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Hemorragia Pós-Parto (HPP)

A Hemorragia Pós-Parto (HPP) é uma das emergências obstétricas mais temidas e uma das principais causas de morbimortalidade materna em todo o mundo, incluindo o Brasil. O seu manejo rápido, sistemático e baseado em evidências é uma competência essencial para todo médico e um tema de altíssima frequência nas provas de residência, como o ENARE. A abordagem da HPP é um teste de raciocínio clínico, trabalho em equipe e conhecimento de um algoritmo de tratamento escalonado.

Introdução e Epidemiologia

A HPP é definida classicamente pela perda sanguínea estimada, embora a avaliação clínica do estado hemodinâmico da paciente seja igualmente crucial. A definição varia conforme o momento da ocorrência e o tipo de parto.

  • Hemorragia Pós-Parto Primária (ou Precoce): É a forma mais comum e ocorre nas primeiras 24 horas após o parto. É definida como uma perda sanguínea de:
    • > 500 mL após um parto vaginal.
    • > 1000 mL após uma cesariana.
    Uma definição mais moderna e funcional considera HPP qualquer perda sanguínea pós-parto que cause instabilidade hemodinâmica ou que necessite de transfusão de hemocomponentes.
  • Hemorragia Pós-Parto Secundária (ou Tardia): Ocorre entre 24 horas e 12 semanas após o parto. Geralmente está associada a causas como retenção de produtos da concepção, infecção (endometrite) ou subinvolução do sítio placentário.

Globalmente, a HPP complica cerca de 1 a 5% de todos os partos e é responsável por aproximadamente 25% de todas as mortes maternas, sendo a principal causa de mortalidade materna direta. A grande maioria dessas mortes é evitável com reconhecimento precoce e manejo adequado.

Os "4 T's" da Hemorragia Pós-Parto

Para facilitar a memorização e a abordagem sistemática das causas da HPP, utiliza-se o mnemônico dos "4 T's". A frequência de cada causa é a chave para a abordagem inicial.

Causa (O Mnemônico "4 T's") Frequência Aproximada Mecanismo Principal
Tônus (Atonia Uterina) 70-80% Falha do útero em contrair-se adequadamente após a dequitação.
Trauma (Lacerações do Trato Genital) ~20% Lesões no colo do útero, vagina, períneo ou ruptura uterina.
Tecido (Retenção de Tecido Placentário) ~10% Fragmentos de placenta ou membranas que impedem a contração uterina completa.
Trombina (Distúrbios de Coagulação) ~1% Coagulopatias pré-existentes ou adquiridas (ex: HELLP, CIVD).

Raciocínio Clínico

A ordem dos "4 T's" não é aleatória; ela reflete a frequência das causas. Ao se deparar com uma HPP, o primeiro pensamento deve ser: "Isso é atonia uterina até que se prove o contrário". A primeira manobra, portanto, é palpar o fundo uterino para avaliar seu tônus. Se o útero estiver firme e contraído, mas o sangramento persistir, o raciocínio deve imediatamente mudar para a segunda causa mais comum: trauma.

Fisiopatologia

A hemostasia no leito placentário após o parto depende primariamente da contração do miométrio. As fibras musculares uterinas se entrelaçam ao redor dos vasos sanguíneos que irrigavam a placenta. Quando o miométrio contrai, ele comprime mecanicamente esses vasos, um mecanismo conhecido como "ligaduras vivas de Pinard". A falha em qualquer etapa desse processo ou a presença de outros fatores leva à HPP.

Tônus: Atonia Uterina

É a causa mais comum. A falha na contração miometrial pode ser causada por:

  • Sobredistensão uterina: Gestação múltipla, polidrâmnio, macrossomia fetal. O músculo uterino, excessivamente estirado, tem dificuldade em contrair-se eficazmente.
  • Fadiga muscular uterina: Trabalho de parto prolongado ou muito rápido (parto precipitado), ou trabalho de parto induzido com ocitocina por longos períodos.
  • Infecção intra-amniótica (Corioamnionite): As toxinas bacterianas podem interferir na capacidade de contração do miométrio.
  • Uso de medicamentos: Anestésicos halogenados em altas concentrações, sulfato de magnésio e alguns tocolíticos (ex: nifedipina) podem relaxar o útero.

