Doença Trofoblástica Gestacional (DTG)
A Doença Trofoblástica Gestacional (DTG) compreende um espectro de tumores raros e inter-relacionados que se originam do trofoblasto placentário. Essas condições são únicas no campo da oncologia por derivarem de uma gestação, produzirem um marcador tumoral altamente sensível (a gonadotrofina coriônica humana, β-hCG) e apresentarem taxas de cura excepcionalmente altas, mesmo na presença de doença metastática. O entendimento de sua classificação, diagnóstico e manejo é fundamental para a prática ginecológica e obstétrica e é um tema recorrente em provas de residência.
Introdução & Epidemiologia
Definição e Classificação
A DTG é um termo que engloba um grupo heterogêneo de lesões proliferativas do trofoblasto. A classificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) divide a DTG em duas categorias principais: as formas benignas (com potencial maligno), representadas pelas molas hidatiformes, e as formas malignas, denominadas Neoplasia Trofoblástica Gestacional (NTG).
| Categoria | Entidade Clínica | Características Principais |
|---|---|---|
| Molas Hidatiformes (Formas pré-malignas) | Mola Hidatiforme Completa (MHC) | Ausência de tecido fetal/embrionário. Edema difuso e proliferação trofoblástica das vilosidades coriônicas. Maior risco de progressão para NTG (~15-20%). |
| Mola Hidatiforme Parcial (MHP) | Presença de tecido fetal/embrionário (geralmente não viável). Edema focal das vilosidades e proliferação trofoblástica menos acentuada. Menor risco de progressão para NTG (~1-5%). | |
| Neoplasia Trofoblástica Gestacional (NTG) (Formas malignas) | Mola Invasora | Invasão do miométrio por vilosidades coriônicas hidrópicas. É a forma mais comum de NTG pós-molar. |
| Coriocarcinoma | Neoplasia epitelial pura, altamente anaplásica, composta por citotrofoblasto e sinciciotrofoblasto, sem vilosidades. Apresenta extensa necrose, hemorragia e alta propensão à invasão vascular e metástases precoces. Pode seguir qualquer tipo de gestação. | |
| Tumor Trofoblástico do Sítio Placentário (TTSP) | Tumor raro originado do trofoblasto intermediário do sítio de implantação. Produz pouco β-hCG, mas produz lactogênio placentário humano (hPL). Tende a permanecer confinado ao útero, mas pode metastatizar tardiamente. | |
| Tumor Trofoblástico Epitelioide (TTE) | Extremamente raro, também derivado do trofoblasto intermediário. Pode ser confundido com carcinoma de células escamosas. Comportamento clínico semelhante ao TTSP. |
Incidência e Fatores de Risco
A incidência da DTG apresenta notável variação geográfica. Nos Estados Unidos e na Europa, a incidência de mola hidatiforme é de aproximadamente 1 para cada 1.000-1.500 gestações. Em contraste, em países da Ásia e da América Latina, incluindo o Brasil, a incidência é significativamente maior, podendo chegar a 1 para cada 200 gestações. O coriocarcinoma é muito mais raro.
Os principais fatores de risco estabelecidos são:
- Extremos de Idade Materna: O risco segue uma curva em "U". Mulheres com menos de 20 anos e, especialmente, com mais de 40 anos, têm um risco aumentado. Para mulheres acima de 40 anos, o risco pode ser de 5 a 10 vezes maior.
- História de Mola Hidatiforme Prévia: Este é o fator de risco mais significativo. Após uma mola, o risco de uma segunda é de aproximadamente 1% (10 a 20 vezes o risco da população geral). Após duas molas, o risco de uma terceira pode chegar a 15-20%.
- Outros Fatores: Dietas pobres em caroteno (precursor da vitamina A) e gordura animal foram associadas a um risco aumentado em alguns estudos, mas a evidência é menos robusta. Fatores como tabagismo e tipo sanguíneo (A ou AB) também foram sugeridos, mas sua associação é fraca.
Fisiopatologia
Origens Genéticas
A compreensão da citogenética é crucial para diferenciar a mola completa da parcial e entender seu comportamento clínico.
- Mola Hidatiforme Completa (MHC): É uma concepção diploide, porém com material genético de origem exclusivamente paterna (androgenética). O mecanismo mais comum (90% dos casos) é a fertilização de um óvulo "vazio" (sem material genético ou com núcleo inativado) por um espermatozoide haploide (23,X), que subsequentemente duplica seu material genético, resultando em um cariótipo 46,XX. Menos comumente (10%), o óvulo vazio é fertilizado por dois espermatozoides (dispermia), resultando em um cariótipo 46,XX ou 46,XY. A ausência de DNA materno impede o desenvolvimento embrionário normal.
