top of page

Epidemiologia do Câncer Ginecológico

A epidemiologia do câncer ginecológico é um pilar fundamental para a prática clínica e para a saúde pública, sendo um tema de alta frequência no ENARE. Compreender a distribuição, os determinantes e as tendências de cada tipo de neoplasia permite não apenas o diagnóstico e tratamento adequados, mas também a implementação de estratégias eficazes de prevenção e rastreamento. Este capítulo abordará os conceitos epidemiológicos chave e a aplicação específica para os principais cânceres ginecológicos e o câncer de mama, com foco na realidade brasileira.

Introdução à Epidemiologia do Câncer

Para interpretar corretamente os dados sobre o câncer ginecológico, é essencial dominar alguns conceitos epidemiológicos fundamentais.

Métricas Essenciais

  • Incidência: Refere-se ao número de casos novos de uma doença que ocorrem em uma população específica durante um período de tempo determinado. É geralmente expressa como uma taxa (e.g., número de casos novos por 100.000 habitantes por ano). A incidência reflete o risco de desenvolver a doença.
  • Prevalência: Representa o número total de casos de uma doença (novos e antigos) existentes em uma população em um ponto específico no tempo. A prevalência é influenciada tanto pela incidência quanto pela duração da doença (sobrevida). Doenças com alta incidência e longa sobrevida terão alta prevalência.
  • Mortalidade: Indica o número de óbitos por uma determinada doença em uma população específica durante um período de tempo. É uma medida do impacto da doença em termos de letalidade.
  • Taxa de Sobrevida: É a proporção de pacientes com uma doença que ainda estão vivos após um determinado período de tempo (geralmente 5 anos) após o diagnóstico. A sobrevida em 5 anos é uma métrica crucial para avaliar a eficácia do tratamento e o prognóstico do câncer.

O Papel dos Registros de Câncer

No Brasil, os dados epidemiológicos sobre o câncer são coletados e consolidados principalmente por duas fontes coordenadas pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA):

  • Registros de Câncer de Base Populacional (RCBP): Coletam informações sobre todos os casos novos de câncer em uma área geográfica definida (e.g., um município ou estado), permitindo o cálculo de taxas de incidência precisas.
  • Registros Hospitalares de Câncer (RHC): Coletam dados de todos os pacientes com câncer atendidos em um hospital específico. Embora não permitam calcular a incidência para a população geral, são fontes valiosas de informação sobre características clínicas, estadiamento e tratamento.

Fatores de Risco, Fatores de Proteção e Agentes Causais

A distinção entre esses termos é crucial para o entendimento da etiologia do câncer.

  • Fator de Risco: Uma característica, exposição ou comportamento que aumenta a probabilidade de desenvolver uma doença. Por exemplo, a obesidade é um fator de risco para o câncer de endométrio. A presença de um fator de risco não garante o desenvolvimento da doença.
  • Fator de Proteção: Uma característica, exposição ou comportamento que diminui a probabilidade de desenvolver uma doença. Por exemplo, o uso de contraceptivos orais combinados é um fator de proteção para o câncer de ovário.
  • Agente Causal: Um fator que é diretamente responsável por causar a doença. A relação é muito mais forte do que a de um simples fator de risco. O exemplo clássico na ginecologia oncológica é a infecção persistente por tipos de alto risco do Papilomavírus Humano (HPV) como agente causal do câncer de colo do útero. Sem a infecção pelo HPV, o câncer de colo do útero praticamente não ocorre.

Raciocínio Clínico

Ao avaliar uma paciente, a identificação de fatores de risco e proteção não serve apenas para estimar a probabilidade de doença, mas também para guiar o aconselhamento e as estratégias de prevenção. Por exemplo, uma paciente com múltiplos fatores de risco para câncer de mama (história familiar, mutação BRCA) será candidata a um rastreamento mais intensivo e precoce do que a população geral.

Epidemiologia do Câncer de Mama

O câncer de mama é a neoplasia maligna de maior impacto para a saúde da mulher em escala global e no Brasil.

Estatísticas Globais e Brasileiras

Globalmente, o câncer de mama é o câncer mais diagnosticado e a principal causa de morte por câncer entre as mulheres. No Brasil, segundo as estimativas do INCA, o câncer de mama é o tipo de câncer mais incidente na população feminina em todas as regiões do país, excluindo os tumores de pele não melanoma. A mortalidade também é a mais elevada entre as mulheres, representando um grave problema de saúde pública, especialmente devido ao diagnóstico frequente em estágios avançados.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2020)

É conhecimento obrigatório para a prova que o câncer de mama é a neoplasia maligna mais comum entre as mulheres no Brasil (e na maior parte do mundo), quando se excluem os cânceres de pele não melanoma. A segunda neoplasia mais comum varia regionalmente, mas frequentemente é o câncer colorretal ou o de colo do útero.

Fatores de Risco e Proteção

O risco de desenvolver câncer de mama é multifatorial, envolvendo aspectos hormonais, genéticos e de estilo de vida.

