Herpes Genital
O herpes genital é uma infecção sexualmente transmissível (IST) de alta prevalência, causada pelo vírus herpes simplex (HSV). Caracteriza-se por ser uma infecção crônica, com períodos de latência e reativações. O seu manejo adequado é fundamental não apenas para o alívio dos sintomas do paciente, mas também para a prevenção da transmissão e de complicações graves, como o herpes neonatal.
Introdução & Epidemiologia
Definição e Etiologia
O herpes genital é uma infecção viral crônica e incurável, que permanece por toda a vida do indivíduo. É causado por dois tipos de vírus da família Herpesviridae: o Vírus Herpes Simplex tipo 1 (HSV-1) e o Vírus Herpes Simplex tipo 2 (HSV-2).
- HSV-2: É a causa clássica e mais comum de herpes genital, sendo responsável pela maioria dos casos de infecções recorrentes na região anogenital.
- HSV-1: Tradicionalmente associado a infecções orolabiais ("herpes labial"), o HSV-1 tem se tornado uma causa cada vez mais frequente de primeiro episódio de herpes genital, especialmente em populações mais jovens, devido à prática de sexo oral-genital.
Epidemiologia e Transmissão
A prevalência global do herpes genital é extremamente alta, tornando-a uma das ISTs mais comuns no mundo. A transmissão ocorre por contato direto com as lesões, superfícies mucosas, secreções genitais ou orais de uma pessoa infectada. Um ponto crucial na epidemiologia do HSV é a disseminação viral assintomática (asymptomatic viral shedding), onde o vírus é liberado pela pele ou mucosa na ausência de lesões visíveis, sendo responsável por uma parcela significativa das transmissões.
Classificação das Infecções
É fundamental para o raciocínio clínico e para as provas de residência diferenciar os tipos de episódios infecciosos:
- Infecção Primária: Ocorre quando um indivíduo sem anticorpos prévios para HSV-1 ou HSV-2 é infectado pela primeira vez. Geralmente, é a manifestação mais severa da doença, com lesões extensas, dor intensa e sintomas sistêmicos (febre, mal-estar, mialgia).
- Primeiro Episódio Não Primário: É o primeiro surto de herpes genital em um paciente que já possui anticorpos para o outro tipo de HSV. Por exemplo, um paciente com histórico de herpes labial (HSV-1) que apresenta seu primeiro episódio de herpes genital por HSV-2. A imunidade preexistente contra o HSV-1 confere alguma proteção cruzada, tornando os sintomas geralmente mais brandos que na infecção primária.
- Infecção Recorrente: Resulta da reativação do vírus latente no gânglio sensorial. Os surtos são tipicamente mais curtos, menos severos e localizados, sem os sintomas sistêmicos da infecção primária.
Armadilhas do ENARE
Questões podem testar a diferença entre infecção primária e primeiro episódio não primário. Se um paciente com "feridas na boca desde a infância" apresenta um primeiro quadro de lesões genitais, o quadro clínico tende a ser mais brando. A presença de anticorpos IgG para HSV-1 com lesões genitais por HSV-2 confirmadas por PCR caracteriza um primeiro episódio não primário.
Fisiopatologia
Entrada Viral e Replicação Primária
O HSV penetra no organismo através de microabrasões na pele ou nas membranas mucosas durante o contato sexual. Uma vez dentro, o vírus infecta as células epiteliais da epiderme e da derme. Inicia-se um ciclo de replicação viral lítica, que destrói as células hospedeiras, levando à formação das vesículas características. Este processo inflamatório agudo é responsável pela dor, eritema e edema locais.
Estabelecimento da Latência
Após a infecção primária na mucosa ou pele, o vírus viaja de forma retrógrada através dos axônios dos nervos sensoriais periféricos até os corpos celulares neuronais nos gânglios da raiz dorsal, onde estabelece uma infecção latente. Para o herpes genital, os gânglios mais comumente envolvidos são os gânglios sacrais (S2-S5). Durante a latência, o DNA viral persiste como um episoma (uma molécula de DNA circular) no núcleo do neurônio, com expressão gênica viral mínima, escapando assim da vigilância do sistema imunológico.
