Infecção do Trato Urinário (ITU) Durante a Gestação
A infecção do trato urinário (ITU) é uma das complicações infecciosas mais comuns durante a gestação, representando um risco significativo tanto para a mãe quanto para o feto. A abordagem diagnóstica e terapêutica na gestante possui particularidades importantes, sendo um tema de alta frequência e relevância nas provas de residência, incluindo o ENARE.
Introdução e Epidemiologia
As ITUs na gestação compõem um espectro de condições clínicas que variam em gravidade, desde uma condição assintomática até uma infecção sistêmica grave. É fundamental compreender as três principais apresentações:
- Bacteriúria Assintomática (BA): Definida pela presença de ≥100.000 unidades formadoras de colônias (UFC)/mL de um único uropatógeno em uma amostra de urina de jato médio, coletada adequadamente, na ausência de sinais e sintomas de ITU. A prevalência em gestantes é de 2% a 10%, similar à de mulheres não grávidas.
- Cistite Aguda: É a infecção sintomática da bexiga (ITU baixa). Caracteriza-se por sintomas urinários locais, como disúria, polaciúria e urgência miccional, sem evidência de envolvimento sistêmico.
- Pielonefrite Aguda: É a infecção do parênquima renal e do sistema coletor (ITU alta). É uma condição grave, com manifestações sistêmicas como febre, calafrios e dor no flanco. Ocorre em 1% a 2% das gestantes.
O ponto central da epidemiologia da ITU na gestação é o papel da bacteriúria assintomática. Se não tratada, a BA progride para pielonefrite aguda em até 30-40% dos casos. Este risco elevado é a principal justificativa para o rastreamento e tratamento universal da BA em todas as gestantes.
Raciocínio Clínico
Por que o rastreamento da bacteriúria assintomática é um pilar do cuidado pré-natal? Porque o tratamento da BA reduz o risco de desenvolvimento de pielonefrite em mais de 80%. A pielonefrite está associada a complicações graves, como sepse materna, parto prematuro e baixo peso ao nascer. Portanto, identificar e tratar a BA é uma das intervenções mais custo-efetivas para prevenir morbimortalidade materno-fetal.
Fisiopatologia
A gestação induz uma série de alterações fisiológicas no trato urinário que aumentam a suscetibilidade da mulher à ITU. Esses fatores podem ser divididos em hormonais, mecânicos e físico-químicos.
Alterações Hormonais
- Progesterona: É o principal hormônio implicado. A progesterona promove o relaxamento da musculatura lisa em todo o corpo, incluindo os ureteres e a bexiga. Isso resulta em:
- Hipotonia e Hipomotilidade Ureteral: A redução do peristaltismo ureteral dificulta o fluxo de urina dos rins para a bexiga.
- Dilatação Ureteral (Hidroureter Fisiológico): Os ureteres se tornam dilatados e tortuosos, aumentando o volume residual de urina no trato superior.
- Redução do Tônus Vesical: A capacidade da bexiga aumenta, mas seu esvaziamento pode ser incompleto, levando a um maior volume de urina residual pós-miccional.
Alterações Mecânicas
- Compressão Ureteral: À medida que o útero cresce, especialmente a partir do segundo trimestre, ele comprime os ureteres contra a borda pélvica. Essa compressão é tipicamente mais pronunciada à direita devido à dextrorrotação do útero e à proteção do ureter esquerdo pelo cólon sigmoide. Isso explica por que a pielonefrite é mais comum no rim direito.
A combinação da dilatação ureteral hormonal e da compressão mecânica leva a uma estase urinária significativa, que é o principal fator de risco para a ascensão e proliferação de bactérias da bexiga para os rins.
Alterações Físico-Químicas da Urina
- Glicosúria Fisiológica: O aumento da taxa de filtração glomerular e a diminuição da reabsorção tubular de glicose podem levar à presença de glicose na urina, que serve como um substrato para o crescimento bacteriano.
- Aumento do pH Urinário: A urina da gestante tende a ser mais alcalina, o que também pode favorecer a proliferação de certos uropatógenos.
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clínica varia drasticamente dependendo do espectro da doença.
Bacteriúria Assintomática (BA)
Por definição, a paciente é completamente assintomática. O diagnóstico é puramente laboratorial, feito através do rastreamento com urocultura.
Cistite Aguda
A cistite é uma infecção localizada na bexiga, portanto, os sintomas são restritos ao trato urinário inferior. A paciente não apresenta sinais sistêmicos (febre, calafrios, prostração).
