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Endometriose

A endometriose é uma das patologias ginecológicas mais complexas e prevalentes, sendo um tema recorrente e de alta importância nas provas de residência, incluindo o ENARE. Caracteriza-se por sua cronicidade, impacto significativo na qualidade de vida e associação com dor pélvica e infertilidade.

Introdução e Epidemiologia

A endometriose é definida como a presença de tecido semelhante ao endométrio, contendo glândulas e/ou estroma, em localização extrauterina. Este tecido ectópico implanta-se preferencialmente em órgãos pélvicos, como ovários, ligamentos uterossacros, peritônio pélvico, e mais raramente em locais distantes como o diafragma, pleura ou até mesmo o sistema nervoso central.

É uma doença crônica, inflamatória e estrogênio-dependente. A dependência do estrogênio é a chave para entender tanto sua fisiopatologia quanto as bases de seu tratamento clínico. A doença prospera em um ambiente hormonal cíclico e regride em estados hipoestrogênicos, como a menopausa ou durante o tratamento com análogos do GnRH.

A prevalência exata é difícil de determinar, pois o diagnóstico definitivo requer cirurgia. No entanto, as estimativas são consistentes e alarmantes:

  • Afeta aproximadamente 10% das mulheres em idade reprodutiva na população geral, o que representa cerca de 190 milhões de mulheres em todo o mundo.
  • A prevalência aumenta drasticamente em populações específicas:
    • Até 50% das mulheres com infertilidade.
    • Entre 70% a 90% das mulheres com dor pélvica crônica.

Apesar de ser mais comumente diagnosticada em mulheres entre 25 e 35 anos, a endometriose pode afetar adolescentes e mulheres na perimenopausa. O atraso diagnóstico é um problema significativo, com uma média de 7 a 10 anos entre o início dos sintomas e o diagnóstico definitivo, período no qual a doença pode progredir e causar danos permanentes.

Fisiopatologia

A etiologia exata da endometriose permanece um enigma, sendo mais provável uma origem multifatorial. Diversas teorias foram propostas para explicar como o tecido endometrial chega e se desenvolve fora do útero. Nenhuma teoria isoladamente explica todas as apresentações da doença.

Principais Teorias Etiológicas

  1. Teoria da Menstruação Retrógrada (Teoria de Sampson): É a teoria mais amplamente aceita. Propõe que, durante a menstruação, fragmentos viáveis de endométrio fluem retrogradamente através das trompas de Falópio para a cavidade peritoneal. Essas células endometriais então se implantam no peritônio e nos órgãos pélvicos, onde proliferam.

    Raciocínio Clínico

    A teoria de Sampson é apoiada pela observação de que a endometriose é mais comum nos locais pélvicos mais dependentes da gravidade, como o fundo de saco de Douglas. No entanto, a menstruação retrógrada ocorre em quase 90% das mulheres, enquanto apenas 10% desenvolvem endometriose. Isso sugere que outros fatores (imunológicos, genéticos, hormonais) são necessários para que as células ectópicas sobrevivam, se implantem e proliferem.

  2. Teoria da Metaplasia Celômica (Teoria de Meyer): Postula que o peritônio parietal, que compartilha a mesma origem embrionária (epitélio celômico) que o endométrio, pode sofrer uma transformação metaplásica e se diferenciar em tecido endometrial sob certos estímulos hormonais ou inflamatórios. Esta teoria ajuda a explicar casos raros de endometriose em homens (em uso de estrogênio para tratamento de câncer de próstata) ou em mulheres sem útero funcional.
  3. Teoria da Disseminação Linfática e Vascular (Teoria de Halban): Sugere que células endometriais podem ser transportadas através dos vasos linfáticos e sanguíneos para locais distantes, explicando a presença de endometriose em locais extra-pélvicos como pulmões, cérebro e pele.

