivo (Rh+). Este processo de sensibilização ocorre quando há uma hemorragia feto-materna, permitindo que as hemácias fetais Rh+ entrem na circulação materna. O sistema imune da mãe, não reconhecendo o antígeno D, o identifica como estranho e monta uma resposta imune, produzindo anticorpos anti-D.
O problema não reside na gestação em que ocorre a sensibilização, mas sim nas gestações subsequentes com fetos Rh+. Nesses casos, os anticorpos maternos (especificamente da classe IgG) atravessam a barreira placentária, atacam as hemácias fetais e causam hemólise. Esta condição é denominada Doença Hemolítica Perinatal (DHPN), ou Doença Hemolítica do Feto e do Recém-Nascido (DHFRN).
O impacto da introdução da imunoprofilaxia com imunoglobulina anti-D na década de 1960 foi revolucionário. Antes de seu uso rotineiro, a isoimunização Rh era uma causa significativa de morbimortalidade perinatal, incluindo hidropsia fetal e kernicterus. Atualmente, nos países onde a profilaxia é amplamente disponível e utilizada, a incidência da doença caiu mais de 90%, tornando-se uma condição relativamente rara, mas cujo manejo correto continua sendo uma competência essencial.
Fisiopatologia
A fisiopatologia da isoimunização Rh é um processo imunológico clássico de sensibilização e resposta secundária.
Sensibilização Materna
O evento inicial é a hemorragia feto-materna (HFM), que expõe o sistema imune materno Rh- ao antígeno D das hemácias fetais Rh+. Embora pequenas HFM ocorram em quase todas as gestações, a passagem de um volume maior de sangue fetal é mais provável em certas situações:
- Parto: É o momento de maior risco, especialmente durante a dequitação placentária.
- Procedimentos invasivos: Amniocentese, biópsia de vilo corial, cordocentese.
- Trauma abdominal.
- Versão cefálica externa.
- Sangramento na gestação (ameaça de aborto, descolamento prematuro de placenta).
- Abortamento (espontâneo ou provocado) e gravidez ectópica.
Após a exposição inicial, o sistema imune materno produz uma resposta primária, caracterizada pela produção de anticorpos da classe IgM. Esses anticorpos são moléculas grandes que não atravessam a placenta. Portanto, na primeira gestação em que ocorre a sensibilização, o feto geralmente não é afetado.
Resposta Secundária e Doença Fetal
Uma vez que a mãe está sensibilizada, qualquer exposição subsequente ao antígeno D, mesmo que com um volume mínimo de sangue fetal em uma futura gestação, desencadeará uma resposta imune secundária (anamnéstica). Esta resposta é muito mais rápida, robusta e caracterizada pela produção de anticorpos da classe IgG.
Os anticorpos IgG são moléculas menores que atravessam ativamente a barreira placentária. Ao chegarem à circulação fetal, eles se ligam ao antígeno D nas hemácias do feto Rh+. Essas hemácias opsonizadas (cobertas por anticorpos) são reconhecidas e destruídas pelo sistema reticuloendotelial do feto, principalmente no baço. Este processo de destruição de hemácias é chamado de hemólise extravascular.
Raciocínio Clínico
A distinção entre IgM e IgG é a chave para entender por que a primeira gestação geralmente é poupada. A resposta primária com IgM é inofensiva para o feto. É a "memória imunológica" e a subsequente produção de IgG que causam a doença. A profilaxia com imunoglobulina anti-D funciona "enganando" o sistema imune materno, destruindo as hemácias fetais Rh+ antes que a mãe tenha tempo de montar sua própria resposta imune primária.
A hemólise contínua leva a duas consequências principais para o feto:
- Anemia: A destruição das hemácias leva à anemia progressiva. Em resposta, a medula óssea fetal e sítios de hematopoiese extramedular (fígado e baço) aumentam drasticamente a produção de eritroblastos (hemácias jovens e imaturas), uma condição conhecida como eritroblastose fetal.
- Hiperbilirrubinemia: A quebra da hemoglobina libera bilirrubina. Durante a gestação, a bilirrubina fetal é eficientemente depurada pela placenta e metabolizada pelo fígado materno. Portanto, a icterícia fetal é rara. O problema da hiperbilirrubinemia se manifesta após o nascimento, quando o fígado imaturo do recém-nascido não consegue conjugar o excesso de bilirrubina.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica varia drasticamente dependendo da gravidade da hemólise.
Mãe
A gestante sensibilizada é completamente assintomática. A doença é exclusivamente fetal e neonatal.
Feto e Recém-Nascido
O espectro da Doença Hemolítica Perinatal (DHPN) pode variar de leve a fatal.
- Forma Leve: Anemia leve ao nascimento com hiperbilirrubinemia discreta a moderada. O recém-nascido pode apresentar icterícia nas primeiras 24 horas de vida, que geralmente responde bem à fototerapia.
