top of page


Doença Inflamatória Pélvica (DIP)

A Doença Inflamatória Pélvica (DIP) é uma síndrome clínica inflamatória e infecciosa do trato genital superior feminino, resultante da ascensão de microrganismos da vagina e do colo do útero. É um tópico de extrema importância para as provas de residência, pois seu diagnóstico e manejo inadequados podem levar a sequelas graves e permanentes. A abordagem deve ser rápida e, muitas vezes, empírica, dada a dificuldade de um diagnóstico de certeza e a necessidade de prevenir complicações.

Introdução e Epidemiologia

Definição

A DIP é definida como um espectro de distúrbios inflamatórios do trato genital superior feminino, que pode incluir qualquer combinação de endometrite (inflamação do endométrio), salpingite (inflamação das tubas uterinas), ooforite (inflamação dos ovários) e peritonite pélvica. A salpingite é o componente mais comum e o principal responsável pelas sequelas a longo prazo.

Agentes Etiológicos

A DIP é classicamente uma infecção polimicrobiana. Embora Neisseria gonorrhoeae e Chlamydia trachomatis sejam os patógenos mais frequentemente implicados e testados, eles são responsáveis por menos da metade dos casos. Outros microrganismos, incluindo bactérias anaeróbias e aeróbias da flora vaginal, desempenham um papel crucial.

  • Patógenos Sexualmente Transmissíveis Clássicos:

    • Neisseria gonorrhoeae: Causa uma resposta inflamatória intensa e purulenta.

    • Chlamydia trachomatis: Frequentemente associada a quadros mais subclínicos ou "silenciosos", mas com alto potencial de causar dano tubário e infertilidade.

  • Outros Microrganismos:

    • Mycoplasma genitalium: Reconhecido cada vez mais como um agente etiológico importante.

    • Bactérias Anaeróbias: Peptostreptococcus, Bacteroides spp. (especialmente em casos de abscesso tubo-ovariano).

    • Bactérias Aeróbias: Gardnerella vaginalis, Haemophilus influenzae, Streptococcus agalactiae, e bacilos Gram-negativos entéricos como Escherichia coli.

Fatores de Risco

Os fatores de risco para DIP estão intimamente ligados à exposição a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e a fatores que facilitam a ascensão de patógenos.

  • Idade Jovem: Adolescentes e mulheres com menos de 25 anos são o grupo de maior risco. Isso se deve a fatores biológicos (maior área de ectopia cervical, com epitélio colunar mais suscetível à infecção) e comportamentais.

  • Comportamento Sexual: Múltiplos parceiros sexuais, novo parceiro sexual recente (nos últimos 3 meses), e não utilização de métodos de barreira (preservativos).

  • História Prévia de IST ou DIP: Um episódio prévio de DIP aumenta significativamente o risco de recorrência.

  • Instrumentação Uterina: Procedimentos como inserção de dispositivo intrauterino (DIU), curetagem uterina, histerossalpingografia ou biópsia endometrial podem quebrar a barreira cervical e introduzir bactérias na cavidade uterina. O risco associado ao DIU é maior nas primeiras 3 semanas após a inserção.

  • Duchas Vaginais: A prática de duchas vaginais altera a flora vaginal normal e pode impulsionar mecanicamente os patógenos para o trato genital superior.

Fisiopatologia

A fisiopatologia da DIP é um processo de infecção ascendente. O processo geralmente ocorre em etapas:

  1. Cervicite: A infecção inicial se estabelece no endocérvix, causando uma cervicite mucopurulenta. O muco cervical, que normalmente funciona como uma barreira protetora, é comprometido pela infecção.

  2. Ascensão dos Patógenos: Durante a menstruação, a perda do tampão mucoso e a presença de sangue (excelente meio de cultura) facilitam a ascensão dos microrganismos para a cavidade uterina.

  3. Endometrite: A infecção se espalha para o endométrio. A endometrite é histologicamente presente em quase todos os casos de DIP, mas pode ser clinicamente silenciosa.

