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Gestação Gemelar

A gestação gemelar, ou múltipla, representa um dos cenários de maior complexidade na obstetrícia moderna. Embora fascinante, está associada a um aumento significativo de riscos tanto para a mãe quanto para os fetos. O conhecimento aprofundado de sua fisiopatologia, diagnóstico e manejo é fundamental para a prática clínica e um tema de alta incidência nas provas de residência, como o ENARE.

Introdução e Epidemiologia

Define-se gestação múltipla como a presença simultânea de dois ou mais fetos no útero. A forma mais comum é a gestação gemelar (dois fetos).

Incidência e Prevalência

A incidência de gemelaridade espontânea varia globalmente, sendo mais alta em populações de ascendência africana (cerca de 1 para 80 nascimentos), intermediária em caucasianos e mais baixa em populações asiáticas. No entanto, nas últimas décadas, a prevalência de gestações múltiplas aumentou drasticamente em todo o mundo. O principal fator para este aumento é o uso de Tecnologias de Reprodução Assistida (TRA).

  • Indução da Ovulação: Medicamentos como o citrato de clomifeno e gonadotrofinas estimulam o desenvolvimento de múltiplos folículos ovarianos, aumentando a chance de liberação e fertilização de mais de um óvulo.
  • Fertilização in vitro (FIV): A prática de transferir múltiplos embriões para o útero para aumentar as chances de implantação de pelo menos um deles é a principal causa do aumento de gêmeos dizigóticos e de gestações de alta ordem (trigêmeos ou mais).

Fatores de Risco para Gemelaridade Dizigótica

A gemelaridade monozigótica é considerada um evento aleatório e sua incidência é relativamente constante em todo o mundo (cerca de 1 para 250 nascimentos). Já a gemelaridade dizigótica ("fraterna") é influenciada por vários fatores:

  • Idade Materna Avançada: Mulheres com mais de 35 anos têm níveis mais elevados do Hormônio Folículo-Estimulante (FSH), o que pode levar à maturação e ovulação de mais de um folículo por ciclo.
  • Multiparidade: Mulheres que já tiveram várias gestações têm uma chance ligeiramente maior de ter gêmeos.
  • Etnia: Como mencionado, a etnia negra apresenta as maiores taxas de gemelaridade dizigótica espontânea.
  • História Familiar: A predisposição para hiperovulação pode ser herdada, mas apenas pelo lado materno da família.
  • Tecnologias de Reprodução Assistida (TRA): O fator de maior impacto atualmente.

Classificação: Monozigóticos vs. Dizigóticos

  • Gêmeos Dizigóticos (DZ) ou Fraternos: Originam-se da fertilização de dois óvulos distintos por dois espermatozoides diferentes. Geneticamente, são como quaisquer outros irmãos, compartilhando cerca de 50% de seu material genético. Podem ser de sexos diferentes. Correspondem a cerca de 2/3 de todas as gestações gemelares.
  • Gêmeos Monozigóticos (MZ) ou Idênticos: Originam-se da divisão de um único zigoto (óvulo fertilizado por um espermatozoide). São geneticamente idênticos e, portanto, sempre do mesmo sexo. Correspondem a cerca de 1/3 das gestações gemelares.

Fisiopatologia

A compreensão da fisiopatologia da gemelaridade é centrada no processo de fertilização e, crucialmente, na formação da placenta (placentação). A corionicidade (número de córions, a camada mais externa da placenta) é o fator prognóstico mais importante em uma gestação gemelar, superando a zigoticidade.

Mecanismos de Formação

  • Dizigótica: O mecanismo é a dupla ovulação seguida de dupla fertilização. Cada zigoto se desenvolve de forma independente, com sua própria placenta (córion) e sua própria bolsa amniótica (âmnion). Portanto, gêmeos dizigóticos são sempre dicoriônicos e diamnióticos (DC/DA). As duas placentas podem se fundir se implantadas próximas, mas a circulação sanguínea permanece separada.
  • Monozigótica: O resultado da divisão de um único zigoto depende do momento em que a divisão ocorre.
Momento da Divisão (após fertilização) Estágio de Desenvolvimento Tipo de Placentação Resultante Frequência (entre MZ)
0-3 dias Antes da formação da mórula/diferenciação do trofoblasto Dicoriônica, Diamniótica (DC/DA) ~25-30%
4-8 dias Estágio de blastocisto (córion já formado, âmnion não) Monocoriônica, Diamniótica (MC/DA) ~70-75% (Mais comum)
8-12 dias Blastocisto implantado (córion e âmnion já formados) Monocoriônica, Monoamniótica (MC/MA) ~1%
> 13 dias Disco embrionário já formado Gêmeos Conjugados (Siameses) Raro