- Mola Hidatiforme Parcial (MHP): É uma concepção triploide, contendo um conjunto de cromossomos maternos e dois paternos. O mecanismo é a fertilização de um óvulo normal (23,X) por dois espermatozoides (dispermia), resultando em um cariótipo 69,XXY, 69,XXX, ou 69,XYY. A presença de material genético materno permite o desenvolvimento fetal/embrionário parcial, embora quase sempre inviável e com múltiplas anomalias.
Armadilhas do ENARE: Citogenética da Mola Parcial
Questões de prova frequentemente testam o conhecimento preciso da citogenética. Lembre-se: Mola Parcial = Triploide (69 cromossomos). A causa é a fertilização de um óvulo normal por dois espermatozoides. A presença de tecido fetal é a chave clínica e ultrassonográfica que a diferencia da mola completa. Este conceito foi cobrado diretamente nas provas do ENARE 2020 e 2023.
Características Histopatológicas e Progressão para NTG
A histopatologia é o padrão-ouro para o diagnóstico. Na MHC, o exame revela edema difuso e acentuado das vilosidades coriônicas (aspecto hidrópico), ausência de vasos sanguíneos vilositários e proliferação trofoblástica circunferencial e difusa. Na MHP, as alterações são focais e menos pronunciadas, com vilosidades de tamanhos variados (algumas hidrópicas, outras normais), presença de vasos sanguíneos vilositários (muitas vezes com hemácias fetais) e proliferação trofoblástica focal. Inclusões trofoblásticas no estroma vilositário são características.
A progressão de uma mola hidatiforme para Neoplasia Trofoblástica Gestacional (NTG) ocorre quando o tecido trofoblástico persiste, invade o miométrio ou metastatiza após o esvaziamento uterino. Isso é detectado pela falha na normalização dos níveis de β-hCG. O mecanismo exato não é totalmente compreendido, mas envolve a falha dos mecanismos regulatórios normais que limitam a invasão trofoblástica na implantação placentária. O risco de progressão é significativamente maior na MHC (15-20%) do que na MHP (1-5%).
Apresentação Clínica e Exame Físico
A apresentação clássica da mola hidatiforme completa é cada vez menos comum devido ao diagnóstico precoce por ultrassonografia de rotina no primeiro trimestre. No entanto, o conhecimento dos sinais e sintomas clássicos é fundamental.
- Sangramento Vaginal Anormal: É o sintoma mais comum, presente em mais de 90% dos casos. Geralmente ocorre no primeiro ou início do segundo trimestre e pode variar de um spotting a uma hemorragia profusa. A eliminação de vesículas hidrópicas (aspecto de "cachos de uva") é patognomônica, mas rara.
- Tamanho Uterino Maior que o Esperado para a Idade Gestacional: Ocorre em cerca de 50% das MHCs devido à proliferação trofoblástica excessiva e ao acúmulo de sangue. Em MHP, o útero é geralmente de tamanho normal ou pequeno para a idade gestacional.
- Hiperêmese Gravídica: Náuseas e vômitos severos, ocorrendo em cerca de 25% dos casos, são atribuídos aos níveis extremamente elevados de β-hCG.
- Pré-eclâmpsia de Início Precoce: O desenvolvimento de hipertensão, proteinúria e edema antes de 20 semanas de gestação é um forte indicador de mola hidatiforme.
- Cistos Teca-Luteínicos Ovarianos: Presentes em 25-50% das MHCs, são cistos ovarianos bilaterais, multiloculados e grandes, resultantes da hiperestimulação ovariana pelos altos níveis de β-hCG. Geralmente regridem espontaneamente após a queda do β-hCG.
- Hipertireoidismo Clínico: Ocorre em cerca de 7% dos casos. A subunidade alfa do hCG é estruturalmente semelhante à do TSH. Em concentrações muito altas, o hCG pode se ligar aos receptores de TSH na tireoide, causando tireotoxicose. Os sintomas incluem taquicardia, tremores, pele quente e intolerância ao calor.
