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Herpes Genital Durante a Gestação

O herpes genital é uma das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) mais comuns e representa um desafio significativo durante a gestação devido ao risco de transmissão vertical e à grave morbimortalidade associada ao herpes neonatal. O manejo adequado, incluindo diagnóstico preciso, terapia antiviral e planejamento da via de parto, é fundamental para a saúde materna e fetal, sendo um tema de alta frequência no ENARE.

Introdução e Epidemiologia

O herpes genital é uma infecção viral crônica causada por dois tipos de Herpes Simplex Virus (HSV), ambos pertencentes à família Herpesviridae.

Agentes Causadores

  • Herpes Simplex Virus tipo 2 (HSV-2): É a causa predominante do herpes genital, classicamente associado a lesões na região anogenital. A transmissão ocorre primariamente por contato sexual.
  • Herpes Simplex Virus tipo 1 (HSV-1): Tradicionalmente associado ao herpes orolabial ("herpes labial"), o HSV-1 tem se tornado uma causa cada vez mais comum de herpes genital, especialmente em populações mais jovens, devido à prática de sexo oral-genital.

Para fins de manejo e avaliação de risco na gestação, é crucial distinguir entre os diferentes tipos de episódios infecciosos, pois o risco de transmissão neonatal varia drasticamente entre eles.

Classificação das Infecções

  1. Infecção Primária: Refere-se à primeira infecção por HSV (tipo 1 ou 2) em um indivíduo que nunca teve contato prévio com nenhum dos dois tipos virais (soronegativo para ambos, HSV-1 e HSV-2). Esta forma costuma ser a mais sintomática, com lesões extensas e manifestações sistêmicas.
  2. Primeiro Episódio Não Primário: Ocorre quando um indivíduo com anticorpos preexistentes para um tipo de HSV (ex: HSV-1) adquire pela primeira vez o outro tipo na região genital (ex: HSV-2). Os sintomas tendem a ser menos graves que na infecção primária, pois os anticorpos existentes oferecem alguma proteção cruzada.
  3. Infecção Recorrente (ou Reativação): É um novo episódio de lesões causado pela reativação do vírus latente (que reside nos gânglios nervosos sacrais) no mesmo indivíduo. Os episódios recorrentes são geralmente mais curtos, menos graves e com menos lesões do que o episódio primário.

Raciocínio Clínico

Por que essa distinção é tão importante? O risco de transmissão vertical depende da presença e da quantidade de anticorpos maternos transferidos ao feto. Em uma infecção primária próxima ao parto, a mãe ainda não produziu anticorpos IgG protetores para passar ao feto via placenta. Isso deixa o neonato completamente vulnerável ao vírus durante a passagem pelo canal de parto, resultando em um altíssimo risco de transmissão. Em uma infecção recorrente, a mãe já possui anticorpos IgG, que atravessam a placenta e conferem imunidade passiva ao feto, reduzindo drasticamente o risco de infecção neonatal, mesmo na presença de lesões.

Fisiopatologia

A principal preocupação com o herpes genital na gestação é a transmissão vertical, que pode ocorrer em três momentos: intrauterina (congênita), intraparto (perinatal) ou pós-natal.

Mecanismo de Transmissão Vertical

  • Transmissão Intraparto (Perinatal): É a via mais comum, respondendo por aproximadamente 85% dos casos de herpes neonatal. A transmissão ocorre quando o feto passa pelo canal de parto e entra em contato direto com as secreções cervicais e lesões herpéticas ativas da mãe.
  • Transmissão Intrauterina (Congênita): É rara (cerca de 5% dos casos) e ocorre por via transplacentária, geralmente associada a uma viremia materna durante uma infecção primária. Pode resultar em abortamento, restrição de crescimento intrauterino ou malformações.
  • Transmissão Pós-natal: Responde por cerca de 10% dos casos e ocorre após o nascimento, por contato do neonato com lesões herpéticas de familiares ou cuidadores (ex: lesão labial ou em outras partes do corpo).

Fatores de Risco para Transmissão Neonatal

O fator de risco mais significativo é o tipo de infecção materna no momento do parto.