Raciocínio Clínico

Por que a corionicidade é tão importante? Porque em gestações monocoriônicas, os fetos compartilham uma única placenta. Esta placenta quase invariavelmente contém anastomoses vasculares (conexões entre os vasos sanguíneos dos dois fetos). Essas conexões são a base para as complicações mais graves e exclusivas da gemelaridade, como a Síndrome de Transfusão Feto-Fetal (STFF). Gestações dicoriônicas, por terem placentas separadas, não apresentam esse risco.

Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2020

Uma gestação gemelar Dicoriônica/Diamniótica (DC/DA) pode ser tanto dizigótica (sempre) quanto monozigótica (se a divisão do zigoto ocorreu nos primeiros 3 dias). Portanto, a presença de duas placentas (ou sinais ultrassonográficos de dicorionicidade) não permite afirmar a zigoticidade. A única forma de confirmar que gêmeos DC/DA são dizigóticos antes do nascimento é se eles forem de sexos diferentes. Se forem do mesmo sexo, só um teste de DNA após o nascimento pode diferenciar entre MZ e DZ.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A suspeita de gestação gemelar muitas vezes surge a partir de achados clínicos antes da confirmação ultrassonográfica.

  • Sintomas Exacerbados da Gravidez: Devido aos níveis mais elevados de gonadotrofina coriônica humana (hCG) e outros hormônios, a gestante pode apresentar náuseas e vômitos mais intensos (hiperêmese gravídica), maior sensibilidade mamária e fadiga acentuada.
  • Tamanho Uterino Maior que o Esperado: Este é o sinal clínico mais clássico. Durante o pré-natal, o médico pode notar que a altura do fundo uterino é significativamente maior do que o esperado para a idade gestacional calculada pela data da última menstruação (DUM). Uma discrepância de 4 cm ou mais é altamente sugestiva.
  • Ganho de Peso Materno Acentuado: Um ganho de peso mais rápido que o usual no início da gestação pode ser uma pista.
  • Achados ao Exame Físico:
    • Palpação (Manobras de Leopold): Pode ser possível palpar múltiplos polos fetais (ex: duas cabeças ou duas nádegas) ou um número excessivo de pequenas partes fetais.
    • Ausculta Fetal: A ausculta de dois focos de batimentos cardíacos fetais distintos, com uma diferença de frequência de pelo menos 10 bpm entre eles, e separados por uma área de silêncio, é sugestiva. No entanto, este método é pouco confiável e foi suplantado pela ultrassonografia.

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico definitivo e, mais importante, a determinação da corionicidade e amnionicidade são feitos por meio da ultrassonografia (USG).

Ultrassonografia de Primeiro Trimestre

O período ideal para o diagnóstico e a determinação da corionicidade é entre 11 e 14 semanas de gestação. Neste período, os marcadores ultrassonográficos são mais claros.

  • Determinação da Corionicidade:
    • Sinal de Lambda (λ) ou "Twin Peak Sign": Característico de gestações dicoriônicas (DC). Representa um triângulo de tecido coriônico (placentário) que se insinua na base da membrana interamniótica. É o sinal mais confiável de dicorionicidade.
    • Sinal do T: Característico de gestações monocoriônicas (MC). A fina membrana interamniótica se insere na placenta em um ângulo de 90 graus, formando uma junção em forma de "T", sem a presença de tecido coriônico entre as camadas.
  • Determinação da Amnionicidade: Consiste na visualização da membrana que separa os dois fetos. Se uma membrana fina é vista, a gestação é diamniótica. Se nenhuma membrana é consistentemente visualizada, deve-se suspeitar de uma gestação monoamniótica, que requer vigilância intensiva.

Acompanhamento Ultrassonográfico Seriado

Após o diagnóstico, a vigilância ultrassonográfica seriada é a base do manejo pré-natal.