- Forma Moderada: Anemia mais significativa (hepatomegalia e esplenomegalia podem estar presentes devido à hematopoiese extramedular) e hiperbilirrubinemia acentuada, com risco de evoluir para kernicterus se não tratada agressivamente com fototerapia e, possivelmente, exsanguineotransfusão.
- Forma Grave (Hidropsia Fetal): É a manifestação mais severa da DHPN. A anemia profunda leva a uma insuficiência cardíaca de alto débito. A hipóxia tecidual e a insuficiência hepática (com hipoalbuminemia) contribuem para o quadro. A hidropsia fetal é caracterizada por edema generalizado, definido pela presença de líquido em pelo menos duas cavidades ou compartimentos fetais. Os achados ultrassonográficos incluem:
- Ascite
- Derrame pleural
- Derrame pericárdico
- Edema de subcutâneo (pele > 5 mm)
- Polidrâmnio e espessamento placentário (placentomegalia) também são comuns.
Avaliação Diagnóstica
O diagnóstico e o manejo dependem de uma triagem pré-natal sistemática e rigorosa.
Triagem Materna
A base do diagnóstico é a triagem sorológica materna.
- Primeira Consulta Pré-Natal: Todas as gestantes devem realizar a tipagem sanguínea ABO/Rh e a Pesquisa de Anticorpos Irregulares (PAI), também conhecida como Teste de Coombs Indireto.
- Coombs Indireto: Pesquisa a presença de anticorpos (como o anti-D) livres no soro da mãe.
- Manejo da Gestante Rh-Negativa Não Sensibilizada (Coombs Indireto Negativo):
- Repetir o Coombs Indireto por volta da 28ª semana de gestação. Se permanecer negativo, a profilaxia com imunoglobulina anti-D é administrada.
- Repetir o Coombs Indireto no momento do parto.
- Após o parto, coletar sangue do cordão umbilical para determinar o tipo sanguíneo do recém-nascido. Se o bebê for Rh+, a mãe recebe outra dose de imunoglobulina anti-D, idealmente nas primeiras 72 horas.
- Manejo da Gestante Rh-Negativa Sensibilizada (Coombs Indireto Positivo):
- Identificar o anticorpo e realizar a titulação (ex: 1:2, 1:4, 1:8, 1:16...).
- O título crítico é o nível a partir do qual há risco significativo de anemia fetal grave (geralmente ≥ 1:16, mas pode variar entre 1:8 e 1:32 dependendo do serviço).
- Se o título for abaixo do crítico, ele é monitorado a cada 2-4 semanas. Se atingir ou ultrapassar o nível crítico, a vigilância do bem-estar fetal deve ser iniciada.
Avaliação Fetal
Uma vez que a mãe é considerada sensibilizada com títulos críticos, o foco se volta para a detecção não invasiva da anemia fetal.
- Dopplerfluxometria da Artéria Cerebral Média (ACM): É o padrão-ouro não invasivo para avaliar a anemia fetal.
- Princípio: Em estados de anemia, o sangue se torna menos viscoso e o coração aumenta seu débito para compensar a baixa capacidade de transporte de oxigênio. Isso resulta em um aumento da velocidade do fluxo sanguíneo em vários vasos, incluindo a ACM.
- Técnica: Mede-se o pico de velocidade sistólica (PVS) na ACM.
- Interpretação: O valor obtido é comparado com valores de referência para a idade gestacional e expresso em Múltiplos da Mediana (MoM).
- PVS da ACM > 1,5 MoM: Sugere anemia fetal moderada a grave e é uma indicação para investigação invasiva (cordocentese) para confirmar a anemia e realizar tratamento (transfusão intrauterina).
- PVS da ACM entre 1,29 e 1,49 MoM: Sugere anemia leve, requer acompanhamento mais frequente (semanal).
- PVS da ACM < 1,29 MoM: Baixo risco de anemia, acompanhamento a cada 1-2 semanas.
- Cordocentese (Amostragem de Sangue do Cordão Umbilical): É o método invasivo para diagnóstico definitivo (medindo o hematócrito fetal) e tratamento (transfusão intrauterina). Devido aos riscos (perda fetal, sangramento, infecção), hoje é reservada para casos com forte suspeita de anemia grave no Doppler da ACM, sendo frequentemente um procedimento diagnóstico e terapêutico ao mesmo tempo.
Armadilhas do ENARE
A prova pode confundir o Coombs Direto com o Indireto. Lembre-se:
- Coombs Indireto: Realizado no soro da mãe. Procura por anticorpos livres (IN-direto = IN-divíduo mãe). É usado para triagem pré-natal.
- Coombs Direto: Realizado nas hemácias do recém-nascido. Procura por anticorpos já ligados à superfície das hemácias (Direto = Diretamente na hemácia). É usado para confirmar a DHPN no neonato.
Tratamento e Manejo
O manejo pode ser dividido em prevenção (o mais importante) e tratamento da doença já estabelecida.
