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Exame Físico Obstétrico

O exame físico obstétrico é uma das ferramentas semiológicas mais importantes na prática da obstetrícia. Consiste em uma avaliação sistemática e seriada da gestante e do feto, utilizando técnicas de baixo custo e alta aplicabilidade. Seu objetivo principal é monitorar a adaptação materna à gravidez, avaliar o crescimento e a vitalidade fetal, e identificar precocemente desvios da normalidade que possam necessitar de intervenção. É um pilar fundamental do cuidado pré-natal, permitindo uma vigilância contínua da saúde do binômio mãe-feto.

Os componentes essenciais do exame físico obstétrico abrangem:

  • Avaliação de dados maternos gerais: peso, pressão arterial, pesquisa de edema.
  • Inspeção do abdome gravídico.
  • Palpação abdominal para avaliação do útero e do feto (Manobras de Leopold).
  • Medida da altura uterina (Regra de McDonald).
  • Ausculta dos batimentos cardíacos fetais (BCF).

A correta execução e interpretação desses passos fornecem informações cruciais sobre a idade gestacional, o crescimento fetal, a estática fetal (situação, apresentação, posição) e o bem-estar fetal geral, orientando a conduta clínica em cada consulta de pré-natal.

Bases Anatômicas e Fisiológicas

A interpretação do exame físico obstétrico depende do conhecimento das profundas modificações que a gestação impõe ao organismo materno. O útero, um órgão pélvico de aproximadamente 70 gramas na mulher não grávida, transforma-se em um órgão abdominal que, ao termo, pode pesar mais de 1 kg e conter um volume de cerca de 5 litros.

Crescimento Uterino

O crescimento uterino segue um padrão previsível, sendo um dos principais marcadores clínicos da progressão da gestação:

  • Até 12 semanas: O útero permanece intrapélvico, não sendo palpável acima da sínfise púbica.
  • Com 12 semanas: O fundo uterino torna-se palpável logo acima da sínfise púbica.
  • Com 16 semanas: O fundo uterino localiza-se a meio caminho entre a sínfise púbica e a cicatriz umbilical.
  • Com 20 semanas: O fundo uterino atinge a altura da cicatriz umbilical.
  • Após 20 semanas: O crescimento correlaciona-se de forma linear com a idade gestacional (a altura uterina em centímetros aproxima-se do número de semanas), até cerca de 34-36 semanas.
  • Ao termo (36-40 semanas): O fundo uterino atinge o apêndice xifoide. Nas últimas semanas, pode ocorrer uma ligeira queda da altura uterina devido à insinuação do polo fetal na pelve materna, especialmente em primigestas.

Posicionamento Fetal

Para descrever a relação do feto com o útero e a pelve materna, utilizamos termos técnicos precisos, que são o objetivo primário das Manobras de Leopold:

  • Atitude Fetal: Refere-se à relação das partes fetais entre si. A atitude normal é de flexão generalizada (cabeça fletida sobre o tórax, braços cruzados sobre o tórax, coxas fletidas sobre o abdome e pernas fletidas sobre as coxas), o que cria uma forma ovoide compacta que ocupa menos espaço e oferece os menores diâmetros para a passagem pelo canal de parto.
  • Situação Fetal (Lie): É a relação entre o maior eixo do feto (coluna vertebral) e o maior eixo do útero (longitudinal).
    • Longitudinal (99% dos casos): Os eixos são paralelos. É a única situação que permite o parto vaginal.
    • Transversa: Os eixos são perpendiculares.
    • Oblíqua ou Córmica: Os eixos formam um ângulo de 45 graus. Geralmente é uma situação transitória.
  • Apresentação Fetal (Presentation): É a parte do feto que se localiza na entrada da pelve materna (estreito superior), sendo a primeira a descer pelo canal de parto.
    • Cefálica (~96%): A cabeça fetal se apresenta. Dependendo do grau de flexão, pode ser fletida (vértice/occipital), defletida de 1º grau (bregma), defletida de 2º grau (fronte) ou defletida de 3º grau (face).
    • Pélvica (~3%): A pelve fetal se apresenta. Pode ser pélvica completa (franco-agripina) ou incompleta (modo de nádegas, modo de pés).
    • Córmica: O ombro se apresenta, correspondendo à situação transversa.
  • Posição Fetal (Position): É a relação entre um ponto de referência da apresentação fetal e o lado (direito ou esquerdo) da pelve materna. O ponto de referência varia com a apresentação:
    • Apresentação Cefálica Fletida: O ponto de referência é o occipital (O).
    • Apresentação Pélvica: O ponto de referência é o sacro (S).
    • Apresentação de Face: O ponto de referência é o mento (M).
    • Apresentação de Ombro: O ponto de referência é o acrômio (A).
    A posição é descrita como direita ou esquerda, e pode ser complementada pela sua relação com a parte anterior, transversa ou posterior da pelve (ex: Occípito-Esquerda-Anterior, OEA).

Técnica do Exame Físico Obstétrico

O exame deve ser realizado em um ambiente privativo e confortável. A gestante deve ser orientada a esvaziar a bexiga antes do procedimento, pois uma bexiga cheia pode falsear a medida da altura uterina e dificultar a palpação.