Reativação Viral
Diversos gatilhos podem induzir a reativação do vírus latente, incluindo:
- Estresse físico ou emocional
- Imunossupressão (ex: HIV, quimioterapia, uso de corticoides)
- Febre ou outras doenças
- Trauma local na área inervada pelo gânglio
- Exposição à luz ultravioleta
- Alterações hormonais (ex: menstruação)
Após a reativação, o vírus viaja de forma anterógrada pelo mesmo axônio sensorial de volta à superfície da pele ou mucosa, causando as lesões da infecção recorrente.
Apresentação Clínica e Exame Físico
Infecção Primária
A primo-infecção sintomática é a forma mais exuberante da doença. O período de incubação varia de 2 a 12 dias.
- Pródromo: Muitos pacientes relatam sintomas prodrômicos 1 a 2 dias antes das lesões, como dor, queimação, prurido ou formigamento na área genital.
- Lesões Cutâneas: A apresentação clássica consiste em múltiplas vesículas agrupadas sobre uma base eritematosa. Essas vesículas progridem para pústulas e, em seguida, rompem-se para formar úlceras rasas, dolorosas e de fundo limpo. As úlceras coalescem, formam crostas e cicatrizam em 2 a 4 semanas, geralmente sem deixar cicatrizes.
- Sintomas Sistêmicos: São comuns e marcantes, incluindo febre, cefaleia, mal-estar e mialgia.
- Sintomas Locais: Dor genital intensa é a regra. Disúria pode ocorrer, especialmente em mulheres, devido ao contato da urina com as lesões vulvares. Linfadenopatia inguinal bilateral, dolorosa e móvel é um achado característico.
Infecção Recorrente
Os episódios recorrentes são significativamente mais brandos.
- Pródromo: Frequentemente presente e serve como um aviso para o paciente.
- Lesões Cutâneas: Menos numerosas, mais localizadas e com duração mais curta (geralmente cicatrizam em 5 a 10 dias).
- Sintomas Sistêmicos: Ausentes.
- Sintomas Locais: Desconforto localizado, com dor menos intensa. A linfadenopatia, se presente, é geralmente unilateral e discreta.
Raciocínio Clínico
Ao avaliar um paciente com úlcera genital, a presença de sintomas sistêmicos (febre, mialgia) e linfonodos inguinais bilaterais e dolorosos aponta fortemente para uma primo-infecção por herpes genital. Em contraste, uma úlcera única e indolor com linfadenopatia indolor sugere sífilis primária (cancro duro).
Diagnóstico Laboratorial
Embora o diagnóstico possa ser suspeitado clinicamente, a confirmação laboratorial é recomendada, especialmente no primeiro episódio, para confirmar o diagnóstico, identificar o tipo de HSV (implicações prognósticas) e orientar o aconselhamento.
- PCR (Reação em Cadeia da Polimerase): É o padrão-ouro para o diagnóstico. A amostra é coletada da base de uma vesícula rompida com um swab. A PCR é altamente sensível e específica, detecta o DNA viral e permite a tipagem (HSV-1 vs. HSV-2).
- Cultura Viral: Foi o método tradicional, mas é menos sensível que a PCR, especialmente em lesões que já iniciaram a cicatrização. A sensibilidade diminui drasticamente após 72 horas do início das lesões.
- Sorologia: Detecta anticorpos contra o HSV. Utiliza-se testes tipo-específicos baseados na glicoproteína G (gG-1 e gG-2).
- Utilidade: Diagnóstico de infecção prévia em pacientes assintomáticos, avaliação de parceiros de pessoas com herpes genital, ou em pacientes com sintomas atípicos ou recorrentes sem lesões ativas para coleta.
- Limitação Crucial: A sorologia NÃO é útil para diagnosticar um episódio agudo, pois a soroconversão (produção de anticorpos IgG) pode levar de 3 a 6 semanas. A pesquisa de IgM não é recomendada devido à baixa especificidade.
Tratamento e Manejo
O tratamento do herpes genital é feito com antivirais. Não há cura, mas a terapia visa acelerar a cicatrização, reduzir a dor, diminuir a disseminação viral e prevenir recorrências.
Terapia Episódica
Usada para tratar surtos agudos. O tratamento deve ser iniciado o mais precocemente possível, idealmente durante o pródromo ou nas primeiras 24-48 horas do aparecimento das lesões.