Mecanismos de Progressão da Doença

Independentemente da origem, uma vez que o tecido endometrial se implanta ectopicamente, sua sobrevivência e crescimento são impulsionados por uma complexa interação de fatores:

  • Dependência de Estrogênio: O tecido endometriótico possui receptores de estrogênio e progesterona. O estrogênio estimula sua proliferação. Além disso, os próprios implantes de endometriose podem produzir seu próprio estrogênio através da enzima aromatase, criando um ciclo vicioso de auto-estimulação.
  • Inflamação Crônica: O sangramento cíclico dos implantes na cavidade peritoneal desencadeia uma resposta inflamatória intensa. Macrófagos e outras células imunes são recrutados, liberando citocinas (como IL-1, IL-6, TNF-α) e fatores de crescimento (como VEGF). Esse ambiente inflamatório promove a dor, a angiogênese (formação de novos vasos sanguíneos para nutrir os implantes) e a neurogênese (crescimento de novas fibras nervosas, aumentando a sensibilidade à dor).
  • Fibrose e Formação de Aderências: A inflamação crônica e as tentativas de cicatrização levam à deposição de tecido fibrótico e à formação de aderências densas. Essas aderências podem distorcer a anatomia pélvica normal, "colando" órgãos como o útero, ovários, trompas e intestino, o que contribui significativamente para a dor e a infertilidade.

Apresentação Clínica e Exame Físico

A apresentação clínica da endometriose é notoriamente variável. A intensidade dos sintomas não se correlaciona necessariamente com a extensão da doença visualizada na cirurgia. Algumas mulheres com doença extensa podem ser assintomáticas, enquanto outras com lesões mínimas podem ter dor incapacitante.

Sintomas Clássicos (A Tríade Dolorosa)

  • Dismenorreia: É o sintoma mais comum. Caracteristicamente, é uma dor menstrual progressiva, que piora ao longo dos anos. A dor geralmente começa 1 a 2 dias antes do fluxo menstrual e pode persistir durante todo o período. É frequentemente descrita como mais intensa do que as cólicas menstruais "normais" e muitas vezes é refratária a analgésicos comuns e AINEs.
  • Dispareunia de Profundidade: Dor durante ou após a relação sexual, sentida profundamente na pelve. É fortemente associada a implantes de endometriose nos ligamentos uterossacros ou no fundo de saco posterior.
  • Dor Pélvica Crônica: Dor pélvica não cíclica, presente por mais de 6 meses. Pode ser constante ou intermitente e é resultado da inflamação crônica, fibrose e envolvimento neural.

Outros Sintomas Comuns

  • Infertilidade: Presente em até 50% das pacientes. Os mecanismos incluem distorção anatômica das trompas por aderências, inflamação peritoneal que afeta a função espermática e oocitária, e a formação de endometriomas que podem danificar o tecido ovariano saudável.
  • Sintomas Intestinais (Disquezia): Dor para evacuar, especialmente durante o período menstrual. Sugere infiltração do retossigmoide. Outros sintomas podem incluir constipação, diarreia ou inchaço abdominal cíclico.
  • Sintomas Urinários (Disúria): Dor para urinar, urgência ou frequência urinária, especialmente durante a menstruação. Sugere envolvimento da bexiga ou dos ureteres.

Exame Físico

O exame físico ginecológico pode ser completamente normal, o que não exclui o diagnóstico. No entanto, achados específicos podem aumentar muito a suspeita clínica.

  • Inspeção: Geralmente normal, a menos que haja lesões raras na vulva ou períneo.
  • Exame Especular: Pode revelar lesões azuladas ou avermelhadas no fórnice vaginal posterior ou no colo do útero.
  • Toque Bimanual e Retovaginal: É a parte mais importante do exame. O examinador deve procurar por:
    • Espessamento e nodularidade dos ligamentos uterossacros: Sentidos como pequenas "contas de rosário" dolorosas na palpação do fundo de saco posterior. Este é um achado altamente específico.
    • Útero em retroversão fixa: A mobilidade uterina diminuída ou ausente sugere aderências pélvicas significativas.
    • Massa anexial: Um ovário aumentado e doloroso pode indicar a presença de um endometrioma.
    • Dor à mobilização do colo uterino e do útero.

Armadilhas do ENARE

Uma questão pode descrever uma paciente com dismenorreia severa e um exame físico "sem alterações". A ausência de achados no exame físico não descarta endometriose. A suspeita clínica baseada na história é soberana e deve levar à investigação diagnóstica. A presença de nodularidade em ligamentos uterossacros, no entanto, é um sinal quase patognomônico e direciona fortemente o diagnóstico.

Avaliação Diagnóstica

O diagnóstico da endometriose é um processo escalonado, que começa com a suspeita clínica e progride para exames de imagem e, finalmente, para a confirmação cirúrgica.

Suspeita Clínica

A história detalhada dos sintomas (dismenorreia progressiva, dispareunia de profundidade, dor pélvica crônica, infertilidade) é o pilar para a suspeita diagnóstica.