  4. Salpingite: Os patógenos migram pelas tubas uterinas. A inflamação resultante (salpingite) é o evento central da DIP. A resposta inflamatória causa edema da parede tubária e dano ao epitélio ciliado, que é fundamental para o transporte do óvulo.

  5. Comprometimento Pélvico Adicional: A infecção pode se espalhar para as estruturas adjacentes. O exsudato purulento pode extravasar da fímbria tubária para a cavidade pélvica, causando ooforite e peritonite pélvica.

Essa cascata inflamatória é responsável pelas sequelas a longo prazo. O dano ciliar é frequentemente irreversível. A cicatrização e a formação de aderências podem levar à obstrução tubária (causando infertilidade e hidrossalpinge) ou a um transporte ovular deficiente (aumentando o risco de gravidez ectópica).

Raciocínio Clínico

Por que a DIP é frequentemente diagnosticada durante ou logo após a menstruação? O sangue menstrual retrógrado pode carrear bactérias para as tubas. Além disso, o pH vaginal se eleva e o muco cervical se torna menos espesso, facilitando a ascensão de patógenos. Este é um dado clínico importante na anamnese.

Apresentação Clínica e Exame Físico

O quadro clínico da DIP é notoriamente variável, indo desde pacientes assintomáticas ou com sintomas muito sutis (DIP subclínica) até quadros de abdome agudo inflamatório com sepse. A suspeita clínica deve ser alta.

Sintomas

  • Dor Pélvica ou em Abdome Inferior: É o sintoma mais comum. Geralmente é bilateral, de início insidioso e piora durante o coito (dispareunia de profundidade) ou com movimentos bruscos.

  • Corrimento Vaginal Anormal: Frequentemente descrito como mucopurulento (amarelo-esverdeado), com odor fétido.

  • Sangramento Uterino Anormal: Sangramento intermenstrual, sangramento pós-coito ou menorragia podem ocorrer devido à endometrite associada.

  • Sintomas Sistêmicos: Febre e calafrios estão presentes em casos mais graves, mas sua ausência não exclui o diagnóstico.

  • Sintomas Urinários: Disúria pode ocorrer devido à inflamação próxima à bexiga.

  • Dor em Hipocôndrio Direito: Sugere a presença da Síndrome de Fitz-Hugh-Curtis (peri-hepatite).

Exame Físico

O exame físico, especialmente o exame pélvico, é a pedra angular do diagnóstico.

  • Exame Abdominal: Pode revelar dor à palpação de abdome inferior, tipicamente em ambos os quadrantes inferiores. Sinais de irritação peritoneal (defesa e descompressão brusca positiva) podem estar presentes em casos graves.

  • Exame Especular: Visualização de corrimento mucopurulento saindo pelo orifício cervical externo. O colo do útero pode estar friável e sangrar facilmente ao toque da espátula ou swab.

  • Exame de Toque Vaginal (Bimanual): É a parte mais importante do exame. Os achados clássicos são:

    • Dor à mobilização do colo uterino: Conhecido como "sinal do candelabro" (chandelier sign), é um achado altamente sugestivo.

    • Dor à palpação uterina.

    • Dor à palpação anexial: Geralmente bilateral. A presença de massa anexial palpável pode indicar um abscesso tubo-ovariano (ATO).

Diagnóstico

O diagnóstico da DIP é eminentemente clínico. Devido às graves consequências de um tratamento tardio, o limiar para o início do tratamento empírico é intencionalmente baixo. A laparoscopia é o padrão-ouro, mas é um método invasivo e raramente necessário, reservado para casos de dúvida diagnóstica ou falha terapêutica.

Os critérios diagnósticos do CDC (Centers for Disease Control and Prevention), amplamente adotados no Brasil, são divididos em mínimos, adicionais e elaborados.

