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Fisiologia Ovariana

A compreensão da fisiologia ovariana é fundamental para a ginecologia e obstetrícia, formando a base para o entendimento do ciclo menstrual, da fertilidade, da contracepção e de diversas patologias. Para o ENARE, dominar os detalhes da foliculogênese, esteroidogênese e da interação hormonal é crucial.

Anatomia Ovariana e Foliculogênese

Anatomia Macroscópica e Microscópica do Ovário

Os ovários são as gônadas femininas, órgãos pares com formato de amêndoa, localizados na pelve, próximos às fímbrias das tubas uterinas. Possuem uma dupla função: a produção de gametas (oócitos) e a síntese de hormônios esteroides (estrogênio e progesterona).

  • Anatomia Macroscópica: Cada ovário é sustentado por ligamentos, incluindo o ligamento útero-ovariano (que o conecta ao útero) e o ligamento suspensor do ovário (que contém os vasos e nervos ovarianos – artéria e veia ovarianas).
  • Anatomia Microscópica: O ovário é dividido em duas zonas distintas:
    • Córtex Ovariano: A região externa e funcionalmente mais ativa. Contém os folículos ovarianos em diferentes estágios de desenvolvimento, imersos em um estroma de tecido conjuntivo denso. É aqui que ocorrem a foliculogênese, a ovulação e a formação do corpo lúteo.
    • Medula Ovariana: A região central, composta por tecido conjuntivo frouxo, vasos sanguíneos (ramos espiralados da artéria ovariana), vasos linfáticos e nervos. Sua principal função é a de suporte vascular e neural para o córtex.

O Processo da Foliculogênese

Foliculogênese é o processo de maturação do folículo ovariano, uma estrutura somática que contém o oócito em desenvolvimento. Este processo é contínuo, desde a vida fetal até a menopausa, e pode ser dividido em várias fases.

  1. Folículo Primordial: É a unidade fundamental e o estado de repouso do folículo. Consiste em um oócito primário (parado na prófase I da meiose) envolvido por uma única camada de células da granulosa achatadas (pré-granulosa). A mulher nasce com um número finito desses folículos, que constituem a reserva ovariana.
  2. Folículo Primário: O primeiro estágio do crescimento folicular. O oócito aumenta de tamanho, e as células da granulosa tornam-se cuboidais e começam a se proliferar. A zona pelúcida, uma camada glicoproteica que envolve o oócito, começa a se formar. Este estágio inicial de desenvolvimento é independente de gonadotrofinas.
  3. Folículo Secundário (ou Pré-Antral): As células da granulosa continuam a se proliferar, formando múltiplas camadas (estratificadas). O estroma circundante se diferencia em duas camadas: a teca interna (vascularizada e produtora de hormônios) e a teca externa (fibrosa, de suporte). Neste estágio, o folículo começa a expressar receptores para FSH e LH, tornando-se responsivo às gonadotrofinas.
  4. Folículo Antral (ou Terciário): Sob estímulo do FSH, as células da granulosa secretam um fluido rico em estrogênio que se acumula em pequenos espaços, que posteriormente se fundem para formar uma cavidade única chamada antro. O folículo aumenta significativamente de tamanho.
  5. Folículo Pré-ovulatório (de Graaf): É o folículo dominante, maduro, que foi selecionado para ovular naquele ciclo. Atinge cerca de 20-25 mm de diâmetro. O oócito, agora circundado pela zona pelúcida e por uma camada de células da granulosa chamada corona radiata, está localizado em um pedúnculo de células da granulosa conhecido como cumulus oophorus. Este folículo é altamente responsivo ao pico de LH, que desencadeará a ovulação.

Raciocínio Clínico

A transição do folículo primordial para o primário é um processo lento e contínuo, independente de gonadotrofinas. No entanto, a partir do estágio secundário, o desenvolvimento folicular torna-se dependente de FSH. Sem FSH, os folículos antrais sofrem atresia (morte celular programada). É por isso que o FSH é crucial para o recrutamento e seleção do folículo dominante em cada ciclo menstrual.

Oogênese

A oogênese é o processo de formação e desenvolvimento do gameta feminino, o oócito. Diferentemente da espermatogênese masculina, que é contínua, a oogênese é um processo finito que se inicia durante o desenvolvimento fetal.

  • Período Fetal: As ovogônias (células germinativas primordiais) sofrem intensa proliferação mitótica no ovário fetal. Por volta do terceiro mês de gestação, elas começam a entrar na meiose I, tornando-se oócitos primários.
  • Parada Meiótica em Prófase I: Todos os oócitos primários pausam seu desenvolvimento na fase de prófase I da meiose (especificamente no estágio de dictioteno). Eles permanecem nesse estado de "animação suspensa" dentro dos folículos primordiais. Uma mulher nasce com toda a sua reserva de oócitos já formada e parada nesta fase. Nenhum oócito novo é formado após o nascimento.
  • Conclusão da Meiose I: A meiose I só é concluída pouco antes da ovulação, em resposta ao pico de LH. O oócito primário do folículo dominante divide-se de forma assimétrica, produzindo duas células: um oócito secundário (grande, contendo quase todo o citoplasma) e o primeiro corpúsculo polar (pequeno, com pouco citoplasma).
  • Parada Meiótica em Metáfase II: O oócito secundário imediatamente inicia a meiose II, mas é novamente parado, desta vez na metáfase II. É neste estágio que ele é ovulado.
  • Conclusão da Meiose II: A meiose II só será completada se ocorrer a fertilização pelo espermatozoide. A penetração do espermatozoide serve como gatilho para a conclusão da divisão, resultando no óvulo maduro e no segundo corpúsculo polar.