Exames de Imagem

  • Ultrassonografia Transvaginal (USTV): É o exame de imagem de primeira linha. É acessível, não invasivo e excelente para identificar endometriomas ovarianos.
    • Aparência do Endometrioma ("Cisto de Chocolate"): Tipicamente, aparece como um cisto unilocular (ou ocasionalmente multilocular) com conteúdo ecogênico homogêneo de baixo nível, descrito classicamente como "vidro fosco" (ground-glass appearance). Não costuma apresentar fluxo ao Doppler.
    • Limitações: A USTV convencional tem baixa sensibilidade para detectar lesões peritoneais superficiais e aderências. No entanto, um ultrassom especializado com preparo intestinal, realizado por um operador experiente, pode identificar lesões de endometriose profunda infiltrativa (EPI) no compartimento posterior (retossigmoide, ligamentos uterossacros).
  • Ressonância Magnética (RM) da Pelve: É um exame de segunda linha, reservado para casos em que o ultrassom é inconclusivo ou para o planejamento cirúrgico detalhado da endometriose profunda infiltrativa. A RM oferece excelente resolução de tecidos moles e pode mapear com precisão a extensão da doença, incluindo o envolvimento de ligamentos, bexiga e intestino.

Laparoscopia com Confirmação Histológica

A laparoscopia é o padrão-ouro para o diagnóstico definitivo da endometriose. Permite a visualização direta da cavidade pélvica, a identificação das lesões, a avaliação da extensão da doença (estadiamento) e a coleta de biópsias para confirmação histológica.

  • Achados Visuais: As lesões podem ter aparências variadas:
    • Lesões Típicas: Implantes azul-escuros ou "em pólvora queimada" (powder-burn).
    • Lesões Atípicas (sutis): Vesículas claras, lesões avermelhadas (flame-like), ou defeitos peritoneais brancos ou amarelados.
    • Endometriomas: Cistos ovarianos com conteúdo achocolatado.
    • Aderências: Podem variar de finas e avasculares a densas e espessas, obliterando o fundo de saco de Douglas.
  • Estadiamento: O sistema de classificação mais utilizado é o da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva (ASRM), que classifica a doença em estágios I (mínima), II (leve), III (moderada) e IV (grave) com base em um sistema de pontos que avalia o tamanho e a localização das lesões e aderências. É importante notar que este estadiamento se correlaciona bem com a fertilidade, mas não com a intensidade da dor.

Tratamento e Manejo

O tratamento da endometriose deve ser individualizado, considerando a gravidade dos sintomas, a idade da paciente, o desejo de fertilidade e o impacto na qualidade de vida. O manejo pode ser expectante, clínico (medicamentoso) ou cirúrgico.

Manejo Clínico (Medicamentoso)

O objetivo do tratamento clínico é aliviar a dor e suprimir a progressão da doença. A pedra angular é a supressão da função ovariana e a indução de amenorreia, o que leva à atrofia dos implantes endometrióticos.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE_2020_Q73)

O princípio fundamental do tratamento clínico da endometriose é a indução de amenorreia. Ao interromper o ciclo menstrual, cessa-se o estímulo hormonal (estrogênio) cíclico sobre o tecido endometriótico ectópico. Isso impede o sangramento, reduz a inflamação local e, consequentemente, alivia a dor. Todas as terapias hormonais eficazes funcionam através deste mecanismo.

Opções Terapêuticas Hormonais
Classe de Medicamento Exemplos Mecanismo de Ação Considerações Clínicas
Contraceptivos Orais Combinados (COCs) Etinilestradiol + Progestagênio Inibem a ovulação, causam decidualização e atrofia do endométrio (tópico e ectópico). Primeira linha. O uso deve ser contínuo (sem pausas) para garantir a amenorreia. Custo-efetivo e bem tolerado.
Progestagênios (isolados) Dienogeste, Acetato de Medroxiprogesterona (depot), Noretindrona, DIU de Levonorgestrel Causam forte decidualização e atrofia endometrial, inibem a ovulação (em altas doses) e têm efeitos anti-inflamatórios diretos. Primeira linha, especialmente o Dienogeste, que é altamente eficaz. O DIU-LNG é uma ótima opção para dismenorreia e sangramento, mas pode não controlar a dor extrauterina.
Análogos do GnRH Acetato de Leuprorrelina, Goserelina Causam uma "down-regulation" dos receptores hipofisários de GnRH, suprimindo a produção de FSH/LH e induzindo um estado de hipoestrogenismo profundo ("menopausa médica"). Segunda linha. Altamente eficazes, mas o uso é limitado a 6-12 meses devido aos efeitos colaterais hipoestrogênicos (fogachos, secura vaginal, perda de massa óssea). Terapia de "add-back" (reposição de baixas doses de estrogênio/progesterona) é recomendada para mitigar esses efeitos.