Avaliação Materna Geral

  1. Peso e Pressão Arterial: Devem ser aferidos em todas as consultas. O ganho de peso é monitorado conforme o IMC pré-gestacional. A pressão arterial deve ser medida com a técnica correta (paciente sentada, em repouso, com o braço na altura do coração e manguito de tamanho adequado) para rastreamento de síndromes hipertensivas.
  2. Pesquisa de Edema: Inspecionar e palpar membros inferiores e face em busca de edema, que pode ser um sinal de pré-eclâmpsia, especialmente se associado à hipertensão.

Exame do Abdome

A paciente deve estar em decúbito dorsal, com os braços ao longo do corpo e os joelhos levemente fletidos para relaxar a musculatura abdominal. Uma cunha ou coxim deve ser colocado sob o quadril direito para deslocar o útero para a esquerda, prevenindo a compressão da veia cava inferior (Síndrome da Hipotensão Supina).

Inspeção

Observa-se a forma do abdome (globoso, ovoide), a presença de cicatrizes, estrias gravídicas, linha nigra e movimentos fetais visíveis (em gestações mais avançadas).

Medida da Altura Uterina (AU)

Utiliza-se uma fita métrica flexível. A técnica, conhecida como Regra de McDonald, é a seguinte:

  1. Fixa-se a extremidade "zero" da fita na borda superior da sínfise púbica com uma mão.
  2. Desliza-se a fita entre os dedos indicador e médio da outra mão até a borda cubital delimitar o fundo uterino.
  3. A leitura é feita em centímetros.

Entre 20 e 34 semanas de gestação, a medida da AU em centímetros é aproximadamente igual ao número de semanas de idade gestacional. Os valores são plotados em um gráfico para acompanhar a curva de crescimento.

Ausculta dos Batimentos Cardíacos Fetais (BCF)

Pode ser realizada com o estetoscópio de Pinard (a partir de 20-22 semanas) ou com o sonar Doppler portátil (a partir de 10-12 semanas). A frequência cardíaca fetal normal varia de 110 a 160 bpm. O foco de melhor ausculta geralmente se localiza sobre o dorso fetal, que é identificado pelas Manobras de Leopold.

Raciocínio Clínico

Ao auscultar os BCF, é fundamental diferenciar o foco fetal do pulso materno (artérias uterinas ou aorta). Para isso, o examinador deve palpar simultaneamente o pulso radial da mãe. O ritmo fetal é significativamente mais rápido e tem uma cadência característica de "galope".

Manobras de Leopold

São quatro manobras de palpação abdominal que, realizadas em sequência, determinam a estática fetal. Esta é uma habilidade clínica fundamental e um tópico de alta incidência em provas.

Primeiro Tempo (Manobra de Delimitação do Fundo Uterino)
  • Objetivo: Identificar o polo fetal que ocupa o fundo uterino. Determina a situação e a apresentação fetal.
  • Técnica: O examinador, de frente para a gestante, utiliza ambas as mãos para delimitar o fundo do útero e palpar o polo fetal presente.
  • Interpretação:
    • Polo Cefálico: Palpa-se uma estrutura dura, redonda, regular e móvel (sinal do rechaço). Se a cabeça está no fundo, a apresentação é pélvica e a situação é longitudinal.
    • Polo Pélvico: Palpa-se uma estrutura maior, mais macia, de contornos irregulares e menos móvel. Se a pelve está no fundo, a apresentação é cefálica e a situação é longitudinal.
    • Vazio: Se nenhum polo é palpado no fundo, suspeita-se de situação transversa.
Segundo Tempo (Manobra de Exploração dos Flancos)
  • Objetivo: Determinar a posição fetal, localizando o dorso e as pequenas partes (membros).
  • Técnica: Mantendo-se de frente para a gestante, o examinador desliza as mãos do fundo uterino para os flancos maternos, aplicando uma pressão suave, mas firme.
  • Interpretação:
    • Dorso Fetal: É sentido como uma superfície lisa, resistente, contínua e convexa em um dos lados do abdome.
    • Pequenas Partes (Membros): São sentidas no lado oposto como múltiplas nodulações e irregularidades que se movem sob a palpação.
    • A localização do dorso (à direita ou à esquerda da mãe) define a posição.
Terceiro Tempo (Manobra de Pawlik ou de Apreensão do Polo Inferior)
  • Objetivo: Confirmar a apresentação e avaliar a mobilidade do polo fetal em relação ao estreito superior da pelve (grau de insinuação).
  • Técnica: O examinador utiliza a mão direita (se destro), com o polegar e os demais dedos em forma de pinça, para apreender o polo fetal que se apresenta na pelve, logo acima da sínfise púbica.
  • Interpretação:
    • Confirma os achados do primeiro tempo (cefálico ou pélvico).
    • Avalia a mobilidade: Se o polo balança facilmente de um lado para o outro, ele está alto e móvel. Se a mobilidade é restrita, ele está fixo ou insinuado.
Quarto Tempo (Manobra de Exploração da Escava Pélvica)
  • Objetivo: Avaliar o grau de insinuação da apresentação na pelve.
  • Técnica: O examinador muda de posição, ficando de costas para a cabeça da gestante (virado para os pés dela). As mãos são colocadas sobre as fossas ilíacas e deslizam em direção à pelve, tentando penetrar no estreito superior.
  • Interpretação:
    • Apresentação Alta e Móvel: Os dedos das duas mãos convergem e penetram facilmente abaixo do polo fetal.
    • Apresentação Insinuada: Os dedos encontram resistência e divergem. Quanto mais insinuado, menos do polo fetal é palpável abdominalmente.