Tabela de Critérios Diagnósticos para DIP

Tipo de Critério

Descrição

Critérios Mínimos
(Suficientes para iniciar tratamento empírico)

Presença de dor em abdome inferior ou pélvica E um ou mais dos seguintes achados no exame pélvico:

  • Dor à mobilização do colo uterino

  • Dor à palpação uterina

  • Dor à palpação anexial

Critérios Adicionais
(Aumentam a especificidade do diagnóstico)

Um ou mais dos seguintes:

  • Temperatura oral > 38,3°C

  • Corrimento cervical ou vaginal mucopurulento

  • Presença de abundantes leucócitos na microscopia de secreção vaginal

  • Elevação de provas de atividade inflamatória (VHS ou Proteína C Reativa)

  • Documentação laboratorial de infecção por N. gonorrhoeae ou C. trachomatis

Critérios Elaborados / Mais Específicos
(Confirmatórios)

Um ou mais dos seguintes:

  • Evidência histopatológica de endometrite em biópsia endometrial

  • Achados de imagem (ultrassonografia transvaginal ou ressonância magnética) mostrando espessamento ou dilatação tubária, líquido livre em fundo de saco, ou complexo tubo-ovariano

  • Achados laparoscópicos consistentes com DIP (hiperemia tubária, edema, exsudato purulento)

Armadilhas do ENARE

Uma questão clássica apresenta uma paciente jovem com dor em fossa ilíaca direita, febre e leucocitose. O principal diagnóstico diferencial é apendicite aguda. A chave para a resposta correta está na história sexual e nos achados do exame pélvico. Se o enunciado mencionar dor à mobilização do colo ou corrimento purulento, a hipótese de DIP (ou DIP com peri-hepatite) se torna a mais provável. Lembre-se que a dor da DIP é classicamente bilateral, mas pode se apresentar de forma atípica.

Tratamento e Manejo

O tratamento deve ser iniciado empiricamente assim que o diagnóstico clínico for suspeitado. A terapia deve ser de amplo espectro, cobrindo os patógenos mais prováveis, incluindo N. gonorrhoeae, C. trachomatis e anaeróbios.

Tratamento Ambulatorial (Oral)

Indicado para pacientes com doença leve a moderada, hemodinamicamente estáveis, capazes de tolerar medicação oral e que compreendem a necessidade de acompanhamento.

  • Esquema Recomendado (Ministério da Saúde/CDC):

    • Ceftriaxona 500 mg, dose única, via intramuscular (IM). (Cobre N. gonorrhoeae)

    • Doxiciclina 100 mg, 2 vezes ao dia, por 14 dias, via oral (VO). (Cobre C. trachomatis)

    • Metronidazol 500 mg, 2 vezes ao dia, por 14 dias, via oral (VO). (Cobre anaeróbios; fortemente recomendado).

O acompanhamento é crucial. A paciente deve ser reavaliada em 72 horas. Se não houver melhora clínica significativa, a hospitalização para antibioticoterapia intravenosa está indicada.

Tratamento Hospitalar (Intravenoso)

A hospitalização é necessária em situações específicas para garantir a administração de antibióticos potentes e monitorização adequada.

Critérios para Hospitalização no Tratamento da DIP

Critério

Justificativa

Emergências cirúrgicas não podem ser excluídas

Ex: Apendicite aguda, torção de anexo.

Suspeita de Abscesso Tubo-Ovariano (ATO)

Condição grave que pode requerer drenagem e antibioticoterapia prolongada.

Gravidez

Alto risco de morbidade materna e fetal.

Doença grave

Febre alta, náuseas, vômitos, sinais de peritonite.

Intolerância ou impossibilidade de seguir o regime oral

Garante a adesão e os níveis séricos adequados do antibiótico.

Falha no tratamento ambulatorial

Ausência de melhora clínica após 72 horas de terapia oral.

Esquemas Intravenosos (IV) Recomendados:
  • Esquema 1 (Preferencial):

    • Ceftriaxona 1 g, IV, a cada 24 horas.

    • Doxiciclina 100 mg, IV ou VO, a cada 12 horas.