Manejo Cirúrgico

A cirurgia é indicada para pacientes com dor refratária ao tratamento clínico, diagnóstico incerto, endometriomas grandes (> 4-5 cm) ou quando há distorção anatômica significativa causando infertilidade ou comprometimento de outros órgãos (ex: hidronefrose por obstrução ureteral).

  • Laparoscopia Conservadora: É a abordagem de escolha. O objetivo é excisar ou ablar todos os implantes visíveis, remover endometriomas (cistectomia) e lisar aderências (adesiólise) para restaurar a anatomia pélvica normal. A excisão é geralmente preferida à ablação, pois permite a análise histológica e pode estar associada a menores taxas de recorrência.
  • Cirurgia Definitiva (Histerectomia com Salpingo-ooforectomia Bilateral): Reservada para casos graves, em mulheres que já completaram sua prole e falharam em todos os outros tratamentos. É importante ressaltar que mesmo a remoção do útero e dos ovários não garante a cura, especialmente se houver lesões de endometriose profunda que não foram ressecadas. A terapia de reposição hormonal pós-operatória pode ser necessária.

Complicações e Prognóstico

A endometriose é uma doença crônica com um curso variável e um impacto profundo na vida da mulher.

  • Infertilidade: Uma das complicações mais temidas. A cirurgia pode melhorar as taxas de concepção natural em casos de doença leve a moderada. Em casos graves, ou quando a concepção não ocorre após a cirurgia, as tecnologias de reprodução assistida (TRA), como a fertilização in vitro (FIV), são frequentemente necessárias.
  • Dor Pélvica Crônica: Pode se tornar uma condição de dor centralizada, mesmo após o tratamento adequado das lesões periféricas, exigindo uma abordagem multidisciplinar com fisioterapia pélvica, manejo da dor e suporte psicológico.
  • Comprometimento de Órgãos: A endometriose profunda pode infiltrar o intestino, bexiga e ureteres, levando a complicações graves como obstrução intestinal ou hidronefrose com risco de perda da função renal.
  • Risco de Câncer de Ovário: Há um pequeno, mas estatisticamente significativo, aumento do risco de certos tipos de câncer de ovário epitelial, especificamente os subtipos endometrioide e de células claras, que podem se originar de endometriomas. No entanto, o risco absoluto permanece baixo.
  • Recorrência: A endometriose tem uma alta taxa de recorrência. Estima-se que os sintomas de dor recorram em até 50% das pacientes em 5 anos após a cirurgia. O tratamento hormonal supressivo pós-operatório é frequentemente recomendado para retardar a recorrência.

Populações Especiais

Endometriose na Adolescência

A apresentação em adolescentes pode ser desafiadora. O sintoma predominante é a dismenorreia severa, muitas vezes incapacitante e refratária ao uso de AINEs e contraceptivos orais. A dor acíclica também é comum. O diagnóstico precoce é crucial para prevenir a progressão da doença e preservar a fertilidade futura. A abordagem terapêutica inicial é geralmente clínica, com cirurgia laparoscópica reservada para casos refratários ou suspeita de massa anexial.

Endometriose e Desejo de Fertilidade

O manejo é complexo e deve ser feito em conjunto com especialistas em reprodução humana.

  • Para dor mínima e infertilidade, pode-se proceder diretamente para TRA.
  • Para dor significativa ou presença de endometriomas grandes, a cirurgia laparoscópica para restaurar a anatomia e remover a doença é frequentemente o primeiro passo. Após a cirurgia, a paciente é encorajada a tentar a concepção natural por um período de 6 a 12 meses. Se a gravidez não ocorrer, a FIV é a próxima etapa indicada.

Raciocínio Clínico

Por que o tratamento hormonal supressivo (como análogos do GnRH) não é usado para tratar a infertilidade causada pela endometriose? Porque esses medicamentos inibem a ovulação, criando um estado anovulatório temporário. Embora tratem a dor, eles impedem a concepção. Portanto, não são considerados tratamentos de primeira linha para a infertilidade em si, embora a cirurgia para remover a doença possa melhorar as chances de gravidez.

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