Armadilhas do ENARE: Manobras de Leopold

As provas frequentemente cobram a correlação entre a manobra e seu objetivo. A questão ENARE_2022_Q78 é um exemplo clássico. Memorize a finalidade de cada tempo: 1º Tempo = Situação/Apresentação (o que está no fundo); 2º Tempo = Posição (onde está o dorso); 3º Tempo = Confirma Apresentação/Mobilidade; 4º Tempo = Grau de Insinuação. Lembre-se que o 4º tempo é o único em que o examinador fica de costas para a paciente.

Interpretação dos Achados e Tomada de Decisão Clínica

A síntese dos dados do exame físico orienta a conduta pré-natal.

Interpretação da Altura Uterina

Uma discrepância entre a altura uterina e a idade gestacional esperada é um sinal de alerta que exige investigação, geralmente com ultrassonografia.

Achado Possíveis Causas Conduta Inicial
Altura Uterina Maior que o Esperado Erro de datação (IG incorreta), macrossomia fetal, polidrâmnio, gestação múltipla, mola hidatiforme, miomatose uterina. Confirmar IG. Solicitar ultrassonografia para avaliar biometria fetal, volume de líquido amniótico e morfologia.
Altura Uterina Menor que o Esperado Erro de datação (IG incorreta), restrição de crescimento intrauterino (RCIU), oligoidrâmnio, situação transversa, insinuação precoce da apresentação. Confirmar IG. Solicitar ultrassonografia para avaliar biometria fetal, volume de líquido amniótico e dopplerfluxometria.

Decisões Baseadas na Estática Fetal

  • Apresentação Pélvica: Se identificada após 36 semanas, a paciente deve ser orientada sobre as opções: versão cefálica externa (VCE), parto cesáreo eletivo ou, em casos muito selecionados, parto vaginal pélvico.
  • Situação Transversa: Se persistir próximo ao termo, é uma indicação absoluta de parto cesáreo, pois não há mecanismo de parto para esta situação. A internação pode ser necessária para vigilância.
  • Apresentação Cefálica Alta e Móvel em Primigesta a Termo: A ausência de insinuação no final da gestação em uma primigesta pode levantar a suspeita de desproporção cefalopélvica (DCP), embora não a confirme. Exige uma avaliação cuidadosa da pelve e vigilância durante o trabalho de parto (prova de trabalho de parto).

Limitações e Populações Especiais

Limitações e Armadilhas

O exame físico obstétrico, apesar de valioso, possui limitações importantes:

  • Obesidade Materna: O panículo adiposo espesso dificulta significativamente a palpação das estruturas fetais e a aferição da altura uterina, reduzindo a acurácia do método.
  • Polidrâmnio: O excesso de líquido amniótico torna o útero tenso e dificulta a delimitação das partes fetais.
  • Miomas Uterinos: Podem distorcer o contorno uterino, levando a uma medida de altura uterina falsamente elevada.
  • Placenta de Inserção Anterior: Pode dificultar a palpação das pequenas partes fetais e abafar os BCF.
  • Variabilidade Interobservador: A medida da altura uterina e, especialmente, a palpação de Leopold, são habilidades dependentes do examinador e podem apresentar variações.

Populações Especiais

  • Gestações Múltiplas: A altura uterina é invariavelmente maior que o esperado para a idade gestacional e não serve como parâmetro de crescimento individual dos fetos. As Manobras de Leopold são de difícil execução e interpretação. O acompanhamento ultrassonográfico seriado é a principal ferramenta de vigilância.
  • Trabalho de Parto Prematuro: A palpação abdominal deve ser realizada com extrema delicadeza para não estimular contrações uterinas. A avaliação do colo uterino (toque vaginal ou ultrassom transvaginal) ganha maior importância para avaliar dilatação e esvaecimento.

Referência Rápida: Manobras de Leopold
Manobra Posição do Examinador Objetivo Principal Achado Chave
Primeiro Tempo De frente para a paciente Identificar o polo no fundo uterino (Situação e Apresentação) Polo cefálico (duro, redondo, móvel) vs. Polo pélvico (macio, irregular)
Segundo Tempo De frente para a paciente Localizar o dorso fetal (Posição) Superfície lisa e convexa (dorso) vs. Irregularidades (membros)
Terceiro Tempo (Pawlik) De frente para a paciente Confirmar apresentação e avaliar mobilidade Apreensão do polo inferior; avaliar se está móvel ou fixo
Quarto Tempo De costas para a paciente Avaliar o grau de insinuação na pelve Convergência (não insinuado) ou divergência (insinuado) dos dedos
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