- Sintomas Clássicos:
- Disúria: Dor ou ardência ao urinar.
- Polaciúria: Aumento da frequência miccional.
- Urgência Miccional: Desejo súbito e imperioso de urinar.
- Dor Suprapúbica: Desconforto ou dor na região da bexiga.
- Hematúria: Pode estar presente em alguns casos.
- Exame Físico: Geralmente normal, podendo haver dor à palpação profunda da região suprapúbica. O sinal de Giordano (punho-percussão lombar) é negativo.
Pielonefrite Aguda
A pielonefrite é uma infecção sistêmica grave. A paciente apresenta-se toxemiada, com sintomas constitucionais proeminentes.
- Sintomas Sistêmicos:
- Febre Alta: Tipicamente > 38°C.
- Calafrios: Frequentemente acompanham os picos febris.
- Náuseas e Vômitos: Muito comuns, podendo levar à desidratação.
- Mal-estar e Prostração.
- Sintomas Localizatórios:
- Dor em Flanco: Dor lombar, geralmente unilateral, que corresponde ao rim infectado.
- Exame Físico:
- Aparência: Paciente com aspecto de doente (toxemiada).
- Sinais Vitais: Taquicardia, febre e, em casos graves, hipotensão (sinais de sepse).
- Exame Abdominal: Dor à palpação do flanco e/ou quadrante superior do abdome.
- Sinal de Giordano Positivo: Dor intensa à punho-percussão da loja renal acometida. Este é um sinal clássico e muito importante.
Armadilhas do ENARE
A principal distinção a ser feita em uma questão de prova é entre cistite e pielonefrite. A presença de sintomas sistêmicos (febre, calafrios, dor em flanco, Giordano positivo) define o quadro como pielonefrite e muda completamente a conduta, que passa de ambulatorial para hospitalar. A ausência desses sinais, mesmo com sintomas urinários intensos, aponta para cistite.
Avaliação Diagnóstica
Rastreamento Universal de Bacteriúria Assintomática
O rastreamento é mandatório para todas as gestantes. A recomendação padrão é a realização de uma urocultura com antibiograma na primeira consulta de pré-natal ou entre a 12ª e a 16ª semana de gestação.
- Critério Diagnóstico para BA: Presença de ≥ 100.000 UFC/mL de um único patógeno em amostra de jato médio.
Diagnóstico de ITU Sintomática (Cistite e Pielonefrite)
Na presença de sintomas, a investigação inclui a análise de urina (EAS ou Urina tipo I) e a urocultura.
- Análise de Urina (EAS): É um teste rápido e sugestivo. Achados incluem:
- Leucocitúria (Piúria): Presença de leucócitos na urina.
- Teste de Esterase Leucocitária Positivo: Enzima presente nos leucócitos.
- Teste de Nitrito Positivo: Sugere a presença de bactérias gram-negativas (como E. coli) que convertem nitrato em nitrito. Um resultado negativo não exclui ITU.
- Bacteriúria: Visualização de bactérias na microscopia.
- Urocultura com Antibiograma: É o padrão-ouro para o diagnóstico. Confirma a infecção, identifica o patógeno e, crucialmente, guia a terapia antibiótica. A coleta deve ser realizada antes do início do tratamento empírico.
- Critério Diagnóstico para Cistite/Pielonefrite: Geralmente ≥ 100.000 UFC/mL, mas contagens menores (e.g., ≥ 10.000 UFC/mL) podem ser significativas em pacientes sintomáticas.
Tratamento e Manejo
O tratamento da ITU na gestação é sempre indicado, seja ela sintomática ou assintomática, para prevenir a progressão para pielonefrite e suas complicações.
Tratamento da Bacteriúria Assintomática e Cistite
O manejo é ambulatorial, com antibióticos orais. A escolha do antibiótico deve considerar a segurança fetal e os padrões de resistência locais. O tratamento geralmente dura de 3 a 7 dias.