Raciocínio Clínico
Diante de uma paciente no primeiro trimestre com sangramento vaginal, a primeira hipótese é ameaça de abortamento. No entanto, a presença de um útero aumentado, hiperêmese severa ou, mais especificamente, sinais de pré-eclâmpsia precoce, deve imediatamente elevar a suspeita de Doença Trofoblástica Gestacional e motivar a solicitação de uma dosagem quantitativa de β-hCG e uma ultrassonografia pélvica.
Avaliação Diagnóstica
Dosagem de β-hCG e Ultrassonografia
O diagnóstico da DTG baseia-se na combinação de achados clínicos, laboratoriais e de imagem.
- β-hCG Quantitativo Sérico: Níveis marcadamente elevados para a idade gestacional são a marca registrada da MHC, frequentemente excedendo 100.000 a 200.000 mUI/mL. Na MHP, os níveis são mais variáveis, podendo estar dentro da faixa normal ou apenas discretamente elevados.
- Ultrassonografia Pélvica: É o principal método de imagem.
- Mola Completa: A imagem clássica é a de uma massa uterina ecogênica e complexa, com múltiplas pequenas áreas císticas anecoicas, sem feto ou saco gestacional visível. Esse padrão é descrito como "tempestade de neve" ou "cachos de uva". Cistos teca-luteínicos ovarianos podem ser visualizados.
- Mola Parcial: Os achados são mais sutis. Tipicamente, observa-se uma placenta espessada com múltiplas áreas císticas focais (aspecto de "queijo suíço"), associada a um feto (que frequentemente apresenta restrição de crescimento ou anomalias congênitas) e um aumento do diâmetro transverso do saco gestacional.
O diagnóstico definitivo, no entanto, é sempre obtido através do exame histopatológico do material obtido após o esvaziamento uterino.
Diagnóstico de NTG Pós-Molar
Após o esvaziamento de uma mola hidatiforme, a vigilância com β-hCG é mandatória para detectar a persistência da doença (NTG). A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) estabeleceu critérios diagnósticos claros para a NTG pós-molar:
- Platô dos níveis de β-hCG: Quatro valores que permanecem estáveis (variação de ±10%) ao longo de três semanas consecutivas (ex: medições nos dias 1, 7, 14 e 21).
- Aumento dos níveis de β-hCG: Três valores consecutivos que mostram um aumento (>10%) ao longo de duas semanas consecutivas (ex: medições nos dias 1, 7 e 14).
- Persistência de β-hCG detectável: Seis meses ou mais após o esvaziamento uterino.
- Diagnóstico histológico de coriocarcinoma.
Armadilhas do ENARE: Critérios de NTG
O critério do "platô" é um alvo comum para questões. A definição exata é crucial: são quatro medidas (dias 1, 7, 14, 21) que definem um platô ao longo de três semanas. Uma questão pode tentar confundir o candidato com "três medidas em duas semanas", que é o critério para AUMENTO dos níveis. Este detalhe foi o foco da questão 80 do ENARE 2022.
Tratamento e Manejo
Manejo da Mola Hidatiforme
O tratamento primário para MHC e MHP é o esvaziamento uterino imediato. O método de escolha é a vácuo-aspiração (ou aspiração manual intrauterina - AMIU), seguida por uma curetagem romba cuidadosa para garantir a remoção completa do tecido.
- Vácuo-aspiração: É preferível à dilatação e curetagem (D&C) com cureta cortante, pois está associada a menor perda sanguínea, menor risco de perfuração uterina e menor probabilidade de embolização trofoblástica.
- Ocitocina: A infusão intravenosa de ocitocina deve ser iniciada após o início da dilatação cervical e mantida por várias horas após o procedimento para minimizar a hemorragia.
- Histerectomia: Pode ser uma opção para mulheres com prole constituída que não desejam preservar a fertilidade. Elimina o risco de invasão local (mola invasora), mas não o risco de metástases, exigindo ainda o seguimento com β-hCG.
A indução do trabalho de parto com prostaglandinas ou ocitocina não é recomendada devido ao alto risco de hemorragia e embolização de tecido trofoblástico.
Vigilância Pós-Esvaziamento
O seguimento rigoroso é a chave para o sucesso no manejo da DTG.
- Monitoramento do β-hCG: A dosagem sérica quantitativa deve ser realizada semanalmente até que se obtenham três resultados negativos consecutivos. Após a negativação, o monitoramento continua mensalmente por 6 meses. Se os níveis estagnarem ou aumentarem, o diagnóstico de NTG é feito e o tratamento é iniciado.