Trauma: Lacerações do Trato Genital

O sangramento por trauma ocorre apesar de um útero bem contraído. As causas incluem:

  • Lacerações perineais, vaginais ou cervicais: Comuns em partos instrumentais (fórceps, vácuo-extrator), partos precipitados ou em episiotomias que se estendem. Lacerações cervicais devem ser suspeitadas quando há sangramento vermelho vivo com útero contraído.
  • Hematomas: Podem se formar no períneo, vagina ou ligamento largo. Um hematoma em expansão pode conter um grande volume de sangue oculto e causar dor intensa e desproporcional.
  • Ruptura Uterina: Uma emergência catastrófica, mais comum em mulheres com cicatriz uterina prévia (cesárea anterior). Causa dor abdominal súbita e intensa, perda da apresentação fetal e instabilidade hemodinâmica materna e fetal.

Tecido: Retenção de Produtos da Concepção

A presença de qualquer tecido remanescente na cavidade uterina impede a contração global e uniforme do útero.

  • Retenção de cotilédone placentário: Ocorre quando um ou mais lóbulos da placenta não são expelidos. É fundamental inspecionar a placenta após a dequitação para garantir que está completa.
  • Placenta Acretismo: Uma aderência anormal da placenta à parede uterina. A tentativa de remoção manual pode causar sangramento maciço.
  • Retenção de membranas ou coágulos: Grandes coágulos podem agir como um corpo estranho, impedindo a contração eficaz.

Trombina: Coagulopatias

São a causa menos comum, mas podem ser a causa primária ou uma consequência da HPP maciça (coagulopatia de consumo).

  • Pré-existentes: Doença de von Willebrand, hemofilia (portadoras), uso de anticoagulantes.
  • Adquiridas na gestação: Síndrome HELLP, pré-eclâmpsia grave, embolia de líquido amniótico, sepse e descolamento prematuro de placenta (DPP) são causas clássicas de Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD).

Apresentação Clínica e Exame Físico

O diagnóstico da HPP é clínico. A suspeita surge com sangramento vaginal excessivo, mas os sinais de hipovolemia são cruciais para avaliar a gravidade.

Sinais de Hipovolemia:

  • Taquicardia: Geralmente o primeiro sinal. Frequência cardíaca > 100 bpm.
  • Hipotensão: É um sinal tardio. A mulher jovem e saudável pode manter a pressão arterial normal até perder 25-30% de sua volemia.
  • Palidez, sudorese fria, extremidades frias.
  • Alteração do estado mental: Confusão, agitação ou letargia são sinais de hipoperfusão cerebral e indicam choque grave.
  • Oligúria/Anúria.

Exame Físico Direcionado:

A abordagem deve seguir a lógica dos "4 T's":

  1. Avaliar o Tônus: A primeira manobra é a palpação abdominal do fundo uterino.
    • Útero Firme e Contraído ("Globo de Segurança de Pinard"): Localizado na altura da cicatriz umbilical ou abaixo, de consistência endurecida. Se o útero está assim, a atonia é improvável.
    • Útero Amolecido ("Boggy Uterus"): Difícil de delimitar, consistência flácida. Este é o sinal clássico de atonia uterina.
  2. Procurar por Trauma: Se o útero está contraído, a próxima etapa é a inspeção sistemática do trato genital.
    • Realizar um exame especular cuidadoso para visualizar as paredes vaginais e o colo do útero em toda a sua circunferência. O uso de afastadores ou pinças de anel pode ser necessário para uma visualização adequada.
    • Inspecionar o períneo em busca de lacerações ou hematomas em expansão.
  3. Verificar por Tecido Retido: Se a causa ainda não foi identificada ou se a placenta parece incompleta, a exploração manual da cavidade uterina está indicada. Isso requer analgesia adequada (pode ser feito sob raquianestesia ou anestesia geral). O médico introduz a mão na cavidade uterina para remover manualmente quaisquer fragmentos placentários ou coágulos.

Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2023

Cenário Clássico: Uma paciente apresenta sangramento ativo e vermelho vivo imediatamente após um parto vaginal rápido (precipitado). Ao exame físico, o fundo uterino está contraído e firme ("globo de segurança de Pinard presente"). Qual a principal hipótese diagnóstica? A resposta é laceração de trajeto de parto. O raciocínio é fundamental: se o tônus está adequado (útero contraído), a causa mais provável do sangramento é o trauma. A falha em inspecionar o canal de parto é um erro comum e perigoso.

Avaliação Diagnóstica

A HPP é uma emergência; o tratamento não deve ser adiado para aguardar resultados de exames. A avaliação laboratorial e de imagem é realizada simultaneamente ao manejo inicial.