Tipo de Infecção Materna no Parto Risco de Transmissão Neonatal
Infecção Primária adquirida no terceiro trimestre 30% a 50%
Primeiro episódio não primário ~20-30%
Infecção Recorrente < 1% a 3%

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode apresentar duas gestantes a termo, ambas com lesões vesiculares na genitália. A primeira refere que é a "primeira vez que isso acontece" e apresenta febre e linfadenopatia. A segunda refere "já tive isso várias vezes". A conduta (indicação de cesárea) é a mesma para ambas, mas a questão pode pedir para avaliar o risco neonatal. O risco para o bebê da primeira paciente (infecção primária) é exponencialmente maior, e o conhecimento dessa diferença é o que a banca avalia.

Apresentação Clínica e Exame Físico

Apresentação Materna

A apresentação clínica varia conforme o tipo de episódio.

  • Infecção Primária:
    • Lesões: Múltiplas vesículas dolorosas sobre uma base eritematosa que progridem para pústulas e depois para úlceras rasas e coalescentes. Podem afetar vulva, períneo, vagina, colo do útero e nádegas.
    • Sintomas Locais: Dor intensa, prurido, disúria (muitas vezes por contato da urina com as lesões), e corrimento vaginal ou uretral.
    • Sintomas Sistêmicos: Febre, cefaleia, mal-estar e mialgia são comuns e podem preceder as lesões.
    • Linfadenopatia: Linfonodos inguinais aumentados, firmes e dolorosos são característicos.
  • Infecção Recorrente:
    • Pródromos: Sintomas como formigamento, queimação ou dor na área afetada podem ocorrer horas a dias antes do surgimento das lesões.
    • Lesões: Geralmente menos numerosas, unilaterais e com resolução mais rápida (7-10 dias) do que na infecção primária (2-3 semanas).
    • Sintomas Sistêmicos: Ausentes ou leves.

Apresentação do Herpes Neonatal

A infecção no recém-nascido é uma doença grave que se manifesta tipicamente entre a primeira e a quarta semana de vida, podendo ser classificada em três formas:

  1. Doença de Pele, Olhos e Boca (SEM - Skin, Eye, and Mouth): Caracterizada por lesões vesiculares na pele, conjuntivite, ceratite e úlceras na boca. Embora tenha o melhor prognóstico das três formas, pode progredir para as formas mais graves se não for tratada.
  2. Doença do Sistema Nervoso Central (SNC): Envolve encefalite, manifestando-se com letargia, irritabilidade, recusa alimentar, instabilidade térmica e convulsões. Deixa sequelas neurológicas graves em muitos sobreviventes, mesmo com tratamento.
  3. Doença Disseminada: É a forma mais grave, com envolvimento de múltiplos órgãos (fígado, pulmões, glândulas adrenais, SNC). Apresenta-se como um quadro de sepse neonatal, com insuficiência respiratória, disfunção hepática (hepatite fulminante), coagulação intravascular disseminada (CIVD) e choque. A mortalidade é altíssima, mesmo com terapia antiviral.

Avaliação Diagnóstica

A suspeita clínica é fundamental, mas a confirmação laboratorial é essencial para o manejo adequado.

  • Reação em Cadeia da Polimerase (PCR): É o método padrão-ouro para o diagnóstico. Um swab da base de uma lesão ativa é coletado para detectar o DNA viral. A PCR é mais sensível que a cultura viral e pode diferenciar entre HSV-1 e HSV-2.
  • Cultura Viral: Método tradicional, mas com sensibilidade menor que a PCR, especialmente em lesões mais antigas ou em episódios recorrentes.
  • Testes Sorológicos (IgG tipo-específicos): Detectam anticorpos IgG contra glicoproteínas específicas do HSV-1 ou HSV-2. Não são úteis para diagnosticar um episódio agudo, mas são fundamentais para:
    • Identificar gestantes soronegativas para HSV-2 cujo parceiro é soropositivo, permitindo aconselhamento para prevenção.
    • Diferenciar uma infecção primária (IgG negativo no início do quadro, com soroconversão posterior) de uma recorrente (IgG positivo desde o início).
    • Nota: A sorologia para IgM tem baixo valor clínico devido à baixa especificidade e reatividade cruzada, não sendo recomendada rotineiramente.