  • Biometria Fetal: Medições seriadas (a cada 2-4 semanas, dependendo da corionicidade) são realizadas para avaliar o crescimento de cada feto e detectar a discordância de crescimento. A discordância é calculada pela fórmula: [(Peso do feto maior - Peso do feto menor) / Peso do feto maior] x 100. Uma discordância > 20-25% é considerada significativa.
  • Dopplervelocimetria: Essencial no acompanhamento de gestações monocoriônicas complicadas.
    • Artéria Umbilical: Avalia a resistência placentária.
    • Artéria Cerebral Média (ACM): O pico de velocidade sistólica (PVS) da ACM é usado para rastrear anemia fetal (PVS elevado) ou policitemia (PVS baixo), sendo crucial para o diagnóstico de TAPS.
    • Ducto Venoso: Avalia a função cardíaca fetal e é um indicador de bem-estar fetal em casos de restrição de crescimento grave.

Tratamento e Manejo

O manejo da gestação gemelar visa otimizar os resultados maternos e perinatais através de vigilância intensificada e intervenções oportunas.

Cuidados Pré-Natais

  • Requisitos Nutricionais Aumentados: A gestante necessita de um aporte calórico maior (cerca de 300-500 kcal/dia a mais que em uma gestação única), além de suplementação aumentada de ácido fólico (1 mg/dia) e ferro (60 mg/dia) para prevenir anemia.
  • Consultas Mais Frequentes: As visitas pré-natais são mais frequentes (a cada 2-4 semanas na segunda metade da gestação) para monitorar a pressão arterial materna, o crescimento uterino e rastrear complicações.
  • Prevenção de Parto Prematuro: O parto prematuro é a principal causa de morbimortalidade neonatal em gêmeos.
    • Rastreio do Comprimento Cervical: A medida do colo uterino por USG transvaginal pode identificar pacientes de maior risco.
    • Progesterona: Diferentemente da gestação única, o uso de progesterona vaginal não demonstrou benefício em reduzir o parto prematuro em gestações gemelares não complicadas e não é recomendado de rotina.
    • Cerclagem e Pessário: Também não são recomendados como medidas profiláticas de rotina.

Planejamento do Parto: Momento e Via

A decisão sobre o momento e a via de parto depende da corionicidade, da presença de complicações e da apresentação do primeiro feto (Gêmeo A).

Tipo de Gestação Gemelar Momento Recomendado para o Parto Considerações sobre a Via de Parto
Dicoriônica/Diamniótica (DC/DA) não complicada 38 semanas (38+0 a 38+6) Parto vaginal pode ser planejado se o Gêmeo A for cefálico. Cesárea se Gêmeo A não for cefálico.
Monocoriônica/Diamniótica (MC/DA) não complicada 36 a 37 semanas (36+0 a 37+6) Mesmas considerações do DC/DA. O parto é antecipado devido ao maior risco de óbito fetal inexplicado no final da gestação.
Monocoriônica/Monoamniótica (MC/MA) não complicada 32 a 34 semanas (32+0 a 34+0) Cesárea eletiva é a via de parto recomendada para minimizar o risco de entrelaçamento de cordão durante o trabalho de parto. Internação hospitalar para vigilância fetal intensiva a partir de 28 semanas é frequentemente indicada.

Armadilhas do ENARE

Questões sobre o manejo do parto gemelar frequentemente testam a indicação da via de parto. Lembre-se da regra principal: a apresentação do primeiro gemelar (Gêmeo A) dita a via de parto inicial. Se o Gêmeo A está em apresentação cefálica, o parto vaginal é uma opção segura. Se estiver em qualquer outra apresentação (pélvica, transversa), a cesárea está indicada para ambos. A apresentação do Gêmeo B não determina a via de parto inicial.

Complicações e Prognóstico

A gestação gemelar acarreta riscos aumentados para a mãe e para os fetos.

Riscos Maternos

  • Distúrbios Hipertensivos (Pré-eclâmpsia): Risco 2-3 vezes maior, devido à maior massa placentária.
  • Diabetes Mellitus Gestacional (DMG): Risco aumentado.
  • Anemia: Devido à maior demanda de ferro e hemodiluição.
  • Hemorragia Pós-Parto: Risco significativamente maior devido à sobredistensão uterina, que leva à atonia.
  • Descolamento Prematuro de Placenta (DPP).