  • Diagnóstico Clínico: Baseado na estimativa da perda sanguínea (visual, pesagem de compressas) e, mais importante, nos sinais vitais e no estado hemodinâmico da paciente.
  • Avaliação Laboratorial:
    • Tipagem Sanguínea e Fator Rh, Prova Cruzada: Essencial e urgente. Solicitar reserva de hemocomponentes (concentrado de hemácias, plasma fresco congelado, plaquetas).
    • Hemograma Completo: Fornece o hematócrito e a hemoglobina basais, mas lembre-se que estes valores podem não refletir a perda aguda de sangue inicialmente.
    • Coagulograma: Tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA), fibrinogênio. Níveis de fibrinogênio < 200 mg/dL em uma paciente obstétrica sangrando são um forte indicador de HPP grave e necessidade de reposição.
  • Ultrassonografia à Beira do Leito (POCUS): Pode ser útil para identificar rapidamente a presença de tecido retido na cavidade uterina ou hematomas pélvicos.

Tratamento e Manejo

O manejo da HPP é um protocolo sequencial e escalonado. O sucesso depende de uma abordagem rápida, organizada e multidisciplinar.

Medidas Iniciais (Simultâneas):

  1. Pedir Ajuda: Ninguém maneja uma HPP sozinho. Chame obstetras experientes, anestesista, equipe de enfermagem, e notifique o banco de sangue imediatamente.
  2. ABCs da Reanimação:
    • A (Airway): Garantir via aérea pérvia.
    • B (Breathing): Administrar oxigênio (10-15 L/min) com máscara não reinalante.
    • C (Circulation): Estabelecer dois acessos venosos calibrosos (jelco 14G ou 16G). Iniciar infusão rápida de cristaloides aquecidos (Ringer Lactato ou Soro Fisiológico 0.9%). Coletar amostras de sangue para os exames já mencionados.
  3. Monitorização Contínua: Pressão arterial, frequência cardíaca, oximetria de pulso e débito urinário (sondagem vesical de demora).
  4. Esvaziamento Vesical: Uma bexiga cheia pode impedir a contração uterina eficaz.
  5. Massagem Uterina: Realizar massagem fúndica externa bimanual. Uma mão massageia o fundo do útero em movimentos circulares sobre o abdome, enquanto a outra mão oferece suporte suprapúbico para evitar a inversão uterina.

Manejo Farmacológico (Uterotônicos)

Se a atonia uterina é a causa, os uterotônicos são a base do tratamento. Devem ser administrados em sequência.

Medicamento Dose e Via Mecanismo de Ação Contraindicações / Precauções
Ocitocina (1ª Linha) 20-40 UI em 1000 mL de cristaloide, IV, em infusão rápida. Aumenta a frequência e a força das contrações miometriais. Hipersensibilidade. Doses altas em bolus podem causar hipotensão severa.
Metilergometrina (Ergotrate®) 0.2 mg, IM. Pode ser repetido a cada 2-4 horas. Derivado do ergot; causa contração tetânica do miométrio. Hipertensão Arterial, Pré-eclâmpsia, Doença Cardiovascular.
Misoprostol 600-1000 mcg, via retal ou sublingual. Análogo da Prostaglandina E1. Hipersensibilidade. Causa febre e calafrios com frequência.
Carboprost Trometamina 0.25 mg, IM ou intramiometrial. Pode ser repetido a cada 15-90 min (máx. 8 doses). Análogo da Prostaglandina F2α. Asma (pode causar broncoespasmo severo).
Ácido Tranexâmico 1g, IV, infundido lentamente (em 10 min). Repetir após 30 min se sangramento persistir. Antifibrinolítico; estabiliza o coágulo. Doença tromboembólica ativa.

Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2020

Uma questão pode apresentar um caso de HPP por atonia uterina e perguntar qual a primeira medicação a ser administrada após as medidas iniciais (massagem, acesso venoso). A resposta correta e inequívoca é a Ocitocina. É o uterotônico de primeira linha, com o melhor perfil de segurança e eficácia inicial.

Intervenções Não Farmacológicas e Cirúrgicas

Se o sangramento persistir apesar do manejo clínico otimizado, a abordagem deve ser escalonada para procedimentos invasivos.