Prevenção: Imunoprofilaxia com Imunoglobulina Anti-D
A prevenção da sensibilização é a pedra angular do manejo. A imunoglobulina anti-D é uma solução concentrada de anticorpos IgG anti-D que elimina as hemácias fetais Rh+ da circulação materna antes que o sistema imune da mãe possa reconhecê-las e montar sua própria resposta imune duradoura.
| Situação Clínica | Indicação | Observações |
|---|---|---|
| Profilaxia de Rotina | Gestante Rh-negativa com Coombs Indireto negativo | Administrar entre 28 e 32 semanas de gestação. |
| Pós-Parto | Mãe Rh-negativa com Coombs Indireto negativo e recém-nascido Rh-positivo | Administrar o mais rápido possível, idealmente nas primeiras 72 horas após o parto. |
| Eventos Sensibilizantes | Qualquer gestante Rh-negativa com Coombs Indireto negativo que sofra um evento com risco de HFM. | Exemplos: abortamento, gravidez ectópica, amniocentese, biópsia de vilo, trauma abdominal, sangramento vaginal, versão cefálica externa, mola hidatiforme. A dose pode ser menor (50 mcg) se o evento ocorrer antes de 12 semanas. |
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2020, Q68)
A indicação fundamental para a administração da imunoglobulina anti-D é uma mãe Rh-negativa NÃO sensibilizada. A prova de que ela não está sensibilizada é o Teste de Coombs Indireto NEGATIVO. Administrar a imunoglobulina a uma mulher já sensibilizada (Coombs positivo) não tem benefício e não reverte a sensibilização.
Manejo do Feto Afetado
Em gestantes já sensibilizadas, o manejo visa monitorar a anemia fetal e intervir quando necessário.
- Monitoramento: Titulação de anticorpos seriada. Se o título for crítico (≥1:16), iniciar Doppler da ACM a cada 1-2 semanas a partir de 18-24 semanas.
- Intervenção: Se o PVS da ACM for > 1,5 MoM, indica-se a transfusão intrauterina (TIU). O procedimento é realizado via cordocentese, sob guia ultrassonográfico, infundindo concentrado de hemácias O negativo, irradiado e CMV-negativo, diretamente na veia umbilical. As TIUs podem ser repetidas a cada 2-4 semanas até que o feto atinja a maturidade pulmonar para o parto.
- Parto: O momento do parto é planejado com base na gravidade da doença e na idade gestacional. Em casos leves, pode-se aguardar o termo. Em casos graves que requerem múltiplas TIUs, o parto é frequentemente antecipado assim que a maturidade pulmonar é atingida (geralmente entre 34-37 semanas).
Complicações e Prognóstico
Complicações
- Fetais: Anemia grave, hidropsia fetal, óbito fetal.
- Neonatais: A principal complicação neonatal é a hiperbilirrubinemia grave. O acúmulo de bilirrubina indireta (lipossolúvel) pode atravessar a barreira hematoencefálica e se depositar nos núcleos da base do cérebro, causando uma encefalopatia bilirrubínica aguda e crônica (kernicterus), que leva a sequelas neurológicas permanentes como paralisia cerebral coreoatetoide, surdez e déficit cognitivo. Outras complicações incluem anemia neonatal que pode necessitar de transfusões e hepatoesplenomegalia.
Prognóstico
Com a triagem pré-natal universal, o uso adequado da imunoprofilaxia anti-D e as modernas técnicas de vigilância e terapia fetal (Doppler da ACM e TIU), o prognóstico para a maioria dos fetos e recém-nascidos é excelente. A mortalidade perinatal em centros de referência para fetos submetidos a TIU é baixa, e o desenvolvimento neurológico a longo prazo é geralmente normal.
Populações Especiais: Aloimunização por Outros Antígenos
Embora o antígeno D seja o mais imunogênico e historicamente o mais importante, a aloimunização pode ocorrer contra dezenas de outros antígenos eritrocitários, como os dos sistemas Kell, Duffy, Kidd e MNS. A isoimunização por esses antígenos "irregulares" ou "atípicos" é diagnosticada da mesma forma, através do Coombs Indireto positivo na triagem pré-natal.
O manejo de uma gestação com aloimunização por antígeno não-D é semelhante ao da isoimunização Rh: titulação de anticorpos e, se os títulos forem críticos, vigilância com Doppler da ACM e TIU se necessário.
Duas particularidades importantes:
- Não existe imunoprofilaxia para esses outros antígenos. A prevenção não é possível.
- Anticorpo anti-Kell (anti-K): A doença causada pelo anti-Kell é frequentemente mais grave e ocorre em títulos mais baixos. Além de causar hemólise, o anticorpo anti-Kell também suprime a eritropoiese fetal na medula óssea, atacando as células progenitoras eritroides. Isso leva a uma anemia grave por dois mecanismos (destruição e falta de produção), sendo por isso apelidado de "Kell kills".