Tratamento e Manejo

O tratamento do herpes genital na gestação visa aliviar os sintomas maternos, diminuir a duração do episódio e, crucialmente, reduzir o risco de transmissão neonatal. Os antivirais utilizados (aciclovir, valaciclovir) são considerados seguros na gravidez (Categoria B pela FDA).

Terapia Episódica (Tratamento de Surtos)

Indicada para tratar um episódio agudo (primário ou recorrente) durante a gestação.

  • Infecção Primária: O tratamento deve ser iniciado o mais rápido possível.
    • Aciclovir 400 mg, via oral, 3 vezes ao dia, por 7 a 10 dias.
    • Valaciclovir 1 g, via oral, 2 vezes ao dia, por 7 a 10 dias.
  • Infecção Recorrente:
    • Aciclovir 400 mg, via oral, 3 vezes ao dia, por 5 dias.
    • Valaciclovir 500 mg, via oral, 2 vezes ao dia, por 3 dias.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2023, Q66)

O conhecimento do esquema terapêutico para uma infecção herpética primária na gestação é mandatório. A dose e a duração corretas são frequentemente cobradas. Memorize: Aciclovir 400 mg, 3 vezes ao dia, por 7 dias (ou 7-10 dias).

Terapia Supressiva Profilática

O objetivo da terapia supressiva é reduzir a chance de uma reativação (sintomática ou assintomática) perto do termo, diminuindo assim a necessidade de uma cesariana.

  • Indicação: Recomendada para todas as gestantes com histórico de herpes genital (mesmo que não tenham tido surtos durante a gestação atual).
  • Quando iniciar: A partir de 36 semanas de gestação e mantida até o parto.
  • Esquemas:
    • Aciclovir 400 mg, via oral, 2 a 3 vezes ao dia.
    • Valaciclovir 500 mg, via oral, 1 vez ao dia.

Complicações e Prognóstico

Complicação Principal: Herpes Neonatal

Como já detalhado, o herpes neonatal é a complicação mais temida, com alta morbimortalidade. O prognóstico depende da forma da doença, sendo pior na forma disseminada e na encefalite por SNC.

Manejo do Parto (Via de Parto)

A decisão sobre a via de parto é uma das condutas mais importantes no manejo do herpes genital na gestação e visa prevenir a transmissão intraparto.

  • Cesariana Eletiva é RECOMENDADA se:
    1. A gestante apresentar lesões genitais ativas (vesículas, pústulas, úlceras) no momento do início do trabalho de parto ou na ruptura das membranas.
    2. A gestante apresentar sintomas prodrômicos (dor, queimação, formigamento na região genital) no momento do início do trabalho de parto, mesmo sem lesões visíveis.
  • Parto Vaginal é PERMITIDO se:
    • A gestante não tiver lesões genitais ativas nem sintomas prodrômicos no momento do trabalho de parto. O histórico de herpes genital, por si só, não é uma indicação de cesariana.

Raciocínio Clínico

A cesariana, neste contexto, funciona como uma barreira mecânica, evitando o contato direto do neonato com o vírus no canal de parto. A recomendação se mantém mesmo que as membranas já estejam rotas, embora a eficácia protetora possa diminuir com o tempo de bolsa rota. A terapia supressiva a partir de 36 semanas aumenta a chance de a paciente chegar ao termo sem lesões, viabilizando o parto vaginal.

Populações Especiais

Gestante com Parceiro com Herpes Genital

Um cenário comum e de alto risco é o de uma gestante soronegativa para HSV cujo parceiro tem histórico de herpes genital. Essa mulher está em risco de adquirir uma infecção primária durante a gestação, o que carrega o maior risco de transmissão neonatal.

Aconselhamento e Manejo:
  1. Testagem Sorológica: Realizar sorologia tipo-específica (IgG para HSV-1 e HSV-2) na gestante para confirmar sua suscetibilidade.
  2. Aconselhamento ao Casal:
    • Explicar os riscos da transmissão para o neonato.
    • Recomendar abstinência sexual (genital e oral-genital) durante o terceiro trimestre de gestação.
    • Se a abstinência não for praticada, o uso consistente e correto de preservativos é mandatório durante toda a gestação para reduzir o risco de transmissão.
    • O parceiro deve ser orientado a evitar o contato sexual ao apresentar lesões ativas ou sintomas prodrômicos.
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