  • Compressão Uterina Bimanual: O médico introduz uma mão (em punho) na vagina, posicionando-a no fórnice anterior, enquanto a outra mão comprime o fundo uterino externamente contra a mão interna. É uma medida temporária enquanto se prepara para o próximo passo.
  • Tamponamento com Balão Intrauterino (Balão de Bakri): Um balão é inserido na cavidade uterina e inflado com soro fisiológico (300-500 mL). A pressão exercida pelo balão contra as paredes uterinas comprime os vasos sangrantes e estimula a contração. Possui alta taxa de sucesso.
  • Embolização da Artéria Uterina: Realizada pela radiologia intervencionista. É um procedimento minimamente invasivo e eficaz, mas requer paciente hemodinamicamente estável e disponibilidade do serviço.
  • Laparotomia Exploradora: Indicada quando as medidas menos invasivas falham.
    • Suturas de Compressão Uterina: A técnica de B-Lynch é a mais conhecida. Uma sutura absorvível é passada ao redor do útero, como "alças de suspensório", para comprimi-lo mecanicamente.
    • Ligaduras Vasculares: Ligadura escalonada das artérias uterinas e, se necessário, das artérias ováricas (ou infundíbulo-pélvicas).
    • Histerectomia: É o tratamento definitivo e de último recurso para salvar a vida da paciente. A decisão deve ser tomada antes que a paciente desenvolva coagulopatia de consumo irreversível e choque profundo.

Complicações e Prognóstico

O prognóstico depende inteiramente da rapidez do diagnóstico e da eficácia do tratamento. Atrasos podem levar a complicações graves e morte.

Complicações de Curto Prazo:

  • Choque Hipovolêmico: A consequência imediata, levando à falência de múltiplos órgãos.
  • Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD): A perda maciça de sangue e a transfusão de múltiplos hemocomponentes podem levar a uma coagulopatia de consumo.
  • Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA/SARA): Resultante da inflamação sistêmica e da transfusão maciça.
  • Necrose Tubular Aguda (NTA): Insuficiência renal aguda devido à hipoperfusão renal.

Complicações de Longo Prazo:

  • Anemia: Quase universal após uma HPP significativa, requerendo reposição de ferro ou, em casos graves, transfusões.
  • Síndrome de Sheehan: Necrose da hipófise anterior causada por isquemia devido à hipotensão severa. Clinicamente, manifesta-se semanas ou meses depois com agalactia (falha na lactação), amenorreia, hipotireoidismo e insuficiência adrenal secundária.
  • Trauma Psicológico: Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é comum em mulheres que sobrevivem a uma HPP grave.

Populações Especiais e Prevenção

A identificação de fatores de risco é fundamental para a prevenção e preparação.

Fatores de Risco para HPP:

  • Relacionados à Sobredistensão: Gestação múltipla, polidrâmnio, macrossomia.
  • Relacionados ao Parto: Trabalho de parto prolongado, parto precipitado, parto instrumental.
  • Relacionados à Placenta: Placenta prévia, acretismo placentário, descolamento prematuro de placenta.
  • História Prévia: HPP em gestação anterior, grande multiparidade (≥ 5 partos), cesárea anterior.

Prevenção: Manejo Ativo do Terceiro Estágio do Parto (AMTSL)

A estratégia mais eficaz para prevenir a HPP por atonia uterina é o manejo ativo do terceiro período do parto, recomendado pela OMS e FEBRASGO. Consiste em três componentes:

  1. Administração de Uterotônico: 10 UI de ocitocina IM ou IV lento logo após o desprendimento do ombro anterior do feto.
  2. Tração Controlada do Cordão: Aplicar tração suave e contínua no cordão umbilical enquanto se aplica contra-tração suprapúbica no útero para prevenir a inversão.
  3. Massagem Uterina: Realizada após a expulsão da placenta para garantir a contração uterina.

O manejo ativo pode reduzir a incidência de HPP em mais de 60%.

Armadilhas do ENARE

Questões sobre HPP frequentemente testam a capacidade do candidato de escalar o tratamento. Se uma paciente com atonia uterina já recebeu ocitocina e massagem, e o sangramento continua, a questão perguntará o próximo passo. A resposta correta será administrar um uterotônico de segunda linha, como a metilergometrina (se não houver contraindicação) ou o misoprostol. Se o manejo farmacológico máximo falhar, o próximo passo será uma intervenção não cirúrgica (balão de Bakri) ou cirúrgica (sutura de B-Lynch, histerectomia). Conhecer essa sequência é vital.

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