- Contracepção Eficaz: A paciente deve ser orientada a usar um método contraceptivo confiável durante todo o período de vigilância (pelo menos 6 meses após a negativação do β-hCG). Uma nova gravidez durante este período confundiria o monitoramento do β-hCG, tornando impossível distinguir entre o hCG da nova gestação e o de uma NTG persistente. Os contraceptivos hormonais orais são o método de escolha, pois são altamente eficazes e não interferem nos níveis de hCG. Dispositivos intrauterinos (DIUs) devem ser evitados até que o β-hCG esteja negativo, devido ao risco de perfuração uterina.
Manejo da Neoplasia Trofoblástica Gestacional (NTG)
Uma vez diagnosticada a NTG, a paciente deve ser estadiada e classificada de acordo com o sistema de escore de risco da FIGO/OMS para determinar o tratamento. O estadiamento avalia a extensão da doença, enquanto o escore de risco prognóstico prediz a probabilidade de resistência à quimioterapia com agente único.
- NTG de Baixo Risco (Escore de Risco ≤ 6): O tratamento é a monoquimioterapia. Os agentes de primeira linha são o Metotrexato (MTX) ou a Actinomicina-D. As taxas de cura são próximas de 100%.
- NTG de Alto Risco (Escore de Risco ≥ 7): O tratamento requer poliquimioterapia de combinação. O regime mais utilizado é o EMA-CO (Etoposídeo, Metotrexato, Actinomicina-D, ciclofosfamida e vincristina). Mesmo em casos de doença metastática disseminada, as taxas de cura são altas, em torno de 85-90%.
Complicações e Prognóstico
Complicações
- Agudas (relacionadas ao esvaziamento):
- Hemorragia: A complicação mais comum, devido ao útero atônico e à rica vascularização do tecido molar.
- Perfuração Uterina: Risco durante o procedimento cirúrgico.
- Embolização Trofoblástica: Rara, mas grave. Tecido trofoblástico entra na circulação venosa e se aloja nos pulmões, causando insuficiência respiratória aguda.
- Crise Tireotóxica: Pode ser precipitada pela anestesia e manipulação cirúrgica em pacientes com hipertireoidismo não diagnosticado.
- Longo Prazo:
- Desenvolvimento de NTG: A principal complicação tardia, ocorrendo em até 20% das MHCs.
- Metástases: A NTG pode se disseminar. Os sítios mais comuns de metástase, em ordem de frequência, são: pulmões (80%), vagina (30%), cérebro (10%) e fígado (10%).
Prognóstico
O prognóstico para a DTG é, em geral, excelente com diagnóstico e manejo adequados.
- Mola Hidatiforme: A cura é alcançada em praticamente 100% dos casos com o esvaziamento uterino e seguimento adequado.
- NTG de Baixo Risco: A taxa de cura com monoquimioterapia se aproxima de 100%.
- NTG de Alto Risco: A taxa de sobrevida global com poliquimioterapia é de aproximadamente 85-90%.
Populações Especiais
Desejo de Fertilidade Futura
A preservação uterina é o padrão-ouro no tratamento da DTG para mulheres que desejam engravidar no futuro. Após a conclusão do tratamento para NTG e o período de vigilância recomendado (geralmente 12 meses após o término da quimioterapia), a mulher pode tentar engravidar. As taxas de concepção são semelhantes às da população geral, e a maioria das gestações subsequentes são normais. Há um pequeno aumento no risco de uma nova mola (1-2%), mas não há aumento no risco de anomalias congênitas ou outras complicações obstétricas relacionadas à quimioterapia prévia.
Coriocarcinoma Não-Molar
Embora 50% dos coriocarcinomas se sigam a uma mola hidatiforme, 25% ocorrem após um aborto ou gestação ectópica, e 25% após uma gestação a termo. O coriocarcinoma não-molar tende a ser diagnosticado mais tardiamente, muitas vezes com metástases, e pode ter um prognóstico ligeiramente pior devido ao maior intervalo entre a gestação causal e o diagnóstico.
Apoio Psicológico
O diagnóstico de DTG representa um duplo fardo para a paciente: a perda de uma gravidez desejada e o diagnóstico de uma condição com potencial para malignidade. O processo de vigilância prolongado, a necessidade de contracepção e, em alguns casos, a quimioterapia, podem gerar ansiedade e estresse significativos. É fundamental oferecer apoio psicológico e aconselhamento para ajudar as pacientes e suas famílias a lidar com os aspectos emocionais desta jornada.