| Antibiótico | Dose Comum | Duração | Observações de Segurança |
|---|---|---|---|
| Fosfomicina trometamol | 3g, dose única | 1 dia | Segura em toda a gestação. Excelente opção pela comodidade posológica. |
| Nitrofurantoína | 100mg, 6/6h | 5-7 dias | Evitar no primeiro trimestre (teórico) e obrigatório evitar no terceiro trimestre (>36 semanas). Segura no segundo trimestre. |
| Cefalexina | 500mg, 6/6h | 7 dias | Segura em toda a gestação. Boa opção de primeira linha. |
| Amoxicilina-clavulanato | 500/125mg, 8/8h | 7 dias | Segura, mas as taxas de resistência do E. coli podem ser altas. Usar se o antibiograma indicar sensibilidade. |
Armadilhas do ENARE: O Caso da Nitrofurantoína
A nitrofurantoína é um antibiótico frequentemente testado. Lembre-se da regra: deve ser evitada no final da gestação (após 36 semanas ou a termo). O motivo é o risco de desencadear anemia hemolítica no recém-nascido, especialmente naqueles com deficiência de Glicose-6-Fosfato Desidrogenase (G6PD). Embora a deficiência de G6PD não seja rastreada rotineiramente, o risco potencial contraindica seu uso nesse período. (Referência: ENARE 2020, Q67).
Antibióticos a serem EVITADOS na gestação:
- Fluoroquinolonas (ex: ciprofloxacino): Risco de artropatia e danos à cartilagem fetal.
- Sulfametoxazol-trimetoprim: Antagonista do folato (risco de defeitos do tubo neural no 1º trimestre) e risco de kernicterus no 3º trimestre.
- Tetraciclinas (ex: doxiciclina): Afetam o desenvolvimento ósseo e causam descoloração permanente dos dentes do feto.
Manejo da Pielonefrite Aguda
A pielonefrite na gestante é uma emergência médica que exige hospitalização imediata.
- Internação Hospitalar: Para monitoramento materno-fetal e administração de terapia intravenosa.
- Hidratação Venosa: Agressiva, para garantir débito urinário adequado e estabilidade hemodinâmica.
- Antibioticoterapia Intravenosa Empírica: Iniciada imediatamente após a coleta de urocultura e hemoculturas.
- Primeira Linha: Cefalosporinas de terceira geração (e.g., Ceftriaxona 1-2g IV, 24/24h) são as mais utilizadas pela eficácia e segurança.
- Alternativas: Piperacilina-tazobactam ou, em alguns protocolos, Ampicilina + Gentamicina (requer monitoramento da função renal e ototoxicidade).
- Antipiréticos e Analgésicos: Paracetamol é a escolha segura para febre e dor.
- Monitoramento: Sinais vitais maternos, débito urinário, e vitalidade fetal.
- Transição para Terapia Oral (Step-down): Após a paciente permanecer afebril por 24 a 48 horas, a terapia pode ser trocada para um antibiótico oral, guiado pelo resultado do antibiograma. A duração total do tratamento (IV + oral) é de 10 a 14 dias.
Após a resolução de qualquer episódio de ITU na gestação (BA, cistite ou pielonefrite), uma urocultura de controle (teste de cura) deve ser realizada 1 a 2 semanas após o término do tratamento.
Complicações e Prognóstico
As complicações são raras quando a BA e a cistite são tratadas adequadamente. A maioria das complicações está associada à pielonefrite aguda.
Complicações Maternas
- Sepse e Choque Séptico: A complicação mais temida, podendo ocorrer em até 10-15% dos casos de pielonefrite.
- Síndrome da Angústia Respiratória Aguda (SARA): Uma complicação pulmonar grave mediada por endotoxinas bacterianas, que causa edema pulmonar não cardiogênico.
- Anemia: Devido à hemólise induzida por endotoxinas.
- Insuficiência Renal Aguda: Menos comum, mas pode ocorrer.
Complicações Fetais e Neonatais
- Trabalho de Parto Prematuro e Parto Prematuro: A infecção e a resposta inflamatória sistêmica podem estimular contrações uterinas.
- Baixo Peso ao Nascer.
- Restrição de Crescimento Intrauterino (RCIU).
Populações Especiais
ITU Recorrente
Definida como ≥2 episódios em 6 meses ou ≥3 em um ano. Após o tratamento do episódio agudo, a paciente deve ser considerada para terapia supressiva/profilática até o final da gestação e puerpério imediato.
- Esquemas Comuns:
- Nitrofurantoína 50-100mg, via oral, uma vez ao dia (geralmente à noite).
- Cefalexina 250-500mg, via oral, uma vez ao dia.
Pacientes com Comorbidades
Gestantes com condições subjacentes como diabetes mellitus, doença renal crônica, ou traço falciforme têm um risco ainda maior de desenvolver ITU e suas complicações. Essas pacientes exigem vigilância redobrada, com rastreamento de BA repetido em cada trimestre e um limiar mais baixo para iniciar a investigação e o tratamento.