Tabela Resumo: Fatores de Risco e Proteção para Câncer de Mama
Categoria Fatores de Risco (Aumentam o Risco) Fatores de Proteção (Diminuem o Risco)
História Reprodutiva/Hormonal Menarca precoce (< 12 anos)
Menopausa tardia (> 55 anos)
Nuliparidade (não ter filhos)
Primeira gestação a termo após os 30 anos
Terapia de reposição hormonal (combinada estrogênio-progesterona)
Primeira gestação a termo antes dos 30 anos
Multiparidade
Amamentação
Genética/História Familiar História pessoal de câncer de mama
História familiar de 1º grau (mãe, irmã, filha)
Mutações genéticas herdadas (BRCA1, BRCA2, p53, etc.)
Ausência de história familiar significativa
Estilo de Vida e Ambientais Obesidade (especialmente na pós-menopausa)
Consumo de álcool
Sedentarismo
Exposição à radiação ionizante no tórax
Atividade física regular
Manutenção do peso ideal
Outros Idade avançada (principal fator de risco)
Doenças mamárias proliferativas com atipia
Alta densidade mamária na mamografia
-

Epidemiologia do Câncer de Colo do Útero

O câncer de colo do útero (ou câncer cervical) é um exemplo paradigmático de como a compreensão da etiologia de uma doença pode levar a estratégias de prevenção altamente eficazes.

Incidência e Mortalidade

Apesar de ser uma doença amplamente prevenível, o câncer cervical continua a ser uma causa significativa de morbimortalidade, especialmente em países e regiões com baixos recursos e acesso limitado a serviços de saúde. No Brasil, ele figura entre os cânceres mais incidentes na população feminina, com taxas particularmente elevadas nas regiões Norte e Nordeste, refletindo as desigualdades sociais e de acesso ao rastreamento e tratamento.

O Papel Central do HPV

A infecção persistente por subtipos oncogênicos (de alto risco) do Papilomavírus Humano (HPV) é a causa necessária para o desenvolvimento de praticamente todos os casos de câncer de colo do útero.

  • Subtipos de Alto Risco: HPV 16 e 18 são os mais importantes, responsáveis por cerca de 70% de todos os casos de câncer cervical.
  • Mecanismo: O HPV integra seu material genético ao da célula hospedeira, produzindo as oncoproteínas E6 e E7, que inativam as proteínas supressoras de tumor p53 e pRb, respectivamente, levando à proliferação celular descontrolada e ao acúmulo de mutações.

Impacto da Prevenção Primária e Secundária

  • Prevenção Primária (Vacinação contra o HPV): A vacinação antes do início da atividade sexual é a estratégia mais eficaz para prevenir a infecção pelos principais tipos de HPV oncogênicos. No Brasil, a vacina quadrivalente está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) para meninas e meninos em faixas etárias específicas.
  • Prevenção Secundária (Rastreamento): Consiste na detecção e tratamento de lesões pré-malignas (Neoplasias Intraepiteliais Cervicais - NIC) antes que progridam para câncer invasor. A principal ferramenta no Brasil é o exame citopatológico (Papanicolau). Em muitos países, o teste de HPV-DNA está se tornando o método de rastreamento primário por sua maior sensibilidade.

Epidemiologia do Câncer de Endométrio

O câncer de endométrio é a neoplasia maligna ginecológica mais comum em países desenvolvidos, e sua incidência está aumentando globalmente, em grande parte devido à epidemia de obesidade.

Tendências de Incidência

Este câncer afeta predominantemente mulheres na pós-menopausa, com pico de incidência entre 60 e 70 anos. O aumento das taxas de obesidade e da expectativa de vida são os principais motores do aumento da sua incidência.

Fatores de Risco: O Papel do Estrogênio sem Oposição

A maioria dos cânceres de endométrio (Tipo I, endometrioide) está associada à estimulação estrogênica crônica do endométrio, sem a oposição da progesterona, que induz a diferenciação e limita a proliferação.

  • Obesidade: É o fator de risco mais importante. O tecido adiposo periférico converte androgênios (androstenediona) em estrona, uma forma de estrogênio, levando a níveis cronicamente elevados.
  • Nuliparidade e Menopausa Tardia: Aumentam o número total de ciclos ovulatórios e a exposição ao estrogênio ao longo da vida.
  • Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP): Caracteriza-se por anovulação crônica, resultando em exposição estrogênica contínua sem a produção de progesterona dos ciclos ovulatórios.
  • Uso de Tamoxifeno: Usado no tratamento do câncer de mama, atua como antiestrogênico na mama, mas tem um efeito agonista (estrogênico) no endométrio, aumentando o risco de hiperplasia e câncer.
  • Síndrome de Lynch (HNPCC): Uma condição genética autossômica dominante que aumenta significativamente o risco de câncer colorretal, de endométrio, de ovário e outros. Mulheres com Síndrome de Lynch têm um risco de até 40-60% de desenvolver câncer de endométrio ao longo da vida.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode apresentar uma paciente em uso de tamoxifeno com sangramento uterino anormal. A conduta correta envolve a investigação endometrial imediata (e.g., ultrassonografia transvaginal seguida de histeroscopia com biópsia), pois o risco de câncer de endométrio está significativamente elevado. Lembre-se: o tamoxifeno é protetor para a mama contralateral, mas é um fator de risco para o endométrio.