Riscos Fetais/Neonatais

  • Prematuridade e Baixo Peso ao Nascer: A complicação mais comum e a principal causa de morbimortalidade. Mais de 50% dos gêmeos nascem prematuros.
  • Anomalias Congênitas: Risco ligeiramente aumentado, especialmente em gêmeos monozigóticos.
  • Paralisia Cerebral: O risco é várias vezes maior em comparação com gestações únicas, principalmente associado à prematuridade.
  • Óbito Fetal Intrauterino: O risco de perda de um ou ambos os fetos é maior.

Complicações Específicas das Gestações Monocoriônicas

São as mais temidas e resultam das anastomoses vasculares na placenta compartilhada.

  • Síndrome de Transfusão Feto-Fetal (STFF): Ocorre em 10-15% das gestações MC/DA. Há um desequilíbrio no fluxo sanguíneo através de anastomoses AV profundas. Um feto (doador) transfunde sangue para o outro (receptor).
    • Feto Doador: Torna-se hipovolêmico, anêmico e oligúrico, levando a oligoidrâmnio severo ("stuck twin" - feto "preso" à parede uterina) e bexiga vazia.
    • Feto Receptor: Torna-se hipervolêmico, policitêmico e poliúrico, levando a polidrâmnio, bexiga distendida e, eventualmente, hidropsia fetal e insuficiência cardíaca. O tratamento padrão-ouro é a ablação a laser das anastomoses por fetoscopia.
  • Restrição de Crescimento Intrauterino Seletiva (sRCIU): Ocorre quando há uma divisão desigual do território placentário, resultando em um feto com crescimento restrito (peso fetal estimado < percentil 10) e discordância de peso significativa (>25%). Diferente da STFF, os volumes de líquido amniótico podem estar normais.
  • Sequência Anemia-Policitemia Gemelar (TAPS): Uma forma crônica e lenta de transfusão através de anastomoses muito pequenas. Causa grande discordância nos níveis de hemoglobina, com um feto severamente anêmico e o outro policitêmico, mas sem as discrepâncias de líquido amniótico da STFF. O diagnóstico é feito pela Dopplervelocimetria da Artéria Cerebral Média.
  • Sequência de Perfusão Arterial Reversa Gemelar (TRAP): Uma complicação rara e grave. Um dos fetos ("feto acárdico") não desenvolve um coração funcional e é perfundido de forma retrógrada pelo sangue desoxigenado do outro feto ("feto bomba") através de anastomoses artério-arteriais. O feto bomba está em risco de insuficiência cardíaca de alto débito e óbito (mortalidade de 50-75%).

Conceito-Chave Validado pelo Exame: ENARE 2024

O diagnóstico diferencial entre sRCIU e STFF é crucial. Uma questão pode apresentar uma gestação monocoriônica com discordância de peso fetal > 25% e um dos fetos com peso abaixo do percentil 10. Se o enunciado especificar que o volume de líquido amniótico em ambas as bolsas está normal, o diagnóstico correto é Restrição de Crescimento Seletiva (sRCIU). A presença de polidrâmnio em um saco e oligoidrâmnio no outro é a marca registrada da STFF.

Populações Especiais

Gestações de Alta Ordem

Gestações com três ou mais fetos (trigêmeos, quadrigêmeos) têm riscos maternos e fetais exponencialmente maiores. A prematuridade extrema é quase uma certeza. Nesses casos, a redução multifetal pode ser oferecida. Este procedimento, geralmente realizado no final do primeiro trimestre, envolve a interrupção seletiva de um ou mais fetos para aumentar as chances de sobrevivência e reduzir a morbidade dos fetos restantes. É uma decisão eticamente complexa que requer aconselhamento detalhado.

Aconselhamento em Reprodução Assistida

É fundamental que os casais submetidos a TRA sejam extensivamente aconselhados sobre os riscos associados à gestação múltipla. A tendência atual na medicina reprodutiva é a transferência de um único embrião (single embryo transfer - SET), especialmente em mulheres jovens com embriões de boa qualidade, para minimizar a ocorrência de gemelaridade iatrogênica.

Considerações Pós-Parto

O período pós-parto apresenta desafios únicos. Além do risco aumentado de hemorragia, a mãe de múltiplos enfrenta um risco maior de depressão pós-parto. Os desafios logísticos, financeiros e emocionais de cuidar de dois ou mais recém-nascidos simultaneamente são imensos e exigem uma forte rede de apoio.

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