Terapia Supressiva
Consiste no uso diário de antivirais para reduzir a frequência e a gravidade das recorrências. É indicada para pacientes com recorrências frequentes (ex: ≥ 6 episódios/ano), com impacto psicossocial significativo, ou para reduzir o risco de transmissão a um parceiro soronegativo.
| Regime Terapêutico | Aciclovir | Valaciclovir | Famciclovir |
|---|---|---|---|
| Primeiro Episódio Genital | 400 mg, 3x/dia, por 7-10 dias ou 200 mg, 5x/dia, por 7-10 dias |
1 g, 2x/dia, por 7-10 dias | 250 mg, 3x/dia, por 7-10 dias |
| Terapia Episódica (Recorrência) | 400 mg, 3x/dia, por 5 dias ou 800 mg, 2x/dia, por 5 dias |
500 mg, 2x/dia, por 3 dias ou 1 g, 1x/dia, por 5 dias |
1 g, 2x/dia, por 1 dia ou 125 mg, 2x/dia, por 5 dias |
| Terapia Supressiva Diária | 400 mg, 2x/dia | 500 mg, 1x/dia ou 1 g, 1x/dia |
250 mg, 2x/dia |
Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2024 - Q69)
O conhecimento do tratamento da primo-infecção herpética genital é mandatório. A questão exigia o reconhecimento do regime correto: Aciclovir 400 mg, via oral, três vezes ao dia, por 7 a 14 dias. A duração pode ser estendida se a cicatrização não estiver completa.
Complicações e Prognóstico
- Meningite Asséptica: Uma complicação neurológica relativamente comum da infecção primária por HSV-2. Cursa com cefaleia, febre, fotofobia e rigidez de nuca. A análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) mostra pleocitose linfocítica. Geralmente é autolimitada.
- Retenção Urinária Aguda (Síndrome de Elsberg): Pode ocorrer devido a uma radiculomielite sacral, causando disfunção autonômica da bexiga.
- Herpes Neonatal: É a complicação mais temida e devastadora. A transmissão ocorre mais frequentemente durante o parto vaginal em uma mãe com lesões ativas. O risco é máximo (>50%) se a mãe adquire a infecção primária no terceiro trimestre. A doença no recém-nascido pode ser disseminada, envolver o sistema nervoso central ou ser limitada à pele, olhos e boca (doença SEM). A mortalidade e a morbidade neurológica são altíssimas.
- Impacto Psicossocial: O diagnóstico de herpes genital pode causar angústia, ansiedade, depressão e estigma significativos, afetando a qualidade de vida e os relacionamentos sexuais.
Populações Especiais
Gestantes
O manejo do herpes genital na gestação visa primordialmente a prevenção do herpes neonatal.
- Rastreio: Deve-se questionar todas as gestantes sobre histórico de herpes genital (pessoal e do parceiro).
- Terapia Supressiva Profilática: Para gestantes com histórico de herpes genital recorrente, recomenda-se iniciar a terapia supressiva com aciclovir ou valaciclovir a partir da 36ª semana de gestação até o parto. Esta medida reduz significativamente a chance de um surto no momento do parto.
- Via de Parto: A cesariana está indicada se a gestante apresentar lesões herpéticas ativas (vesículas, úlceras) ou sintomas prodrômicos no momento do início do trabalho de parto ou da ruptura das membranas. Na ausência de lesões, o parto vaginal é seguro.
Pacientes Imunocomprometidos (ex: HIV)
Nesses pacientes, as manifestações do herpes genital podem ser mais graves, frequentes e atípicas.
- Apresentação Clínica: As lesões podem ser maiores, mais profundas, crônicas (persistindo por semanas a meses) e não cicatrizar adequadamente. A disseminação visceral é rara, mas pode ocorrer.
- Tratamento: Geralmente requerem doses mais altas e/ou cursos mais longos de terapia antiviral. A terapia supressiva diária é frequentemente necessária.
- Resistência ao Aciclovir: Embora rara, pode ocorrer em pacientes gravemente imunocomprometidos. Nesses casos, o tratamento de escolha é o Foscarnet intravenoso.