A Teoria das Duas Células, Duas Gonadotrofinas

Este é um conceito central na fisiologia ovariana que explica a produção de estrogênio pelo folículo em desenvolvimento. Ele descreve a cooperação sinérgica entre as células da teca e as células da granulosa, sob o controle de LH e FSH, respectivamente.

  1. Células da Teca (Influenciadas pelo LH):
    • Possuem receptores para o Hormônio Luteinizante (LH).
    • Quando estimuladas pelo LH, captam colesterol (principalmente do LDL circulante) e o convertem em androgênios (principalmente androstenediona e um pouco de testosterona).
    • As células da teca NÃO possuem a enzima aromatase e, portanto, não conseguem converter esses androgênios em estrogênios.
  2. Células da Granulosa (Influenciadas pelo FSH):
    • Possuem receptores para o Hormônio Folículo-Estimulante (FSH).
    • Quando estimuladas pelo FSH, expressam altos níveis da enzima aromatase.
    • Os androgênios produzidos pelas células da teca se difundem através da membrana basal para as células da granulosa.
    • Dentro das células da granulosa, a aromatase converte a androstenediona em estrona (E1) e a testosterona em estradiol (E2), o estrogênio mais potente.

Em resumo: o LH age na teca para produzir o substrato (androgênios), e o FSH age na granulosa para converter esse substrato em produto final (estrogênios). Nenhuma das células consegue realizar o processo sozinha.

Armadilhas do ENARE

Questões podem tentar confundir os papéis das células e das gonadotrofinas. Lembre-se sempre: LH -> Teca (Theca) -> Produção de Androgênios. FSH -> Granulosa -> Aromatização (conversão de androgênios em estrogênios). Uma forma de memorizar é que a teca é mais externa e vascularizada, tendo acesso direto ao colesterol do sangue, enquanto a granulosa é avascular e depende da teca para o substrato androgênico.

Esteroidogênese Ovariana

A esteroidogênese é o processo bioquímico de síntese de hormônios esteroides a partir do colesterol. No ovário, os principais produtos são os estrogênios, progestinas e androgênios.

Vias Bioquímicas

O precursor de todos os esteroides é o colesterol. A primeira etapa, comum a todas as glândulas esteroidogênicas, é a conversão de colesterol em pregnenolona pela enzima P450scc (também chamada de desmolase), uma etapa estimulada pelo LH nas células da teca.

  • Síntese de Progestinas: A pregnenolona pode ser convertida em progesterona pela enzima 3β-hidroxiesteroide desidrogenase (3β-HSD). A progesterona é o principal produto do corpo lúteo na segunda fase do ciclo.
  • Síntese de Androgênios: A pregnenolona e a progesterona podem ser convertidas em androgênios (DHEA, androstenediona) através de enzimas como a 17α-hidroxilase/17,20-liase. Esta via é predominante nas células da teca.
  • Síntese de Estrogênios: Os androgênios produzidos na teca (androstenediona e testosterona) são convertidos em estrogênios (estrona e estradiol, respectivamente) pela enzima aromatase nas células da granulosa, sob estímulo do FSH. O estradiol (E2) é o estrogênio mais potente e o principal produto do folículo dominante.

Hormônios Peptídicos Ovarianos

Além dos esteroides, os ovários produzem hormônios peptídicos que desempenham papéis cruciais na regulação do eixo hipotálamo-hipófise-ovariano.

  • Inibinas (A e B): São glicoproteínas que, como o nome sugere, inibem seletivamente a secreção de FSH pela hipófise, sem afetar significativamente o LH.
    • Inibina B: Produzida pelas células da granulosa dos folículos em crescimento (antrais pequenos) durante a fase folicular. Seus níveis aumentam no início do ciclo e contribuem para a supressão do FSH que leva à seleção de um único folículo dominante. Mnemônico: Inibina B = Before ovulation (antes da ovulação).
    • Inibina A: Produzida principalmente pelo corpo lúteo durante a fase lútea. Seus níveis são altos na segunda metade do ciclo, colaborando com a progesterona e o estradiol para suprimir o FSH. Mnemônico: Inibina A = After ovulation (após a ovulação).
  • Activina: Também produzida pelas células da granulosa, tem ação oposta à da inibina. Atua localmente (paracrinamente) no ovário para aumentar a sensibilidade das células da granulosa ao FSH e estimular a síntese de FSH na hipófise. Seu efeito sistêmico é geralmente neutralizado pela folistatina.
  • Hormônio Anti-Mülleriano (AMH): Produzido pelas células da granulosa de folículos pré-antrais e antrais pequenos. Sua principal função é inibir o recrutamento inicial de folículos primordiais, ajudando a preservar a reserva ovariana ao longo do tempo.
    • Utilidade Clínica: Os níveis séricos de AMH se correlacionam diretamente com o número de folículos antrais pequenos, sendo um excelente marcador da reserva ovariana. É amplamente utilizado em avaliações de fertilidade. Uma vantagem é que seus níveis variam pouco ao longo do ciclo menstrual, tornando sua dosagem mais conveniente que a do FSH basal.