Epidemiologia do Câncer de Ovário

O câncer de ovário é frequentemente chamado de "o assassino silencioso" devido à sua apresentação com sintomas inespecíficos e tardios, resultando em diagnóstico em estágio avançado na maioria dos casos.

Incidência e Mortalidade

Embora seja menos incidente que os cânceres de mama, colo do útero e endométrio, o câncer de ovário possui a maior taxa de mortalidade entre todos os cânceres ginecológicos. A sobrevida em 5 anos para estágios avançados é baixa, o que reforça a letalidade da doença.

Fatores de Risco e Proteção

Muitos fatores estão relacionados à teoria da "ovulação incessante", que postula que o trauma e o reparo repetitivos do epitélio ovariano durante a ovulação aumentam o risco de transformação maligna.

Tabela Resumo: Fatores de Risco e Proteção para Câncer de Ovário
Fatores de Risco (Aumentam o Risco) Fatores de Proteção (Diminuem o Risco)
Idade avançada Multiparidade
Nuliparidade Uso de contraceptivos orais combinados (efeito protetor aumenta com a duração do uso)
Infertilidade / Menarca precoce / Menopausa tardia Amamentação
Endometriose Laqueadura tubária / Salpingectomia
História familiar / Mutações genéticas (BRCA1, BRCA2, Síndrome de Lynch) Histerectomia

Raciocínio Clínico

Por que a laqueadura tubária e a salpingectomia são protetoras? A evidência crescente sugere que muitos cânceres de ovário "serosos de alto grau" (o tipo mais comum e agressivo) na verdade se originam nas fímbrias da tuba uterina. A remoção ou bloqueio das tubas (salpingectomia/laqueadura) pode prevenir que células malignas ou pré-malignas cheguem ao ovário e peritônio, explicando o forte efeito protetor.

Epidemiologia dos Cânceres de Vulva e Vagina

Estas são neoplasias raras em comparação com os outros cânceres ginecológicos, afetando predominantemente mulheres mais velhas.

Câncer de Vulva

O câncer de vulva possui duas vias etiológicas distintas, com perfis epidemiológicos diferentes:

  1. Via HPV-Relacionada:
    • Ocorre em mulheres mais jovens (pré-menopausa).
    • Associado à infecção por HPV de alto risco (principalmente HPV 16).
    • Precedido pela lesão precursora chamada Neoplasia Intraepitelial Vulvar (NIV) do tipo usual.
    • Fatores de risco incluem tabagismo e imunossupressão.
  2. Via Não-HPV Relacionada (Inflamatória Crônica):
    • Ocorre em mulheres mais velhas (pós-menopausa, > 70 anos).
    • Associado a doenças inflamatórias crônicas da vulva, principalmente o líquen escleroso.
    • Precedido pela lesão precursora chamada NIV diferenciada.
    • Não tem relação com o HPV.

Câncer de Vagina

É uma das neoplasias ginecológicas mais raras. O tipo histológico mais comum é o carcinoma de células escamosas, fortemente associado à infecção por HPV, similarmente ao câncer de colo do útero. O adenocarcinoma de células claras da vagina está historicamente associado à exposição intrauterina ao dietilestilbestrol (DES), uma droga não mais utilizada.

Estratégias de Saúde Pública e Rastreamento no Brasil

O Ministério da Saúde do Brasil, através do INCA, estabelece diretrizes claras para o rastreamento dos cânceres de colo do útero e de mama, que são os únicos com programas de rastreamento populacional organizados.

Rastreamento do Câncer de Colo do Útero

  • Método: Exame citopatológico (Papanicolau).
  • População-alvo: Mulheres de 25 a 64 anos que já iniciaram atividade sexual.
  • Periodicidade: Os dois primeiros exames devem ser anuais. Se ambos forem negativos, a repetição passa a ser a cada 3 anos.
  • Desafios: Atingir a cobertura ideal da população-alvo, garantir a qualidade da coleta e da leitura da lâmina, e assegurar o seguimento e tratamento das mulheres com exames alterados.

Rastreamento do Câncer de Mama

  • Método: Mamografia.
  • População-alvo (Diretriz do Ministério da Saúde): Mulheres de 50 a 69 anos.
  • Periodicidade (Diretriz do Ministério da Saúde): A cada 2 anos.
  • Desafios: Acesso limitado à mamografia em algumas regiões, demora na obtenção de resultados e biópsias, e a controvérsia sobre a idade de início e o intervalo do rastreamento.

Armadilhas do ENARE

As diretrizes de rastreamento do câncer de mama podem ser um ponto de confusão. A recomendação do Ministério da Saúde (50-69 anos, bienal) é a que deve ser considerada para questões de saúde pública e do SUS. No entanto, sociedades de especialidade como a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM) e o Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR) recomendam o início mais cedo, aos 40 anos, e com periodicidade anual. A prova geralmente especifica o contexto (SUS vs. recomendação de especialista) ou cobra a diretriz oficial do MS.

bottom of page