    • Metronidazol 500 mg, IV, a cada 12 horas.

  • Esquema 2 (Alternativo):

    • Clindamicina 900 mg, IV, a cada 8 horas.

    • Gentamicina dose de ataque de 2 mg/kg, seguida de 1,5 mg/kg a cada 8 horas (ou dose única diária de 3-5 mg/kg), IV.

Conceito-Chave Validado pelo Exame (ENARE 2023)

O manejo da DIP com critérios de gravidade ou complicações exige hospitalização e antibioticoterapia intravenosa. Um esquema frequentemente cobrado e validado em provas é a associação de Ceftriaxona e Metronidazol, frequentemente complementado com Doxiciclina. A questão ENARE_2023_Q74 abordou um caso de DIP complicada com abscesso, reforçando a necessidade de reconhecer os critérios de internação e o regime terapêutico IV adequado, que obrigatoriamente deve incluir cobertura para gonococo, clamídia e anaeróbios.

A terapia IV deve ser mantida por pelo menos 24-48 horas após a melhora clínica, e então a paciente pode transicionar para o regime oral (Doxiciclina + Metronidazol) para completar 14 dias de tratamento total.

Medidas Adicionais

  • Tratamento de Parceiros: Todos os parceiros sexuais dos últimos 60 dias devem ser avaliados e tratados empiricamente, independentemente dos resultados de seus exames.

  • Abstinência Sexual: Recomendar abstinência até o término do tratamento e a resolução dos sintomas (tanto da paciente quanto do parceiro).

  • Aconselhamento e Rastreio: Oferecer aconselhamento sobre práticas sexuais seguras e realizar rastreio para outras ISTs, incluindo HIV e sífilis.

Complicações e Prognóstico

O prognóstico depende da precocidade do diagnóstico e do tratamento. Atrasos podem resultar em sequelas devastadoras para a saúde reprodutiva da mulher.

  • Infertilidade: É a complicação mais temida. O risco de infertilidade tubária é de aproximadamente 10-15% após um episódio de DIP, 30% após dois episódios, e mais de 50% após três ou mais episódios.

  • Gravidez Ectópica: O dano tubário aumenta o risco de gravidez ectópica em 6 a 10 vezes.

  • Dor Pélvica Crônica: Afeta cerca de 20-25% das mulheres que tiveram DIP, sendo causada por aderências pélvicas e hidrossalpinge.

  • Abscesso Tubo-Ovariano (ATO): Uma coleção de pus envolvendo a tuba e o ovário. É uma complicação aguda grave que requer hospitalização, antibioticoterapia IV e, em muitos casos, drenagem (percutânea guiada por imagem ou cirúrgica).

  • Síndrome de Fitz-Hugh-Curtis (Peri-hepatite): Inflamação da cápsula hepática (cápsula de Glisson) e do peritônio adjacente. Causa dor em hipocôndrio direito, que pode mimetizar colecistite. Na laparoscopia, observam-se as clássicas aderências em "corda de violino" entre o fígado e a parede abdominal.

Populações Especiais

Adolescentes

As adolescentes representam um grupo de alto risco para DIP e suas complicações. Elas tendem a apresentar quadros mais graves e são mais propensas a não procurar atendimento médico ou a não aderir ao tratamento. Por esses motivos, o limiar para hospitalização em adolescentes deve ser mais baixo.

Gestantes

A DIP é rara durante a gestação, pois o tampão mucoso cervical e a decídua obliterando a cavidade uterina oferecem uma barreira eficaz. No entanto, quando ocorre (geralmente no primeiro trimestre), é uma condição gravíssima, com alto risco de parto prematuro, abortamento e morbidade materna e fetal. Toda gestante com suspeita de DIP deve ser hospitalizada para tratamento intravenoso. O tratamento deve ser ajustado, pois as tetraciclinas (Doxiciclina) são contraindicadas. Um regime possível é Ceftriaxona + Azitromicina.

bottom of page