Ovulação e Função do Corpo Lúteo

Ovulação

A ovulação é o evento central do ciclo menstrual, consistindo na ruptura do folículo de Graaf e na liberação do oócito secundário. O gatilho para a ovulação é o pico de LH, que ocorre aproximadamente 24 a 36 horas antes do evento.

O pico de LH é desencadeado por um feedback positivo: quando os níveis de estradiol produzidos pelo folículo dominante atingem um pico alto e sustentado por cerca de 50 horas, a resposta da hipófise ao GnRH muda de negativa para positiva, resultando em uma liberação maciça de LH.

O pico de LH induz uma cascata de eventos no folículo dominante:

  1. Conclusão da meiose I e progressão para a metáfase II.
  2. Luteinização: As células da granulosa e da teca começam a se transformar morfologicamente e funcionalmente, passando a produzir progesterona.
  3. Aumento da produção de prostaglandinas e enzimas proteolíticas (como colagenases e plasmina), que degradam e enfraquecem a parede do folículo, levando à sua ruptura.

Função do Corpo Lúteo

Após a ovulação, as células da granulosa e da teca remanescentes no ovário se reorganizam para formar o corpo lúteo (ou corpo amarelo), uma glândula endócrina temporária.

  • Produção Hormonal: A principal função do corpo lúteo é a produção de grandes quantidades de progesterona. Ele também produz estradiol e inibina A. A progesterona é essencial para preparar o endométrio para a implantação do embrião (fase secretora).
  • Manutenção: A sobrevivência do corpo lúteo depende do estímulo contínuo de LH (ou hCG, em caso de gravidez).
  • Luteólise: Se a gravidez não ocorrer, o corpo lúteo tem uma vida útil programada de aproximadamente 14 dias. Após esse período, ele sofre degeneração (luteólise) e se transforma em uma cicatriz de tecido fibroso chamada corpo albicans. A queda abrupta nos níveis de progesterona e estradiol leva à menstruação.
  • Resgate na Gravidez: Se ocorrer a fertilização e implantação, o sinciciotrofoblasto do embrião começa a produzir o hormônio gonadotrofina coriônica humana (hCG). O hCG é estruturalmente semelhante ao LH e se liga aos mesmos receptores, "resgatando" o corpo lúteo da luteólise e mantendo a produção de progesterona até que a placenta assuma essa função (por volta de 8-10 semanas de gestação).

Produção Hormonal Ovariana vs. Extra-Ovariana

É fundamental para as provas diferenciar os hormônios produzidos diretamente pelos ovários daqueles que regulam a função ovariana, mas são produzidos em outros locais.

Origem Hormônios Produzidos Função Principal no Eixo Reprodutivo
Ovários Estrogênios (Estradiol), Progesterona, Androgênios, Inibinas A e B, AMH, Activina Atuam no útero, mamas, e outros órgãos-alvo; realizam feedback (positivo e negativo) para a hipófise e hipotálamo.
Hipotálamo GnRH (Hormônio Liberador de Gonadotrofina), Ocitocina (produção) GnRH estimula a hipófise a liberar FSH e LH.
Hipófise Anterior (Adeno-hipófise) FSH (Hormônio Folículo-Estimulante), LH (Hormônio Luteinizante) FSH estimula o crescimento folicular e a aromatase. LH estimula a produção de androgênios na teca e o pico de LH desencadeia a ovulação.
Hipófise Posterior (Neuro-hipófise) Ocitocina (liberação), ADH (liberação) A ocitocina causa contração uterina no parto e ejeção de leite. Não tem papel direto na regulação do ciclo ovariano.

Armadilhas do ENARE: Conceito-Chave Validado (ENARE 2023)

Uma questão clássica de prova é apresentar uma lista de hormônios e pedir para identificar qual deles NÃO é produzido pelos ovários. A Ocitocina é uma alternativa frequentemente utilizada para testar esse conhecimento. Lembre-se: a ocitocina é um neuropeptídeo produzido nos núcleos paraventricular e supraóptico do hipotálamo e é armazenado e liberado pela neuro-hipófise (hipófise posterior). Suas funções estão relacionadas ao parto e à lactação, e não à esteroidogênese ovariana ou à regulação folicular. Portanto, a ocitocina não é um hormônio ovariano.

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